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O escritor Afonso Reis Cabral enviou os seus livros para uma editora americana que, simpaticamente, recusou publicá-los. Porque são maus? Não. Porque, nos EUA, o tema de O Meu Irmão (Prémio Leya), uma personagem que sofre de síndrome de Down, “é levado muito a sério pelos média americanos”e pode chocar as pessoas; e porque o tema de Pão de Açúcar (Prémio Saramago) é Gisberta, o que não pode acontecer porque um autor cisgénero e heterossexual não pode escrever sobre uma personagem transsexual. Não se trata de censura – um editor só publica o que entende; mas é o retrato em que se transformaram sociedades tomadas por maluquinhos de anedota, onde a literatura deixou de ser literatura e passou a ser uma forma de sacerdócio e campo de concentração, e se preferem maus livros obedientes à maluquice, em vez de desafios à criatividade e à humanidade. É provável que isto se agrave, porque a universidade apodreceu com esta gente. Só os autores podem desafiar esses maoistas de jardim de infância.
Da coluna diária do CM.
Houve pormenores caricatos na manifestação e subsequente jornada campal de luta “pelo direito à habitação” que decorreu no sábado passado em Lisboa – mas o tempo dilui quase tudo, sobretudo as coisas risíveis, à maneira de uma comédia. Enquanto parte da imprensa treme de emoção à possibilidade de uma pinguinha de terrorismo, e outra parte sonha com vagas de “coletes amarelos” a incendiar apenas os carros dos vizinhos, os manifestantes do Martim Moniz queixaram-se de violência policial. Talvez por isso, recordei-me de Álvaro Cunhal e da frase que lhe ouvi durante uma entrevista de 1996, e que é (julgo) atribuída a Lenine, “A revolução não é um passeio na Nevsky Prospekt” (a principal das avenidas centrais de São Petersburgo). Já os nossos revolucionários, designados de “ativistas”, iriam de bicicleta ou trotinete, entrevistados por repórteres que recolheriam as suas queixas sobre empurrões de polícias. Claramente, não estão preparados para a revolução. Só se ela for transmitida pela televisão.
Da coluna diária do CM.
Não sei como se vulgarizou a palavra “inverdade”, mas isso levou a que a palavra “mentira” fosse desvalorizada – e deixou de ser um ferrete na biografia de alguém. Ao mesmo tempo, o mentiroso passou a ser designado como “pessoa habilidosa”, artista, maganão espertíssimo, malabarista cómico ou apenas malandrote – e passámos, coletivamente, a apreciar trampolineiros e mentirosos. Imaginemos um país em que a mentira passou a ser desculpada com bons artifícios; o mentiroso é denunciado em público nas televisões e nas manchetes dos jornais, mas passa em frente com o beneplácito dos eleitores, que encolhem os ombros. Um ministro, por exemplo, pode mentir descaradamente e dissimular (números, factos, estatísticas) quanto quer ou lhe convém em áreas tão diferentes como educação, habitação, economia, justiça, finanças, agricultura, forças armadas ou até diplomacia. Os eleitores não confiam mas encolhem os ombros. Achamos graça ao patife. Existem países assim mas, felizmente, não vivemos num deles.
Da coluna diária do CM.
Há livros e leitores cujo encontro desencadeia uma espécie de explosão. Isso acontece cada vez menos porque, com a idade e a necessidade de evitar desperdiçar o nosso tempo em coisas obtusas, selecionamos uma lista de cinquenta livros, talvez cem – e imaginamos que estes bastam para dar uma ordem ao mundo. Sendo um dos títulos mais influentes do século XX, Pedro Páramo, o pequeno romance do mexicano Juan Rulfo (1917-1986), está nessa lista, ao lado de textos de Borges, Shakespeare, Du Fu, Cervantes, Flaubert, Li Bai, Jane Austen, Vergílio ou Horácio. Fala da viagem de um homem para Comala, onde viveria ou teria vivido o seu pai; como sempre acontece, a tarefa leva-o a encontrar-se com os fantasmas do passado e, provavelmente, com as almas vivas desses fantasmas, o que é matéria prodigiosa. O livro de Juan Rulfo, agora reeditado (Cavalo de Ferro) com tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues, publicado em 1955, continua a libertar uma espécie de energia que une leitores especiais.
Da coluna diária do CM.
Esquerda ou direita, incompetência ou enviesamento, parvoíce ou maldade? Nunca chegaremos a acordo. Mas recordo a cena de há uns tempos, quando um editor português não encontrou melhor forma de apresentar um livro sobre o movimento “woke” e os delírios universitários da extrema-esquerda do que incluir, na contracapa, a citação falsificada de um jornal sobre os “excessos da direita modernista”. Distração? Uma estranha visão do “mercado ideológico”? Piscar o olho a leitores distraídos? Seja como for, anteontem a RTP também resolveu inovar nesta matéria ao retransmitir as declarações do ministro francês do Interior sobre os desacatos locais; de cada vez que o cavalheiro mencionava a “extrema-esquerda” ou a “esquerda radical” como autores da bandalheira, a legendagem traduzia, por seu lado, como “extrema-direita” ou “ultradireita”. Eu não ergo um dedo mindinho para defender seja o que for de extrema-direita, mas gostava que houvesse mais seriedade na informação da televisão pública.
Da coluna diária do CM.
Agora, os maluquinhos (representados pela editora HarperCollins inglesa, convém chamar os fascistas pelo nome) decidiram que os livros de Agatha Christie, ou seja, as histórias de Hercule Poirot e Miss Marple, devem ser atualizados, censurados e expurgados; a ideia é retirar expressões insultuosas e palavras excessivas, mostrando um género humano palerma, totalmente fofinho e carregado de bons sentimentos. O problema não está na “censura ideológica”, que em todos os séculos teve os seus canídeos amestrados. Bastaria comprar uma edição decente. O problema está na imundície que esta gente tem na cabeça e que a leva a ignorar que trocando um adjetivo, amenizando uma observação, censurando uma piada de Poirot – estão a alterar o sentido da personagem e do livro. Agatha Christie poderia não escrever muito bem, mas sabia o que fazia, ao contrário das cavalgaduras censórias atuais. Além do crime contra o direito de autor e a propriedade intelectual, há a ignorância alarve. Eles odeiam livros.
Da coluna diária do CM.
Ui. Na semana passada houve números sobre o “mercado português de livros” –
parece que “crescemos imenso”. Riam. Ora bem. Toda a gente já percebeu que a
maior parte dos dados sobre os extraordinários índices de leitura são manejados
para fazerem a felicidade do país, o bom espírito de editores (entre os quais me
encontro) e a alegria das instituições. A verdade é que há estudantes que terminam
a universidade sem ler um único livro e políticos que concluem uma legislatura nas
mesmas tristes condições. Por que teriam de se sujeitar a esse sacrifício tão penoso
e desaconselhado (posso explicar isso) pelo próprio Ministério da Educação?
Quando se fazem campanhas em defesa da leitura, lá vemos as mesmas velhinhas
de sempre e os mesmos chatos de sempre, muito felizes por serem “pela leitura”;
todos fingem esquecer que enquanto não houver uma política de leitura fomentada
desde cedo na escola, com seriedade e severidade, os números serão sempre
espremidos até ao zero. Nem são precisas estatísticas.
Da coluna diária do CM.
Quando Mao Tsé-Tung foi a Moscovo em 1949, Estaline humilhou-o: não o recebeu senão para uma reunião protocolar (não o levou à sua dacha nem falou com ele a sós, tudo o resto foi tratado entre Zhou Enlai e Molotov ou figuras inferiores) e há mesmo uma fotografia em que Mao tem a sua extraordinária cara de poucos amigos, os pés enterrados na lama, durante a visita a uma unidade de criação de porcos que Estaline lhe colocou na agenda oficial. Mao não esqueceu esses dias em que não foi recebido pelo “pai dos povos”. Exatamente 74 anos depois, Xi Jinping foi a Moscovo para o que se sabe. Mas há imagens que não se esquecem. Vão lá ver. Naquela longa passadeira no Kremlin que os dois percorrem depois do primeiro aperto de mão, qualquer politólogo ou psicanalista explicaria o que fez Putin: manteve-se ao centro e Xi teve de caminhar pela faixa lateral. Numa das fotos, ao fundo, desfocados, Lavrov e Medvedev riem-se. Fazem mal. Suspeito que em Pequim vão analisar cada fragmento destas imagens.
Da coluna diária do CM.
O primeiro livro da série Os Cinco foi publicado em 1942 quando Enid Blyton tinha 45 anos. Os velhos livros de Os Cinco e o Circo ou Os Cinco na Torre do Farol abriram as portas da adolescência. Eram básicos e juvenis. Estavam sempre em férias e já ninguém se lembra das aventuras, mas havia comida, acampamentos, intrusos e quatro miúdos. Agora, em Inglaterra, no Devon, as edições originais foram fechadas e mantidas longe dos leitores. Quem quiser ler, terá de usar edições censuradas ou adaptadas aos novos tempos, como se Enid Blyton tivesse nascido nos anos 70 e comesse quinoa. Ao contrário das bibliotecas que proibem livros (de Hemingway, Harper Lee, Faulkner, Melville ou Nabokov, por razões estapafúrdias), há uma violação da propriedade intelectual, do direito de autor e da sensatez. Censores aplicados, imbecis e sem humor mudam o texto, alteram as frases, e continuam a atribuir a autoria a Enid Blyton ou Roald Dahl seja quem for. Além de censura, é um roubo e um crime contra os autores.
Da coluna diária do CM.
A primavera de há 60 anos começou com um disco que hoje nos faz muito mais velhos – mas ligeiramente mais felizes quando o ouvimos, pela sua leveza, ritmo e certa inocência. Please Please Me tinha onze canções de que hoje recordamos a maior parte, da mais simples, “Love Me Do”, à mais complexa, “Ask Me Why”, ou à que mais repetiria “woo woo”, como “Do You Want To Know A Secret” (para não falar da versão muito dançável de “Twist and Shout”). Na altura não se sabia, mas a vida da música popular nunca mais seria a mesma depois do primeiro disco dos Beatles, lançado a 22 de março de 1963. A esta distância, há qualquer coisa de perdido nesta música jovial, juvenil e aparentemente inocente (já com o génio de McCartney e a ainda intensidade de Lennon); quando esquecemos o sucesso, o estrelato, as histórias pouco edificantes e as fraturas, fica uma nostalgia brava em relação àquele talento que não se esqueceu passados 60 anos. Ouvi-los hoje é um regresso aos gira-discos e à vida que não pode voltar.
Da coluna diária do CM.
Poderíamos falar da primavera – mas acaba de sair o Relatório Mundial da Felicidade para 2023, um índice que avalia o “índice de felicidade” em 137 países, e onde Portugal caiu do 34.º para o 56.º lugar, enquanto os países nórdicos se mantêm no pódio e à nossa frente estão países de uma mediania confrangedora, como a Finlândia (o primeiro), a Dinamarca, o silencioso Canadá, Malta, a Estónia, as Honduras ou o Uruguai. A culpa é dos políticos? Não, claramente, não. A constituição americana, por exemplo, menciona a felicidade, mas não a garante – e sim o direito a procurar a felicidade. Portugal tem uma doença grave: não quer ser o que realmente é e não se contenta com a felicidade; quer ser “o melhor do mundo” e há sempre uma cabeça tonta que nos garante que somos “os melhores do mundo”. Ser “o melhor do mundo” é triste e é um problema mental grave. Os otimistas profissionais não descansam enquanto não destroem a felicidade, a mediania, a cerveja gelada, a civilização e as coisas simples.
Da coluna diária do CM.
A ideia de que há pessoas que “dão figuras de romance” não tem a ver com o facto de serem exemplares do ponto de vista moral, político, ou até literário; seriam uns chatos; boa parte dessas figuras distinguem-se por terem vidas agitadas, aventurosas, controversas – e há outras que acompanharam os dois termos da equação e sabem juntá-los. José Luís Peixoto traçou esses dois lados da memória de Manuel Rui Azinhais Nabeiro num romance, Almoço de Domingo. Cada vida é obra da tentativa de lhe sobreviver com a graça da memória. Talvez precisemos de mais pessoas como o “senhor Rui”, como era conhecido na sua terra, Campo Maior, que não abandonou, e que lhe deve bastante. Talvez precisemos apenas de pessoas que imaginem um mundo melhor e mais belo, não apenas mais rico – e no qual “os vencedores” sejam discretos, generosos e valorizem a dívida que têm para com os outros. O problema dos novos ricos, em Portugal, é que desconhecem, em geral, a palavra “gratidão”. O “senhor Rui” era dos antigos.
Da coluna diária do CM.
Felizmente que Natália Correia – de quem ontem passaram 30 anos sobre a sua morte – gostava de ser chamada “poetisa” e não “poeta”. Não tendo precisado do dicionário para escrever ‘Mátria’ em 1967, também não precisou de autorização para ser livre e incómoda. Antecipou em público muitos combates, previu em privado muitas desilusões, e escreveu sobre ambas as coisas. Devia ser mais estudado o seu contributo para compreender Portugal, e é preciosa a ajuda de Filipa Martins, que escreveu a biografia O Dever de Deslumbrar (Contraponto), trabalho de vários anos e recolhendo todos os passos, confrontos, desafios, enganos, intuições, pequenas loucuras, sinais do talento e da coragem de Natália. É uma biografia que nos ajudará a perceber o papel da escritora num país entaramelado, infeliz e cheio de gente irrisória. Natália Correia era superior – e viveu exatamente assim, inclassificável. Talvez por isso, esquerdas e direitas se sintam tão incomodadas quando se fala em Natália. Dá para desconfiar.
Da coluna diária do CM.
Numa sociedade hiperssexualizada e histérica com a relação entre o sexo e a política, o escândalo dos abusos sexuais na igreja é como lava a descer do vulcão: leva tudo à volta porque se exige à igreja uma dignidade que o mundo perdeu há muito. Bom, foi isso que a igreja quis ser: uma excepção. Não é – mas é essa a sua matriz. A indignação presidencial abriu as portas para que a indignação banal se tornasse numa espécie de ‘grau zero’; doravante, tudo o que é menos do que isso (como este texto) corre o risco de estar na margem do condenável. Abusar de crianças é um crime abjeto e já aqui escrevi sobre o comportamento condenável de declarações da igreja ou de alguns dos seus bispos. Há 40 anos, pessoas como Sartre, Roland Barthes, Jack Lang, Louis Aragon, Jacques Derrida ou Michel Foucault – o estrelato da “vida intelectual” francesa, os mandarins – pediam a absolvição de pedófilos e a descriminalização da pedofilia. Nenhum destes nomes foi decapitado. O mundo muda devagar e depressa.
Da coluna diária do CM.
Quando alguém ouviu a frase “oxalá vivas tempos interessantes” estava, de certeza, a referir-se ao primeiro quartel deste século. Uma nova forma de fascismo cultural está para durar nas nossas vidas; confunde, propositadamente, gene e escolha, liberdade e submissão, verdade e aparência, evidências e desejos. Tenho-me divertido com textos publicados na imprensa portuguesa por jornalistas “muito da moda”, com veneração pelas enormes potencialidades das máquinas geridas por algoritmos que escrevem romances, música de elevador, rótulos de manteiga, poemas de homenagem a Lula, resumos de romances escolares, canções parolas – mas sobretudo livros, que até agora podiam estar a salvo. E espero pelo momento em que todos sejam incinerados em conjunto. Martin Amis dizia que se pode ser rico, ou famoso, ou qualquer outra coisa sem se ter talento – mas que não se pode ser talentoso sem ter talento. Até estes dias, era necessário talento. Agora, só é necessário falar-se de “género” e ser-se tolo.
Da coluna diária do CM.
A história vem contada no CM de domingo por Ana Isabel Fonseca: dois reclusos do estabelecimento prisional de Paços de Ferreira – Carlos Patrício e Eduardo Santos – falsificaram quadros de Mário Cesariny, Noronha da Costa, Cruzeiro Seixas ou José Malhoa e alguns deles foram vendidos cá fora (por um comerciante de arte caído em desgraça). Os preços eram baixos, mas cobriam as despesas de tela, papel, tintas e carvão que entravam na prisão como material inocente e destinado às horas livres dos dois pintores e falsificadores, que frequentavam a biblioteca do lugar para ler volumes de história de arte e pintura portuguesa. Numa série de televisão americana, os quadros seriam excelentes, os preços milionários e o destino dos falsificadores daria para duas temporadas antes de cumprirem pena e serem chamados por um museu. Aqui, as peças falsificadas estão no museu da PJ e os burlados não sei se terão coragem de admitir que foram enganados. Carlos e Eduardo davam uma boa dupla de personagens.
Da coluna diária do CM.
O verbo “querer” é um recurso importante da imprensa, tal como o “arrasar”. Não significam nem uma nem outra coisa. Fulano “arrasou” fulano, lê-se; vamos ver e fulano, que está de pedra e cal, inteiro, apenas foi criticado por vestir-se como uma galdéria, o que até pode ser um elogio – e não arrasado como um castelo de areia. Quanto ao “querer”, é um verbo danado (lembram-se da canção de Caetano, “O Quereres”?) Uma pessoa entra num estabelecimento (que coisa maravilhosa, quando as lojas não eram ‘galerias’ nem ‘shoppings’) e quer um par de calças, um metro de nastro, um molho de agriões ou um fecho-éclair. E, realmente, quer. Poderíamos querer o euromilhões, mas temos a noção das coisas. Outra coisa é quando a imprensa diz que o Presidente quer rapidez no afastamento dos padres pedófilos, na execução do PRR, na venda da TAP ou no apuramento de responsabilidades. O verbo “querer”, aqui, não é o verbo “querer”: é uma fórmula que os gramáticos entendem e que o PR não está disposto a explicar.
Da coluna diária do CM.
O bispo de Leiria foi o responsável por uma das mais flagrantes oportunidades perdidas da igreja católica para recuperar alguma dignidade aos olhos dos seus fiéis. Ouvi em direto as suas declarações em nome da Conferência Episcopal e senti que se tratava de arrogância (diante do tema), indiferença (diante das vítimas) e falta de empatia (pelo sofrimento dos outros). Mesmo para não católicos, a igreja é uma entidade ligeiramente acima de todas as outras – por isso se é tão exigente em relação a ela, e muitos dos seus bispos deviam ser reformados compulsivamente por falta de jeito. D. José Ornelas abusou: comportou-se como o CEO de uma empresa manhosa que deseja aliviar prejuízos; quis defender-se como se defendem os políticos manobristas. Ontem, afirmou ter sido um momento infeliz e não ter conseguido “passar aquilo que levava para dizer”. Não sabemos o “que levava para dizer”; mas é necessário desdizer-se com gravidade. É preciso que reconheça que, além das palavras, as suas ideias eram perversas.
Da coluna diária do CM.
A Amazon já pôs à venda livros escritos com ajuda do ChatGPT, a máquina de “inteligência artificial”, e um deles é sobre o ChatGPT (além de romances, ensaios e inanidades sobre como devemos viver e sermos bons). Acho maravilhoso. Ao contrário das associações de escritores que protestaram e veem o futuro negro por isto poder matar os autores, acho que o ChatGPT substitui com grande vantagem de preço os “leitores de sensibilidade” que censuram livros e trabalham para as editoras progressistas e “inclusivas”: um autor (por assim dizer) introduz a carne picada e sai a salsicha fresca. Escreve dez romances pós-coloniais por hora. Não comete “crimes ideológicos”. Não diz coisas sexistas e evita que tenhamos de ouvir autores e autoras e autorxs a transformarem-se em ativistas de pacotilha. Não faz ‘apropriação cultural’. Trabalha respeitosamente as metáforas e faz notas de rodapé acerca de como o mundo deve ser segundo o algoritmo ideológico e sexual da moda. Finalmente uma solução para a estupidez.
Da coluna diária do CM.
Eu poderia falar das personagens femininas que aparecem nos romances de Agustina Bessa-Luís (de quem assinalamos o seu bravo centenário), Camilo, Eça, Lídia Jorge, Saramago, Maria Velho da Costa, Isabel Barreno, Carlos Oliveira, José Cardoso Pires – cada autor à sua maneira, mas talvez por esta ordem. Não apenas bondosas, românticas, tradicionais, “companheiras” (como diziam os machistas de esquerda), “esposas” de famílias silenciadas, domésticas e desenhadas a aguarela; pelo contrário, devastadoras, poderosas, rebeldes, perversas e dignas de tempestade. E poderosas de novo, sobreviventes, carregando séculos de resistência, trabalho, abnegação sem recompensa, sacrifício sem elogio. A questão não é “o género”; na vida prática é a justiça (punição severa e grave da violência, salários iguais – é assim tão difícil); na literatura, que foi o exemplo que dei, são os retratos que ficam: mulheres que todos os dias deixam uma marca em algum lado. E um dia não ser necessário falar disto nunca mais.
Da coluna diária do CM.
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