||| Sinais.Há quem pense que estamos diante da ameaça de um novo tipo de censura; ou que há cada vez mais ataques à privacidade, à «reserva individual»; ou que o Estado anda, simplesmente, a meter-se onde não é chamado; ou que há controle a mais sobre a vida dos cidadãos. Há, naturalmente, quem pense que não estamos «diante da ameaça de um novo tipo de censura», uma vez que as «denúncias» até são feitas publicamente; quem pense que se trata apenas de agilizar procedimentos por parte do Estado, «o que permite acesso a uma série de dados» que, «naturalmente», não serão cruzados.
Este debate é oportuno e os sinais que ele fornece são positivos, mesmo que -- num caso ou noutro -- possam ser injustos para alguns sectores da administração. Há anos ele seria impossível porque as pessoas davam pouco valor à sua liberdade e à sua «reserva individual»; encantados com a «modernização», os portugueses desinteressavam por todo o tipo de quebras de privacidade, da videovigilância nas auto-estradas à monitorização da vida familiar. O argumento mais imbecil de todos: quem não deve, não teme -- e a «reserva individual» é um assunto menor diante da necessidade de «reforçar o colectivo» ou de «melhorar o Estado».
Num longínquo texto dos anos oitenta, António Barreto chamava a atenção para o ambiente de liberdade em que vivíamos -- liberdade de imprensa, de reunião, de associação, mobilidade, etc. Mas lamentava o facto de não existirem «liberais» (esqueçam a denominação, que a mim me parece justa), no sentido em que a liberdade não existe sem pessoas que se interessem por ela. Hoje, só a existência desse debate já é útil e mostra que as pessoas estão atentas, que começam a prezar a sua liberdade e que -- em relação ao Estado e aos seus poderes -- já sabem
desconfiar. Questionam a utilização que se pode fazer do cartão único, do acesso ao correio electrónico por parte das empresas fornecedoras de acesso à net ou por parte do Esatdo, da facturação detalhada de telemóveis, da videovigilância da Brisa, do manuseamento do cartão de contribuinte por grandes empresas que ainda estão associadas ao Estado ou que podem agir em bloco com ele, do cruzamento de dados de saúde na banca privada ou nos serviços públicos, da monitorização da nossa vida pelas grandes corporações, etc. Isso é estar um degrau acima. Um
upgrade, se quiserem. Desconfiar não é crime; pelo contrário, a história dos direitos individuais e a história da liberdade ensinam que desconfiar é, mesmo, um dever.
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