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O ‘caso Esmeralda’ não é folclore. Convém, para pessoas sensíveis e cosmopolitas, pensar que o drama de uma criança dividida por duas famílias é apenas uma coisa provinciana e pouco digna de figurar nas páginas dos jornais – quanto mais da nossa vida. Mas acontece que os tempos modernos não são apenas uma metáfora para nos mostrarmos mais luminosos e agradáveis. Com eles vêm as famílias monoparentais, pluriparentais ou o que quiserem – e novas formas de manifestar em público o afecto que nasce em privado. A história do nascimento de Esmeralda tem a ver com tudo isso e com uma soma de decisões judiciais que acabam por ser contraditórias ou discutíveis, quando pretendiam fazer justiça a todo o custo. Não há justiça nestes casos. Há apenas o sentimento do irremediável.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
José Eduardo Agualusa escreveu um livro notável, O Vendedor de Passados, em que o personagem principal se dispunha a isso mesmo – a inventar o melhor passado possível para cada um dos seus clientes.Quem não quer ter um bom passado, altamente recomendável? A luta política em Portugal, longe de esgrimir argumentos e propostas, vale-se frequentemente da trafulhice de combater o passado dos adversários (se possível esquecendo o próprio). É um método como qualquer outro, disponível nos manuais – mas há-de acabar por rebentar nas próprias mãos do utilizador. Há sempre uma vergonha escondida, uma distracção, um gesto menos próprio, uma coisinha humana e natural que atraiçoa os defensores da moralidade ou os super-homens impolutos. As pobres viúvas de Lorca são o pior da política.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
José Medeiros Ferreira chamou a atenção para este assunto no sábado passado: a Comissão Europeia, para que não a acusassem de não prestar atenção aos detalhes, já enviou para o Parlamento Europeu uma proposta que autoriza a utilização de 'scanners' nos aeroportos. Para quê? Para ver os cidadãos por dentro – uma ideia que faria as delícias dos adolescentes de há uns anos quando se sonhava com câmaras fotográficas que eliminassem as roupas. Pois a Comissão Europeia consegue, por lei, obter aquilo que nós apenas imaginávamos na nossa adolescência cheia de hormonas, libido e apetites. Blimunda, a personagem de Saramago, no Memorial, também via as pessoas por dentro desde que estivesse em jejum. Para a Comissão Europeia basta-lhe uma lei. Não precisa de imaginação nem de juízo.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Vivemos em turbilhão. Depois da “onda de criminalidade violenta” durante o Verão, veio a crise financeira no Outono, com a questão dos combustíveis pelo meio. Não sabemos o que nos reserva o Inverno (Steinbeck escreveu “O Inverno do Nosso Descontentamento”), mas de uma coisa podemos estar certos: dificilmente iremos encarar o futuro com a mesma leviandade. As crises obrigam-nos a repensar o modo de vida e a forma como lidamos com as coisas banais: o preço da bica, as compras de Natal, a roupa do ano passado, os gestos menores do dia-a-dia. Há quem se lamente de que, assim, ficamos mais conservadores. Se for verdade, é uma vantagem. Os ‘optimistas’ têm mais desilusões; os ‘pessimistas’ estão mais preparados para os dias que aí vêm. É uma verdadeira lição de teoria política.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Enquanto os EUA se iniciam nos mistérios da nacionalização da banca (uma perversidade que vai sair cara), aqui os tempos não estão para minudências. O presidente da Associação de Bancos, por exemplo, diz que a abundância acabou, sem que ninguém lhe tenha chamado astronauta, porque abundância, propriamente, não tem havido. A abundância está sempre a meio caminho da crise num mundo em que se pensa que o crescimento é infinito e que o crédito é o outro nome da riqueza. As pessoas querem uma vida mais fácil. Tem sido, mas para os gastadores, para as companhias de crédito e para os que ganham dinheiro rápido – as empresas e as pessoas têm de trabalhar no duro para sobreviver. É estranho, por isso, que sejam empresas e pessoas a pagar os desvarios de quem esbanjou quase tudo.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
“Os municípios do interior estão despovoados de massa crítica, investimento e receitas próprias”, diz António Edmundo, presidente da Câmara de Figueira de Castelo Rodrigo, que decidiu (e bem) tomar medidas para fixar jovens casais no seu concelho. É uma tarefa do outro mundo, tendo em conta as armas de que dispõe a câmara local: prémios de 500 a 750 euros para cada criança que nasça na vila ou para cada casal que decida fixar-se no interior da barreira de xisto que delimita o concelho. Com essa quantia, António Edmundo luta heroicamente contra a força do destino, que é animada pela inércia e pela concorrência desleal das cidades do litoral. Todos gostávamos de ter uma palavra de esperança para Figueira de Castelo Rodrigo; mas, sinceramente, os tempos estão difíceis. E caros.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
De repente, à esquerda e à direita surge uma onda de solidariedade com “as vítimas” do desastre financeiro que está à vista. Os mais “solidários” voltam-se contra o Congresso Americano que desobedeceu aos chefes partidários e achou que não devia aprovar o plano de salvamento que lhes era proposto lá de cima. Os “solidários” acham que é egoísmo não querer dar uns dólares ao vizinho. O problema é que não se trata de “uns dólares” – são, pelo menos, 2500 por cada cidadão americano. E não é ao vizinho – mas sim aos bancos que usaram e abusaram do risco. Não é preciso perceber de economia para saber que são os contribuintes que vão pagar a despesa; por isso, a falência desses bancos não me parece mal. Se é preciso aplicar o dinheiro dos contribuintes, há muito por onde começar.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Para já, a crise financeira chega a Portugal como um eco de falências e turbulências na bolsa. O “cidadão médio”, no entanto, faz contas. E são simples: afastado da ribalta da grande especulação, limita-se a recordar as aulas de contabilidade salazarista, que é a mais apropriada para o seu caso – não pode gastar mais do que ganha. Bem vistas as coisas, pela lógica dessa contabilidade, também os bancos não podiam emprestar mais do que tinham, para que os clientes não pudessem dever mais do que podiam. O alto capitalismo vive na corda bamba, o que é bom para grandes contas e riscos incalculáveis, mas fatal para a economia de quem vive com decência. E é isso: o “cidadão médio” faz contas: deve o telemóvel, parte da casa, parte do carro, parte das férias. Ou seja, aprende o que já sabia – que um almoço nunca é de graça.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
O presidente da entidade que vigia a comunicação social, a ERC, acha que o programa da SIC ‘O Momento da Verdade’ é “uma forma de prostituição”. A acusação é grave e merece ser lida com atenção, vinda de quem vem. Os dicionários são claros sobre o que significa “prostituição” e a palavra deve ser utilizada com cuidado. Passei os olhos sobre o programa e parece-me – estando o mundo como está – que há evidente exagero na designação, mas não o verei mais. Um dos problemas é que o Sr. Nogueira, o mais criticado dos concorrentes, não tem a aura de prostituto de luxo, que se desculpa em situações semelhantes, quando os personagens se vendem por muito mais, mas com aplauso chique; o outro problema chama-se “comando da televisão”. Tem uma série de botões e serve para mudar de canal.
Da coluna do Correio da Manhã.]
Um deputado social-democrata moderninho diz que a nova lei do divórcio é «uma inovação» no País face à legislação europeia. Pode ser. Mas o espírito das leis é uma coisa – e a aplicação é outra. O legislador (o Parlamento, enfim) devia pensar no assunto em vez de aprovar leis feitas para um mundo ideal onde habitam pessoais ideais e em condições ideais. Nunca é assim. As pessoas concretas, os seus problemas e a maldade habitual acabam por lutar contra as leis para serem mais felizes ou aproveitar-se delas para passarem adiante. Pode ser que eu esteja a ser conservador mas não tenho medo da palavra; simplesmente, basta imaginar divórcios litigiosos concretos (agora exterminados por diploma) para perceber que quem vai sofrer são os mais fracos. Neste caso, as mais fracas.
Da coluna do Correio da Manhã.]
Grande parte da «crise actual do capitalismo» ainda não está a ser sentida pelo cidadão comum, para quem as designações de Merrill Lynch ou Lehman Brothers ou Freddie Mac vêm de um universo que apenas se conhece através da imprensa económica. Mas é esse 'cidadão comum' (eu, o leitor, o seu vizinho) que há-de pagar as favas depois de perceber como se devolve a 'teoria do dominó'. Por um lado, os acontecimentos minam a confiança no sistema financeiro; por outro, mostram que não é possível prolongar artificialmente a existência das corporações (como Merrill Lynch ou Lehman) que se portaram mal ou arriscaram em demasia; não há como evitar-lhes a falência. As leis da vida são cruéis, e convém um mínimo de sensatez na gestão das nossas economias. É essa a lição a retirar, como sempre.
Da coluna do Correio da Manhã.]
Ninguém se tem queixado tanto da direita como a própria direita, a avaliar pelo relativo desconcerto que varre o PSD e o CDS. Em cada um dos partidos há demasiada gente a querer coisas demasiado diferentes e, em alguns casos, contraditórias – o que nos lembra que nada é eterno, tanto na vida como nos partidos políticos. Ao fim de trinta e cinco anos de existência, nada obriga (salvo a lealdade aos “interesses” e à lista de militantes) pessoas adultas e alegadamente responsáveis a estar num partido que gostariam que fosse totalmente diferente. Para evitar que esses dois grupos continuem a devorar líderes insatisfeitos e a produzir militantes ressentidos ou apenas zangados, não é absurdo que se pense, finalmente, em criar outros partidos. Ficava tudo esclarecido. Ou então não.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Graças à Agência Lusa, fiquei a saber que Vila Nova de Foz Côa vai este ano aderir ao Dia Europeu sem Carros, no sentido de “uma política mais sustentável de transportes”. O leitor não sabe, mas a notícia comove-me – nasci lá e sofri, como todos os seus naturais, para ter uma rede de transportes, sustentável ou não. Ainda há menos de 30 anos, familiares meus deslocavam-se dezenas de quilómetros a pé para tratarem das suas vidas e não havia “transportes sustentáveis”. A minha aldeia (o Pocinho) tinha comboio, que era “sustentável”; agora, o comboio vai desaparecer. Muita gente naquelas paragens, antes de se falar de “mobilidade sustentável”, sabia muito do assunto – simplesmente, há vinte anos, não tinha transporte. Eis como Portugal se transforma – pelo topo. Pelas palavras.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
O ministro Rui Pereira é uma figura simpática mas, ao que parece, ligeiramente desastrada. Falando sobre o caso do homem baleado anteontem, na esquadra de Portimão, o ministro comparou-o com o da execução de Lee Harvey Oswald (o assassino de J.F.K.) nas barbas do FBI e da polícia, numa esquadra de Dallas. O ministro merece que alguém o esclareça sobre o episódio – ou lhe explique que não são coisas comparáveis. Evidentemente que ninguém previa os tiros de Portimão, e ninguém culpa a polícia. Mas a evocação de J.F.K. e dos tiros que Jack Ruby disparou sobre Oswald pode transformar a tragédia, perigosa, num folhetim do anedotário nacional. Ou o ministro anda a ver filmes de mais ou, então, é um caso de stress pós-traumático, resultado da onda de crimes de Agosto. É do calor.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
O primeiro-ministro assegura que a melhoria de resultados nas pautas do ensino básico e do ensino secundário se devem às políticas educativas e aos investimentos realizados pelo seu governo. Lamento desmentir esse contentamento e tão largo optimismo mas a verdade é que tanto eu como o primeiro-ministro sabemos que as políticas educativas não produzem resultados de um ano para o outro; tal como ambos sabemos que os investimentos em educação levam anos a ter algum resultado e que isso não significa mais dinheiro. Portanto, é preciso outra explicação. Eu dou-a de graça: a melhoria de resultados existe porque os dados foram propositada e antecipadamente falsificados por provas demasiado fáceis, realizadas com o propósito de conseguir estas belas estatísticas. Ambos o sabemos. Todos o sabemos.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Ontem, os jornais noticiavam que os partidos estavam de acordo com a prisão preventiva em caso de violência doméstica. Na verdade, de entre os crimes contra as pessoas, a violência doméstica é o mais abjecto – sobretudo a que é dirigida contra velhos e crianças, que não podem defender-se nem têm voz. Mas a preocupação central é com a relação entre maridos e mulheres. Fico sensibilizado mas acho que o importante é mostrar que os maridos e as mulheres podem lutar pela sua dignidade sem que os políticos enobreçam o estatuto da vítima. Um estudo da Universidade do Minho diz que 25% dos jovens entre os 15 e os 25 anos já foram vítimas de violência numa relação amorosa. Sovas, murros, pontapés e sexo forçado começam na adolescência. Os políticos que tenham cuidado e estudem.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Somos controlados pela Via Verde, pelo Cartão Único, pelo trajecto dos cartões de crédito, pelos cartões magnéticos dos hotéis, pelo acesso às nossas contas e impostos, pelos registos nas cartas de condução, pelas fichas clínicas (que não são sigilosas), pela ficha de cliente de uma loja – e agora também pelo chip electrónico na matrícula dos automóveis. A nossa vida está na mão de pessoas que não conhecemos mas que nos conhecem bem e que se escondem nos arquivos do Estado. Não é uma invenção da China, do Dr. Salazar ou da velha URSS – é um sistema de vigilância criado pelas ‘democracias liberais’. Há quem argumente que ‘quem não deve, não teme’, lema dos pobres de espírito para quem a vida não vale nada. Entrámos na era da desconfiança. Também nós devemos desconfiar.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
A Câmara de Pedrógão Grande vai transformar dez escolas do ensino básico, desactivadas por falta de alunos, em alojamento para turismo rural (excepto uma que vai para sede da Filarmónica). É uma boa opção, muito louvável. Há mais escolas à espera pelo país fora – e, como são das antigas, a construção é boa e sólida (as escolas da democracia são caixotes apodrecidos, feios e sujos). Portugal encontra finalmente um sentido para o seu destino: transformar-se em entreposto turístico. Veja-se o ministro da economia, que recebe estrelas como Deneuve ou Phelps para conseguir uma promoçãozinha do país na imprensa internacional, na esperança de isso trazer mais turistas. Talvez eles venham e comprem mais escolas abandonadas, que finalmente terão alguma utilidade para a pátria.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
Marco Fortes (com quem fiquei a simpatizar) foi recambiado para Lisboa, como bode expiatório, e a honra do comandante Vicente de Moura estava salva porque ia retirar-se e o campeonato de futebol estava aí. Mas Nelson Évora ganhou a medalha e estragou tudo: o comandante já admite que pode ficar e a pátria está salva com Vanessa Fernandes a segurar a bandeira. Está mal. Já estávamos todos contentes com a pulhice que tinham feito a Marco Fortes (que não é tão bonito como Naide Gomes) e agora é isto: vamos ter de aguentar esta gente no Comité Olímpico, a brincar à batalha naval. Bons tempos em que gostávamos das nossas derrotas. Agora contentamo-nos com uma medalhinha para salvar a pátria. A propósito: viram a paraguaia lançadora de dardo? Quantas medalhas não valia?
[Da coluna do Correio da Manhã.]
O Presidente vetou a lei do divórcio e meio país saltou a bradar contra “o conservador”. Toda a gente sabe que Cavaco é “conservador”, coisa que não faz mal ao mundo. O problema, isso sim, é a facilidade com que se fazem leis que partem do princípio de que as pessoas são generosas, boas e andam carregadas de amor. Não andam, mas isso é assunto delas. O Estado não tem nada de legislar sobre afectos & amor – tem de limitar-se a salvaguardar contratos. Como o do casamento. O amor, a afectividade e o ódio não são assuntos do Estado nem do parlamento. Que duas pessoas deixem de se amar – acontece a cada hora; que uma delas decida deitar fora um contrato que exige responsabilidade civil, já deve ser ponderado. Os legisladores não têm nada que pregar sermões ou fazer terapia de casal.
[Da coluna do Correio da Manhã.]
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