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Identidade.

por FJV, em 23.01.23

Os leitores conhecem a história: a meio de uma peça de Almodóvar houve protestos porque uma personagem transsexual estava a ser interpretada por um homem não transsexual, coisa que acontece bastante no teatro. Seja como for, o protesto resultou, porque os protestos sobre sexo resultam quase sempre: o ator foi retirado do elenco e substituído por um ator transsexual, não sei se bom ou mau. Isso não me comove; mas preocupa-me a ideia de que uma pessoa só pode ser representada por uma pessoa idêntica; o romance de uma lésbica só pode ser traduzido por uma lésbica, um poema em língua ‘inuktitut’ só pode ser lido por inuítes da Gronelândia e uma história gay não pode ser escrita por um heterossexual, o que eu acho chato, reacionário e um tanto cavernícola. Isto é um pouco estranho porque, justamente, o teatro trata da usurpação de identidade. Nos protestos alguém disse que o teatro não é só “um palco”, ou seja, arte e representação, mas também “uma plataforma”, ou seja, um megafone. Deixam-me muito mais sossegado.

Da coluna diária do CM.

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Os teóricos.

por FJV, em 20.01.23

A “defesa da escola pública” tem sido uma bandeira das ruas e de muita opinião chique (que tem os seus filhos nas escolas privadas). Basicamente, não é uma defesa da qualidade da escola pública – e apenas do controle da escola pelo ministério da Educação e pelo Estado em geral. É um aperitivo ideológico e erótico – dizem a palavra “público” e sentem um arrepio na espinha. O combate pela escola pública deve insistir no respeito pelo trabalho dos professores, na avaliação da qualidade dos programas de ensino (mesmo na versão maneirinha das “aprendizagens essenciais” decretadas pelo ministério). Os burocratas que enxameiam o ministério são os culpados pelos contínuos retrocessos de aprendizagens em matemática e línguas, em filosofia, em história, em literatura e língua – ao arrepio do que se faz em países que insistem na valorização do trabalho, da disciplina e do rigor na avaliação e na aprendizagem. É esse monstro de teóricos patetinhas que tem vindo a destruir a escola pública com a sua manipulação.

Da coluna diária do CM.

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Adolescência e poesia.

por FJV, em 19.01.23

Na exposição que hoje é inaugurada na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, há
várias versões de um poema que, originalmente, levava o título “A Ciência
Suprema” e que terminou como “A Arte dos Versos” – estão expostas sete dessas
doze versões e servem para verificar até onde Eugénio de Andrade levava a
depuração, um certo amor pela exactidão e um rigor obstinado que se mantém até
encontrar o verso ideal, que traduz uma harmonia invisível e indizível, a imagem
que nos transporta até ao outro lado da linguagem. Eugénio de Andrade (1923-
2005), cujo centenário se assinala hoje, foi um dos poetas mais lidos, amados e
imitados do seu tempo. A sua obra justifica-o: fala de uma intensa humanidade das
coisas, de uma busca do paraíso e do lugar onde só o amor é possível. Os seus
primeiros livros transportam uma inocência que nunca regressou e uma chamada
aos sentidos do leitor. Com o tempo, a sua gramática tornou-se mais previsível mas
nunca perdeu o sabor adolescente, nem o desejo de eternidade.

Da coluna diária do CM.

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Os inimigos da escola pública.

por FJV, em 18.01.23

Na sua coluna de segunda-feira, Armando Esteves Pereira escreveu no CM o essencial sobre a questão do ensino em Portugal: é necessário pensar nos alunos e na quebra dos seus níveis de aprendizagem. O assunto exige que se volte a ele uma e outra vez. Nesta crise “da escola” há duas dimensões: uma, estritamente sindical (a que não é estranho o aparecimento de um novo sindicato) e onde os professores têm argumentos sérios; outra, mais geral, é a da destruição da escola pública por uma série contumaz de dislates pedagógicos e científicos. Este é o monstro que espreita e que domina tudo: fim da exigência, desrespeito pelo papel dos professores (porque se as escolas têm funcionado isso se deve aos professores apesar dos ministérios da Educação), manipulação crescente (agora com autarcas?), linguagem burocrática – até chegarmos, com o último ministro, ao ponto de degradação de reduzir tudo a “aprendizagens essenciais”. É isto o que eles fizeram e é vergonhoso. São eles os inimigos da escola pública.

Da coluna diária do CM.

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Há uma beleza que não serve apenas para pendurar na fotografia.

por FJV, em 17.01.23

Gina Lollobrigida - Go Naked in the World (1961) - Photographic print for  sale

As jovens atrizes que me perdoem mas há uma beleza que não serve apenas para pendurar na fotografia. Tem palavras e sombras à mistura. Lauren Bacall nunca seria a beleza que foi sem ter humilhado Bogart naquela cena do assobio. Há Grace Kelly a cuidar de Jimmy Stewart, Rita Hayworth a roubar-nos em A Dama de Xangai ou Gilda, Gene Tierney capaz de nos assombrar em Laura, Ingrid Bergman a espalhar a sua melancolia e culpa, Deneuve carregada de dissimulação, a lista seria fatal e incluiria Françoise Hardy – e Gina Lollobrigida (1927-2023), por exemplo, que morreu ontem em Roma, aos 95 anos. Pobre Gina – contracenou com os melhores, de Bogart a Mastroianni, de Steve McQuen a Frank Sinatra ou Rock Hudson, mas cujos filmes, ai de nós, hoje estão justamente esquecidos. Havia nela uma beleza calculada e sensual, que não precisava de amparo coreográfico. Vê-los, hoje, é regressar àquele mundo do pós-guerra, opulento e confiante, não sei se me faço entender. Era essa a felicidade de vê-la no ecrã.

Da coluna diária do CM.

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Sontag.

por FJV, em 16.01.23

How Susan Sontag Taught Me to Think - The New York Times

Em 1959, aos 26 anos, Susan Sontag (1933-2004) chegou a Nova Iorque decidida a ocupar um lugar na “vida cultural” da cidade – o que significava ser o centro das atenções, aparecer nos jornais, frequentar os lugares da moda, escrever coisas provocantes, estar com gente famosa, ser alvo de falatórios sobre a sua vida sexual. Conseguiu tudo. Tinha estudado em Chicago, na Califórnia, em Harvard e, depois, na Europa (Oxford e Paris). Era precoce e entrara aos 15 na universidade, passando da literatura à psicanálise, dos clássicos à política, da filosofia ao cinema, interessando-se pela doença e pela fotografia, estabelecendo pontes entre continentes que pouco se comunicavam. Os “estudos culturais” inscreveram o seu nome no Olimpo. Sontag era esquerdista – um vício novaiorquino –, acreditava que a cultura popular merecia tanta atenção como Aristóteles, mas não queria destruir a erudição e sim mudar-lhe as coordenadas. Foi um dos nomes mais influentes do ensaísmo do século XX. Completaria hoje 90 anos.

Da coluna diária do CM.

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República da vulgaridade.

por FJV, em 13.01.23

Outro dia escrevi sobre a recusa dos líderes dos três maiores partidos em falar sobre os livros que gostariam que lhes oferecessem no Natal (nenhum, suponho). Nas “redes” houve algumas rezinguices subordinadas ao tema “isso não faz deles piores políticos”. É falso. Thomas Jefferson (1743-1826), que foi o 3.º presidente dos Estados Unidos, tinha 6500 livros. Para a época é monstruoso. Franklin D. Roosevelt (1882-1945) possuía cerca de 15 mil. Mário Soares era um acumulador de livros, mas as bibliotecas de De Gaulle e Mitterrand eram notáveis e estavam lidas. As bibliotecas da Roma imperial devem muito a Júlio César e aos generais que regressaram à capital e queriam prestígio. As bibliotecas notam-se. Quem visitar as páginas dos discursos parlamentares da última década há de registar uma grande pobreza de referências e de gramática, a falta de vocabulário, a má oratória geral e a repetição de palavreado da treta, própria de cabecinhas pobres e sem leitura. É a República entregue à vulgaridade.

Da coluna diária do CM.

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Videopoder.

por FJV, em 12.01.23

Há, em Espanha, um projeto muito polémico para uso de tecnologia de reconhecimento facial – a Polícia Nacional e a Guardia Civil passarão a vigiar o país através de câmaras de vídeo já este ano, e prometem fiabilidade e boa cobertura do território. Lembro-me de várias notícias aterradoras e de documentários apocalípticos sobre o uso dessa tecnologia na China; porém, não é preciso ir tão longe: qualquer visita a Londres, por exemplo, mostra as câmaras de CCTV (circuito fechado de televisão) penduradas sobre cada ângulo da cidade, o que tem inspirado vários argumentos de filmes e séries policiais sobre vigilância dos cidadãos, violação da vida privada, perda de anonimato, eliminação ou distorção de dados pessoais. Depois de Espanha, se a coisa pegar, virá Portugal. Há uns anos, um relatório elaborado na Universidade de Toronto alertava para a facilidade com que se pode ter acesso a dados de cidadãos nas redes governamentais de alguns estados – como o português. Fica o aviso para quando vier.

Da coluna diária do CM.

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A corja.

por FJV, em 11.01.23

Eusébio Macário

Ao romance Eusébio Macário (de 1879), Camilo Castelo Branco juntou um subtítulo, ​“História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais”: Eusébio é boticário, viúvo e pai de José Fístula, que se casará com Felícia, amante do padre Justino e irmã de Bento Pereira Montalegre, barão do Rabaçal, que por sua vez casará com Custódia, irmã de Fístula. Parece anedótico, mas um resumo é assim. Estamos no final do século XIX e o assunto – o dinheiro, a ascensão social, os apetites, os negócios políticos e carnais, as trocas de favor, a corrupção generalizada, os baronatos e as câmaras, o mau gosto, a falta de escrúpulos – parece tão vasto que no ano seguinte Camilo lhe publica a continuação, com o sugestivo título A Corja, onde os personagens se sujam mais e se salvam sem castigo. Passado século e meio, recordo as palavras de Tomás da Palma Bravo, protagonista de O Delfim (1968), de José Cardoso Pires: “É o preço. Para haver Jaguars e safaris foi preciso aceitar esta trampa toda.”

Da coluna diária do CM.

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O Brasil, coitado.

por FJV, em 10.01.23

Não tenho muitos comentários sobre o vandalismo de Brasília e o seu rasto de destruição e baixeza. Vejo as imagens com um misto de repulsa e de comiseração, de vergonha e de rejeição pura e simples. Edifícios vandalizados, peças de arte destruídas ou danificadas, espaços nobres entregues à turbamulta, a covardia e canalhices de mentores ausentes – e, sobretudo, o chapéu onde essa pólvora se alberga: a pobreza, a indigência mental, a crendice, o desrespeito pela democracia e suas regras, a futebolização da vida brasileira, o desregramento extremista, que periodicamente toma de assalto a política. Tal como nos EUA os moderados carregam o fardo da chocalhice de Trump, também no Brasil será necessário expiar a doença e o vírus que permitiram Bolsonaro e o seu desfile de indignidades. É muito provável que nada desse vandalismo tenha sido comandado ou planeado; isso torna-o ainda mais grave. Como se as labaredas da violência estivessem à espera de serem atiçadas. Vamos ver se há alguém inteligente.

Da coluna diária do CM.

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Luísa Todi, 270 anos.

por FJV, em 09.01.23

Luísa Todi

Se houvesse por cá uma televisão pública, talvez já tivéssemos uma série em redor da vida da cantora Luísa Todi (1753-1833), sobre cujo nascimento passam hoje 270 anos. É verdade que há um auditório e uma avenida em Setúbal (onde nasceu) com o seu nome, mas era bom conhecê-la como uma grande figura de romance. Eu escolheria como primeira cena aquela em que a corte tem de passar-lhe uma autorização para cantar em Lisboa (porque as mulheres não o podiam fazer), por ocasião do batizado de D. Teresa, filha do ainda príncipe D. João e de Carlota Joaquina, em 1793. Tudo isto depois de ter sido festejada por toda a Europa, de Madrid e Paris a São Petersburgo (foi para a Rússia a convite de Catarina, a Grande, que fez dela sua íntima durante quatro anos), de toda a Itália à Prússia (onde o rei Frederico Guilherme II lhe abre as portas dos palácios). Ou colocaria Beethoven a ouvi-la, na Alemanha – mas não deixaria que morresse cega e pobre em Lisboa. Para cantar, escolheria os Músicos do Tejo e a bela voz de Joana Seara, que em 2010 gravaram a música cantada por Luísa Todi há 250 anos. 

Da coluna diária do CM.

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Dizzy Gillespie (1917-1993).

por FJV, em 06.01.23

Dizzy Gillespie | Miles Davis Official Site

O que vai ficar disto tudo? É a pergunta de Dizzy Gillespie (1917-1993) numa interpretação e versão magníficas de “What is there to stay?”, uma gravação da altura em que o futuro mago do be bop tocava com Cab Calloway (uma história feia de conflitos que terminou com tiros e facadas, mas era o mundo do jazz), com Charlie Parker, e usava temas de Cole Porter, Gershwin, ou mesmo Jerome Kern – tudo diferente daquilo que o distinguiu nos anos futuros, com o seu trompete vibrante e desejoso de ritmos latinos (oiçam “Bopping the Blues” e estamos conversados). Antes disso, o meu período preferido: o de “All the Things You Are” (de Kern & Hammerstein, “Night in Tunisia”, “Alone Together”, “On the Alamo” ou o da sua bela interpretação de “I Waited for You” – onde a voz de Dizzy se aproxima da de um “crooner” poderoso e de coração despedaçado. Mas Dizzy não era um romântico (apesar de ter tocado “I Let a Song Go Out of My Heart”, de Duke Ellington) – ele gostava do trompete como um anúncio de tempestade, o que era um erro, mas era seu. Morreu precisamente há trinta anos, assinalados hoje.

Da coluna diária do CM.

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That‘s a post.

por FJV, em 05.01.23

Ao que eu cheguei. A pôr-me a defender o uso da língua portuguesa em vez do inglês para deslumbrados. Começou por uma brincadeira, quando ouvi uma entrevista de um desses parolos – ele insistia que tudo era um problema de “mindset”. Vá lá, de mentalidade. Por que não dizer “mentalidade” em vez de “mindset”? Eu sei que o inglês de economistas é uma regra de ouro internacional, mas não custa nada dizer “prazo” em vez de “deadline” ou “resposta” ou “comentário” em vez de “feedback”. Várias vezes uso a palavra “briefing” mas prometo que usarei “relatório”, “resumo”, ou “instruções”, ou outra coisa qualquer. Não vou comparecer a “meetings” mas sim a reuniões e não responderei a “calls”, mas a “chamadas” ou “telefonemas” ou “comunicações”, mesmo quando se tratar de comentar “orçamentos” – e não “budgets” – ou “roteiros” e não “roadmaps”. E, de qualquer modo, defenderei o fuzilamento de quem disser “aitem” em vez de “item”, porque latim é latim, mesmo que me peçam para “wording” em vez de escrever um texto, digamos, e não um “report”. A menos que seja para dizer “fuck off”, naturalmente.

Da coluna diária do CM.

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Olho no Brasil.

por FJV, em 04.01.23

Ao longo de um dia inteiro, as televisões entronizaram Lula como uma espécie de santo dos últimos dias. Foi um mau serviço prestado ao jornalismo, mas talvez ele mereça, por ser um homem de sorte. Sem ser ilibado das acusações que permanecem de pé, e de todas as outras que o têm por cúmplice, Lula regressou; haveria coisas bem piores, como uma vitória de Bolsonaro, que seria aterrorizante. Durante o mandato da figurinha repelente, o Brasil ficou mais inseguro, mais pobre, ignorando a palavra ‘estabilidade’ e, como era previsível, sem uma ideia do que era a decência no palácio presidencial. A história há de ser contada e não é agradável. Mas convém não esquecer que Lula foi o principal responsável pela radicalização que levou Bolsonaro ao Palácio Alvorada: hostilizou metade do país, deixou à solta um bando de salteadores, cortou laços com todos os moderados. Bolsonaro era o seu rival de eleição. A história do Brasil é assim há anos, colecionando oportunidades perdidas – e talvez não pudesse ser de outra maneira. Pessimista como sou, de vez em quando deito o olho para Geraldo Alckmin.

Da coluna diária do CM.

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O museu Berardo.

por FJV, em 02.01.23

A partir de agora, o Museu Berardo leva o nome de Museu de Arte Contemporânea/CCB, embora a coleção exposta do MAC/CCB continue a ser a Berardo – e os tribunais decidirão se a extinção da Fundação Berardo está ou não conforme. Mas uma coisa é certa: trata-se de uma mudança importante e justificada, que constitui uma reparação do dislate que atribuiu plenos poderes à Fundação Berardo e ao homem que tinha por costume tratar as ministras da Cultura por ‘babes’. Era cómico. Em troca, as ‘babes’ alinhavam na ideia: Berardo era uma figura intocável da cultura portuguesa e qualquer tentativa de a pôr na ordem constituía “um ataque à cultura”, mesmo quando se mostrava a evidência número um: que a coleção tinha sido dada como garantia de empréstimos bancários que não tinham nada a ver com “a cultura”. Quando o Estado anunciou a intenção de proceder a uma avaliação da coleção (cujo futuro já era periclitante), tratava-se de “um ataque à cultura”. Durante anos, o Estado financiou, com milhões, a construção da imagem e da marca Berardo. É a altura de fazer contas.

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Ratzinger.

por FJV, em 02.01.23

Quando o papa Francisco foi eleito, a extrema-esquerda tratou de inventar “ligações” do novo papa Francisco à ditadura argentina, à direita mais cavernícola e à multiplicação de pobres na América Latina. O Bloco de Esquerda praticou esse desporto de tiro-ao-papa com grande compenetração, usando e abusando da mentira (os textos ainda estão no seu site). Sobre o papa Bento XVI não foi preciso esperar pela extrema-esquerda: era lugar comum que, talvez por ser alemão, teólogo, moderado, pouco popular e não dançar no terreiro do populismo, Ratzinger era um nazi dissimulado, e a lista de horrores era atroz. Não sendo católico, sempre tive simpatia por este homem discreto e cultíssimo, um teólogo amável e informado – ele não estava vocacionado para “transformar a igreja”, mas para a fazer regressar a uma autenticidade que os tempos atuais desprezam e tornam impossível. Talvez um dia se perceba como Bento XVI era uma luz indefesa no Vaticano, sitiado entre dois fogos. Há textos seus, notáveis, que transportam esse brilho fora de moda, impopular, iluminando a busca por um Deus que fala.

Da coluna diária do CM.

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O balanço do ano com ópera bufa e comédia familiar.

por FJV, em 30.12.22

O balanço do ano devia incluir uma árvore genealógica cujas ramificações dariam conta de como somos poucos em Portugal, e de como “toda a gente” se conhece do colégio ou do bar da faculdade, do picadeiro ou do Algarve, do cabeleireiro ou do baile de debutantes. Eça tentou isso em Os Maias e A Capital, mas o desenho de hoje seria mais cómico, ao nível de Eusébio Macário, de Camilo, que nos legou um retrato jocoso do lamaçal. Alexandre Herculano, que era um homem grave e entufado, parece ter resumido um dos pontos de vista: “Isto dá vontade de a gente morrer.” Discordo. O ambiente é de ópera bufa e comédia familiar onde, como nos livros de Balzac, o dinheiro circula com ligeireza e o poder se negoceia entre vizinhos e conhecidos, porque é esse “o mundo que conta”. Nestes casos, o moralismo é a pior das respostas – melhor o riso para fazer o retrato. O país é pobre e as suas “elites” tratam-no com condescendência e impaciência. Têm o tempo a seu favor. Lembro que, em 2009, com o país pendurado por fios, o povo entregou o poder a Sócrates; não lhe deu a maioria absoluta por um triz.

Da coluna diária do CM.

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Linda.

por FJV, em 29.12.22

Como todos os portugueses, a princípio estranhei – mas depois trauteei “Un portugais”, “o português emigrante”, “A Mala de Cartão”, a canção de Linda de Suza. Tudo estava lá, em música ou em surdina, visível ou escondido atrás de palavras banais, até a referência afrancesada “ao Portugal”, que fazia sorrir os tugas sobre o analfabetismo emigrante, as casas tipo-maisons, o linguajar de romaria – até que a “valise de carton” se tornou emblema, não apenas da sua voz, mas das vozes dos portugueses de França, como uma vingança sobre a pobreza e a maldição. A sua biografia é de filme (que existe, tal como livros biográficos e autobiográficos); a sua morte é triste como o final do ano e uma das suas canções, "La fille qui pleurait" (‘A rapariga que chorava’); a sua voz, estranhamente, ainda me arrepia às escondidas quando a lembro a cantar em dueto com Enrico Macias, o franco-argelino, ou admirada por Charles Aznavour, o arménio. A França amou-a e tornou-a um emblema pop (Jacques Chirac apadrinhou-a), em Portugal era tão emigrante como do outro lado da fronteira, uma extravagância que nunca adotou como sua.

Da coluna diária do CM.

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Esclarecimentos.

por FJV, em 28.12.22

Se o leitor pensar que há no “caso Alexandra Reis” moscambilha e irregularidade, bem pode tirar o cavalinho da chuva: não há. O Presidente da República avisou: não há ilegalidade, a gestora só recebeu uma parte daquilo a que tinha direito. Alguém lhe perguntou? Não, mas ficou dito. Vem agora a segunda fase: a do escândalo e dos cabelos arrepanhados de horror. A agora secretária de Estado foi mandada embora da TAP ou “foi abraçar novos desafios”, como diz a TAP? Para resolver a questão e ficar tudo em paz, o PR diz que Alexandra Reis poderia ter o gesto bonito de devolver a quantia recebida. Errado. Porquê, se foram cumpridos “todos os preceitos legais”? Acontece que tudo parece estritamente legal, com ou sem a cobertura risonha ou preocupada das autoridades. E a terceira parte: os ministros que contrataram a gestora, para a NAV e para o governo, pedem “esclarecimento”. O primeiro-ministro, declarando surpresa, pede “esclarecimento”. O PR pede “esclarecimento” porque não se pode estar todos com notícias diferentes sobre os mesmos factos. Se isto não é Portugal, não sei o que pode ser.

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Mega.

por FJV, em 27.12.22

Um vendaval. Quando me lembro de como era trabalhar com António Mega Ferreira, lembro-me também dessa palavra: vendaval. E de outras: golpe de asa, génio, originalidade – e capacidade de relacionar as coisas que o apaixonaram: a literatura, a música, a pintura, o cinema, os livros, a curiosidade. Do jornalismo à edição, à escrita e à chamada “gestão cultural” (Expo, CCB, Metropolitana), Mega foi um erudito cheio de ironia e felicidade, que sabia entusiasmar e motivar os outros. E na literatura também (tem dois amáveis livros de contos, O Heliventilador de Resende e As Caixas Chinesas). Os seus derradeiros livros são testemunho de outras paixões: pela Itália e por Roma, pela pintura, pela literatura (e por Dante) e pelas palavras da nossa língua. Pessoalmente, devo-lhe o início da minha vida profissional e o gosto pelas pessoas cuja erudição não existe sem ironia e sem humor. António Mega Ferreira era um homem brilhante, um dos melhores da sua geração, que teve todo o poder em Portugal; é uma coisa cada vez mais rara hoje em dia, essa capacidade de imaginar e fazer mudar a realidade.

Da coluna diária do CM.

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