De Helder Fernando a 21.09.2008 às 04:29
O voto que mete medo
Por circunstâncias várias, iguazinhas a elevado número de cidadãos de nacionalidade portuguesa, não sinto nem nunca senti a totalidade das possíveis angústias ou alegrias próprias do imigrante ou do emigrante. Mas, claro, senti algumas.
Agora mesmo, sinto que a governança portuguesa continua a não perceber – pior, a não querer perceber – as realidades de quem faz a sua vida fora do País. A completa insensibilidade daqueles senhores e daquelas senhoras que vivem dos bitaites ” governamentais, pela real importância da grande comunidade portuguesa (e até da língua portuguesa) no estrangeiro, para além de absurdamente estúpida, chega a parecer arrogantemente provocatória.
De alguns milhões de compatriotas, somente uns 150 mil estão inscritos para votar; destes, uma reduzidíssima parte adere ao acto eleitoral. Os números falam por si. Para grande e óbvio contentamento da generalidade dos políticos profissionais em Portugal, tanto nos poderes como nas oposições. Nunca se mostraram consequentemente interessados em que as coisas fossem de outra maneira. A gente, cá de fora, sabe bem porquê.
Os portugueses fora de Portugal, embora, por motivos óbvios, continuem a enviar remessas, são sistematicamente empurrados para o abismo da indiferença em relação à Pátria. Resultado, mais de 80 por cento de abstenção for a de portas de cada vez que há eleições legislativas.
O que é que o governo – que, desde sempre, tem lidado gostosamente com essa realidade – vem propor? Curto e grosso: Acabar com o voto por correspondência. Por causa da “segurança”, do “risco da falta de transparência”, por o voto presencial ser um “acto mais digno”. E mais, a nova medida far-se-á contra os “sindicatos do voto”. Empolgante esta cruzada governamental lusitana.
Onde terão ido buscar a ideia? Que estudos foram feitos, onde, quando e por quem? Detectaram-se casos graves, em quantidade e estratagema, de fraude eleitoral, de falsificação, de desvio de votos? A favor de quem ou a desfavor de que força política? Nesta material, há arguidos, acusados ou já culpados?
Em Macau, mesmo nas rapidinhas visitas ministeriais cheias de graça, nunca ouvi falar de que o voto por correspondência era menos digno, nem da existência de “sindicatos do voto”; pelos vistos, nunca se sabe. Ou seja, eles lá sabem… (...)
Lá, pelas urnas da lusitana Europa, para além do projecto de lei do PS visando acabar com o voto por correspondência dos emigrantes, a partir das próximas legislativas, estão previstos outros procedimentos como o voto electrónico, por exemplo? Ou acordos com representações municipais no estrangeiro? É que existem situações em várias partes do mundo, de comunidades de eleitores portugueses a centenas e até milhares de quilómetros de embaixadas ou consulados. Mas isto são minuciosidades para a grandeza dos governantes.
A democracia sempre trouxe riscos. Vai daí, o PS do Rato estudou com profundidade outras propostas, outros mecanismos sugeridos, só pode ser. Ou, em vez de estimular ao voto e ao bom ambiente à volta do eleitor, propiciá-lo a percorrer cada vez melhor os caminhos da cidadania, da ligação à Pátria, não faz nada disso?
Será que o partido e o governo decidiram, desta vez assumidamente, dar uns atrevidos pontapés no rabo em mais de 4 milhões de portugueses que já não têm rabo para aturar tanta aparente incompetência, tolice e ignorância à solta?
Integração dos portugueses com direito a voto, na vida política da Pátria, porquê e para quê, se os centros de decisão em Portugal não gostam nem permitem?
Só se fosse para influenciarmos o eleitorado a acabar com os métodos habituais de reinar, e, pelo modo democrático, correr com aquela espécie de reinóis dos centros de decisão. E influenciarmos alguns políticos a serem melhores pessoas e melhores governantes. Disso têm eles medo, dá-nos uma trabalheira e temos bastante mais que fazer.
Helder Fernando
Publicado no jornal HOJE MACAU, 16-09-08