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Três poemas de Nemésio.

por FJV, em 22.10.18

MAIO DE MINHA MÃE 

O primeiro de Maio de minha Mãe 
Não era social, mas de favas e giestas. 
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô 
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe — 
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor. 

Já não se usa poesia descritiva, 
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio 
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão? 
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa, 
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro 
Como Baco em Camões, 
Límpido de azeviche 
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário, 
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich. 
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!) 

A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas 
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro 
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô 
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas 

Muito prego em cunhal deixaram, 
Muita madeira emalhetaram, 
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro 
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras. 
Favas de Maio do meu tempo! 
Havia poder popular 
Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores 
E flores eram de si, na flórea abada 
Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor 
Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor 
(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada. 

(Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas) [1938]

 

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O BICHO HARMONIOSO

Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!

Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno –

Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,
Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:

Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!

(O Bicho Harmonioso) [1938]

 

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A CONCHA
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

 

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

 

E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.

 

A minha casa… Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

(O Bicho Harmonioso) [1938]

 

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