Não partilho a ideia da
superioridade moral do jornalismo, e considero que
José António Cerejo é um bom jornalista que criou justificados anti-corpos no PS. Entrevistei J. A. Cerejo no longínquo «Falatório» (RTP-2, 1997; às sextas à noite era dedicado aos média), no dia a seguir à demissão de António Vitorino provocada pelo seu artigo no
Público. Era uma emissão com os média da semana, que antecedeu o «Primeira Página», que era diário. Lembro-me do corredor que dava para o estúdio; eu tinha escrito no meu bloco as primeiras perguntas a José António Cerejo, o jornalista que tinha levado o vice-primeiro-ministro e ministro da defesa à demissão. Foi já no estúdio que decidi alterar o guião; em vez de começar pelas perguntas da ordem (como se sente por ter provocado esta demissão?, quando começou a sua investigação em Almodovar?, etc.), disse «boa noite, J.A. Cerejo, tem os seus impostos em dia?» Lembro-me da resposta de Cerejo, resumida: «Mas eu não sou um político.» Era um facto. Mas era bom saber-se se um jornalista que investiga um suposto
deslize fiscal de um político deve estar, ou não, sujeito ao mesmo escrutínio. Pessoalmente, penso que os jornalistas devem fazer as suas declarações de interesses e devemos conhecê-las para não desconfiarmos (enquanto cidadãos) do que escrevem. Talvez se acabasse com a ideia dos inconfessáveis interesses
dos jornalistas, ou
de um jornalista de cada vez. É exactamente a falta dessa declaração de interesses que tem mantido a ideia de que o jornalismo deve ser
bacteriologicamente puro.
Acontece que a atitude de António Vitorino foi a de demitir-se, mesmo garantindo que estava inocente e que não tinha cometido qualquer ilícito fiscal. Claro, houve
zunzuns sobre o apetite de Vitorino sobre o governo: que não lhe apetecia estar lá e que aproveitou a oportunidade. Não acredito, apesar de tudo.
A ideia de que o
Público imprimiu estes artigos sobre José Sócrates movido pelo interesse da Sonae em derrubar o primeiro-ministro parece-me
zunzum igual. Devemos desconfiar, sim; devemos sempre desconfiar. Mas convinha esclarecer o assunto, ou não? Devia o
Público abster-se de publicar as notícias apenas porque o patrão é um grupo económico distribuído por telecomunicações, madeiras & hipermercados?
Vamos e venhamos:
1) primeira parte: do ponto de vista do rigor da informação, a primeira peça de Cerejo sobre as
assinaturas de favor é inatacável; são factos;
2) segunda parte: tem interesse público o conhecimento desses factos? Essa é outra matéria. Não é crime, já se sabe, fazer aquilo que Sócrates fez, se o fez; mas não é nada ético. Sinceramente, e sem querer fazer piada, é um beco sem saída: se o fez, é mau; se elaborou os estudos e os projectos
daquelas casas, é ainda pior. No primeiro caso, é mau
politicamente. No segundo caso, é mau
em geral. Interessa, à opinião pública, conhecer estes aspectos
da vida anterior de José Sócrates? Não estamos a falar da sua vida pessoal; não estamos a entrar na
esfera da privacidade; são factos públicos. Provando-se que são
factos, têm eles
interesse político? Servem para avaliar o comportamento político de José Sócrates ou, até, do primeiro-ministro? Estas são as questões essenciais. As
outras relevam do puro comentário e, aí sim, da
teoria da conspiração e do
combate político.
Fazer juízos de ordem moral é fácil, mas não é
apenas isso que está em causa (ah, porque sim, porque estamos todos a fazer juízos de ordem moral, agora ou noutras circunstâncias), independentemente dos supostos «inconfessáveis interesses» do
Público. Uma coisa é desconfiar das afirmações
dos políticos; outra é desconfiar de todas as perguntas
aos políticos.
Há uns anos, num dos seus textos, Agustina Bessa-Luís falava do novo exemplar de homem político; que seria
o homem comum. Infelizmente, referia-se a Santana Lopes. Viu-se.