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Carta de António Sousa Homem para o lançamento do seu livro.

por FJV, em 26.06.08

Na impossibilidade de estar presente ontem, na sessão de lançamento do seu livro (na Pó dos Livros, em Lisboa), o Dr. António Sousa Homem enviou a seguinte carta:

 

 

 

«Não é todos os dias que um Homem abandona a sua província para se aventurar nos caminhos da Pátria. Desde 1985, quando me fixei naquilo que viria a ser conhecido, em família – e depois entre os meus leitores –, como “o Eremitério de Moledo”, que raras vezes tenho abandonado o perímetro do meu Minho. Ao contrário do meu Tio Alberto, que se enamorou várias e repetidas vezes de senhoras estrangeiras, e que por isso conhecia os melhores hotéis de Madrid, a cor do lago de Genebra, os sabores de Paris ou o odor do Mar Cáspio, eu segui o destino dos velhos Homem de antanho, que só conheciam ou o caminho para casa ou o mapa das deambulações do senhor Dom Miguel. O velho Doutor Homem, meu pai, foi outra excepção, só possível porque o meu avô acreditava que em Inglaterra existia tudo o que valia a pena existir, tirando as quintas do Douro – e, mesmo essas, eram propriedade de súbditos ingleses. Não falo das viagens da adolescência ou da primeira juventude, claro – que me levaram a conhecer o mundo e a saber manejar mapas, talheres e línguas estrangeiras. Falo da idade adulta – ou seja, da idade em que as ilusões não sobram e em que as desilusões já não pesam.
Quis o destino que este Matusalém minhoto tivesse de esperar pelos oitenta anos para revelar a baixeza da vaidade e da pequena luxúria. Refiro-me à escrita. As outras são mais antigas. Os culpados desses desvarios são pessoas generosas que supuseram, por uns instantes, que eu acrescentaria alguma coisa às suas revistas ou aos seus jornais. Um dia, a minha sobrinha Maria Luísa levou uns amigos para um fim-de-semana a Moledo e, entre eles, estava a Dra. Mónica Bello, que trabalhava no jornal O Independente. Ela tinha lido uns arremedos anestésicos de crónicas que eu tinha escrito uns anos antes – na sua generosidade, que atribuí à idade e ao pavor de que o passado não tenha existido, ela lembrava-se. Eu viria do passado para provar que ele existiu. A Dra. Mónica Bello expôs-me o essencial da minha tarefa e resumiu-me o programa: eu seria um cronista que daria voz à Direita portuguesa. Corei de vergonha porque sempre supus que já não havia Direita e que eu estava irremediavelmente sozinho, com a memória da Tia Benedita – a ultramontana da família –, e o retrato do senhor Dom Miguel pendurado na parede do velho casarão de Ponte de Lima. Ainda hoje tenho dúvidas.
Eu disse que sim, mas esqueci o compromisso; era um sábado de depois da Páscoa e havia mimosas no Minho. Uma semana depois, à terça-feira, telefonavam do jornal acusando-me de estar atrasado no envio. Aprendi que “estar atrasado no envio”, “recibo verde”, “fecho” e “esta semana fechamos mais cedo” eram o essencial do jornalismo. Pessoas como o Dr. Henrique Burnay e o Dr. Francisco Camacho, no O Independente, trataram de mim como se trata um avô – e o ilustrador Fernando Mateus mais de uma vez me telefonou a perguntar se o retrato estava conforme. Nunca lhe disse, mas aproveito esta oportunidade, para lhe dizer que o retrato saía sempre melhor do que o original. Mais tarde, no Diário de Notícias e no Jornal de Notícias, o Dr. Francisco Camacho ou o Dr. Pombeiro telefonavam à segunda-feira a perguntar pela saúde, o que queria dizer que eu estava atrasado no envio e a D. Vera tremia à ideia de decifrar a minha caligrafia. Ainda hoje, a Dra. Fernanda Cachão, no jornal onde escrevo, espera receber a minha crónica acompanhada de um atestado médico. Um dia, tive o prazer de conhecer Dr. Manuel Alberto Valente, que me convidou a reunir em livro as primeiras crónicas. Achei o cúmulo da vaidade e a demonstração de que a degradação da alma humana não tem limites, razão por que o livro se publicou. Deixei, enfim, de ter vergonha. Sou de uma família que vive noutro século, tirando os meus sobrinhos e as minhas irmãs. É um pecado como qualquer outro, mas não se pode fazer nada contra o pormenor.
Quando em Janeiro passado o Dr. Octávio Ribeiro me convidou a escrever no seu jornal, levou-me a jantar num restaurante onde tomei a última refeição – um jantar – antes de embarcar para o Brasil há mais de cinquenta anos, para onde minha mãe, Dona Ester, me enviara a fim de esquecer um amor não correspondido e um casamento desfeito. Na mesma sala, nessa noite, o velho Doutor Homem, meu pai, recomendou-me que me divertisse e não esquecesse a gramática. Tenho tentado, rodeado de livros, plantas e um país que já não conheço.
Com este livro, os velhos Homem de outros tempos coraram nos seus jazigos – mais uns tempos e seríamos democratas e acompanharíamos, com o pé, o ritmo do Hino da Carta.
A ideia de publicar um novo livro foi proposta pela editora Bertrand, a quem agradeço o convite, o risco e o facto de amparar a vaidade de um velho anterior aos romances modernos, à máquina de escrever e à sociologia. Apenas impus a condição de o livro ser prefaciado pela Professora Maria Filomena Mónica porque já tenho poucas oportunidades de partilhar a companhia de senhoras que gostaria de ter conhecido em algum tempo ou em algum lugar da minha vida. No seu livro Bilhete de Identidade, a Doutora Filomena Mónica recorda, a certa altura – eu lembro esta passagem porque a comentei com as minhas irmãs, que são ciumentas – as tardes que passou, em Inglaterra, bebericando brandy e lendo apaixonadamente os clássicos. É uma cena, como se vê, digna de O Monte dos Vendavais. No fundo, se o meu médico de Viana do Castelo, um benemérito local, não me tivesse imposto a interdição do brandy, era isso que eu faria, exactamente. Beber brandy e ler apaixonadamente os clássicos. Não é o resumo de uma vida, mas, para um conservador minhoto, é como se Dom Miguel não tivesse embarcado em Sines para o exílio.
A minha sobrinha Maria Luísa viria de Braga recolher-me e transportar-me para Lisboa. Ela faz isso com uma frequência semestral, só que o destino é São Miguel de Seide, e não Lisboa. Infelizmente, o Verão é como é. Além do iodo, que é o meu suplemento de vida colhido nos pinhais de Moledo, à beira do mar, ele traz problemas às coronárias. O médico receitou-me morigeração e repouso – e eu poupo-me para as ostras de Ribadeo, que hão-de chegar este fim-de-semana. Dona Elaine, a governanta de Moledo, aguarda que conclua esta nota para enviá-la antes do jantar.
Agradeço-vos a todos. Se o livro tivesse de ser dedicado a alguém, escolheria duas pessoas (além do velho Doutor Homem, meu pai, da Tia Benedita, que ao longo de oitenta anos nos protegeu do bolchevismo, da devassidão moral e do fantasma de Afonso Costa, ou do Tio Alberto, o bibliógrafo e gastrónomo de São Pedro dos Arcos). Falo da minha sobrinha Maria Luísa, leitora fiel e hóspede quase permanente de Moledo, a única esquerdista que sente alguma ternura pelo miguelismo da família. E falo de Torcato Sepúlveda, um jornalista que tive o prazer de conhecer durante um almoço nas margens do Minho. Descobrimos, ao mesmo tempo, que éramos leitores de Camilo e, provavelmente, os últimos portugueses a ter lido o Minho Pittoresco ou o Tristram Shandy. Infelizmente, a morte sabe onde nos vir buscar, mesmo que não estejamos preparados.
No resto, para além da vaidade de um pobre velho do Minho, resta-me esperar que a leitura do livro sirva de consolação a alguém que o leia. Tal como o iodo de Moledo.»
 

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53 comentários

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De Gonçalo Soares a 27.06.2008 às 13:53

Os tempos que vivemos precisavam mesmo de outro Fradique Mendes. Muito obrigado.
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De Lúcia a 27.06.2008 às 13:59

Francisco deu-se bem na pele do Sr. de idade?
Que engraçado, tal qua o Fernando Pessoa, isso é "cruz-credo" mal daquela casa. Estive a ler o Post da Ana Moura. Agora também é o Paulo G. ?
Que jovem nome arranjou! Parabéns.
Pena não lhe terem oferecido mel em vez de manteiga.
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De http://origemdasespecies.blogs.sapo.pt/8 a 27.06.2008 às 14:50

Venham-me acudir! Venham-me acudir!!!

Sou o Paulo G!! Sou o Paulo G!! Eu confesso SOU O PAULO G. O Viegas O Paulo G! O Francisco! O aulo G. O José! O José! O FJV!

Não. não sou o outro, o Custardoy!!! Não sou esse! Sou o Paulo G. Não! Agora, não estou a brincar!!!
O assunto é asério! Sou o Paulo G. O Xico! O Chico. O FVJ

Ai! ai! ai! Ai O LOBO!

Ai. Ai. ai. (Os lobos na alcateia comendo todos os mesmo OSSO. Dentro de uma casa. )
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De Cantarei até que a vós vos doa a 27.06.2008 às 16:23

Oh, acrobata com aspirações a humorista:
Isto é um banho frio para si, paciência. O FJV não é o Paulo G., olhei há pouquinho para o espelho, não vi barbas, quer que vá confirmar de novo?
Vai ter de orientar essa erecção para outra direcção. É a vida. Injusta, caprichosal, a condicionar-nos as erecções.
E Vossa Mercê, o que vê ao espelho?

Paulo G.
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De Acrobata sem rede - arrisca o tombo a 28.06.2008 às 00:52

Oh! Amigo "Paulo G." A gaff foi cometida. Tarde de mais. Para a próxima controle lá o impulso, porque há muitas formas de detectar o erro. A manteiga é matreira ... voçê escorregou. E já sabe que quem sabe sabe. ...
Quem julga que sabe tudo, sabe! Pois, mas não é assim.
Saiu-lhe mal a sua brincadira!?? É voce que tem que tratar do assundo! Eu acompanhei a história. Achei graça. E vi más jogadas e maus remates e ir à bola de olhos fechados, assim à Ricardo ... idem.etc.e.tal. Agora, eu, eu digo o que considero face ao lido. Não é o amigo que tendo jogado mal que me vai dizer o que eu Tenho para pensar, como pensar e como rematar o pensamento. E sabe, nem é assunto que me entusiasme. Sabe, até posso pensar outras coisas e noutras coisa. E voçê, não tem nada com isso. Ou quere agarrar, você, no machado e cortar-me o pensamento?
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De Rogo e interrogo a 28.06.2008 às 19:23

Teria de beber muito mau vinho ou arrancar 80% do cérebro para perceber essa humilde locução, e mais 19% para lhe perceber as intenções. Que longínqua ideia de que lhe quero cortar o pensamento, assim "íntegro" (sou um animal cínico...) já deixa a ciência a suspirar, há limites para o masoquismo.
Assim órfão de qualquer virtude, e herdeiro perverso de todas as invejas, estes momentos são o ponto alto da sua vida. Por isso por aqui está acampado, verdade? Quantos aninhos? Quarenta, cinquenta melindrados anos? Vá, lambuze-se, dê seguimento ao medíocre strip tease da sua alma. À falta de qualquer outra coisa, melhor, menos má, reviraremos os olhinhos, desejando-lhe um resto de vida mais ameno, ninguém merece viver num corpo assim amaldiçoado.

Paulo G. (ou... Custardoy? Serei eu bi ou tripolar? Terei eu dentro de mim a minha justa dose de Dr. Sousa Homem?), escorrendo manteiga.

(O circo dos horrores segue dentro de momentos, não se impacientem nem mudem de canal.)

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De Gonçalo Soares a 27.06.2008 às 18:13

Por favor, FJV, modere os comentários. Ou acabe com eles de uma vez. Está pr'aqui isto tudo sujo.

Um abraço
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De Ele é uma Sopeira! a 28.06.2008 às 03:30

Gonçalo Soares

Essa é de Mestre!
Transformares o gajo numa sopeira.

para tu te vires aqui escrever e ler as coisas.
eh eh eh eh

O desespero é grande. É, é.
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De elmanofilo a 27.06.2008 às 18:15

Dê-lhe com força, meu caro!
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De Anónimo a 27.06.2008 às 20:02

Torcato Sepúlveda era talvez o leitor que melhor sabia apreciar todas as subtilezas da escrita deste eremita miguelista.
f. madaíl
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De Helder a 27.06.2008 às 22:23

Pois, e infelizmente o Torcato nunca poderá esclarecer-nos se o doutor é mesmo um eremita e se o Francisco é mesmo um cosmopolita (na minha presunção, arrisco que esta afirmação está mais sujeita a moderação de comentários, do que a trica medieva que por aqui anda).

Fim de provocação: se o doutor é um heterónimo obra do Francisco, joder, é um trabalho fantástico...
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De Helder a 27.06.2008 às 23:27

Traído (traídos?) pelos amigos!

Leiam o que diz a Isabel Coutinho:
(Que eu adoro, que é linda, que adoro, adoro, adoro!, desejo...)

Na próxima semana o Dr. António Sousa Homem deixará Moledo e estará em Lisboa para, na quarta-feira, 25, às 18h30, na Livraria Pó dos Livros, lançar o seu livro Os Males da Existência. Crónicas de um Reaccionário Minhoto. A apresentação estará a cargo de Maria Filomena Mónica.

(Tentarei estar lá para ver como é que eles se safam disto…)

http://www.ciberescritas.com/?p=161&akst_action=share-this

Para ver como é que eles se safam disto? Pois, parece que escreveram a carta que vem neste post!

Então, é uma sociedade tipo Shakespeare?
É só o Viegas?
É só a Filomena?

Contem a verdade, contem a verdade, contem a verdade, contem a verdade, contem a verdadem contem a verdade, contem a verdade, contem a verdade!
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De Ámen, Homem a 28.06.2008 às 17:19

A Maria Filomena Mónica é só para nos confundir?


Fernando Venâncio
Mai 24th, 2006 at 21:36

Depois, sim, decerto. O Dr. Homem publicou crónicas na «Grande Reportagem». Mas anteriormente tinha-o feito no «Independente», onde também o Francisco José Viegas cronicava, sobre ervas, condimentos e afins.

Aliás, já reparou que onde escreve o Dr. Homem escreve também o Viegas?



http://aspirinab.com/visitas-antigas/fernando-venancio/o-decano-de-todos-nos/



Faltava a pergunta... fatal!
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De João Pedro a 28.06.2008 às 02:34

Tive a oportunidade de cumprimentar o Dr.Sousa Homem no último fim de semana, em Moledo. Ainda estava na dúvida se iria ou não a Lisboa, mas pelo seu aspecto algo em baixo, pareceu-me logo que não. Não deixou no entanto de ser polido e jovial, como sempre, apesar do nevoeiro húmido que atacou logo no início do Verão (embora depois se tivesse levantado, o que deu origem ao escaldão que apanhei).
Mentes lúcidas, experientes e sábias como as dele fazem falta. Que as suas crónicas continuem.
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De Faltava isto a 28.06.2008 às 23:34

Francisco José Viegas tem também um outro blogue escrito por uma espécie de heterónimo. O senhor que escreve, António Sousa Homem, é um fidalgo ultraconservador nortenho que eu me lembro de ler nas páginas do morto e enterrado “Independente”, quando era um grande jornal, durante o segundo mandato de Cavaco Silva, e a primeira coisa que as pessoas interessadas na situação política faziam à sexta-feira era ver qual a qualidade do trocadilho que vinha na primeira página. Acreditei até ao início de 2007 que o fidalgo existia. Afinal era o Francisco José Viegas.

Serafina Martins, investigadora do orientalismo na literatura portuguesa

http://www.hojemacau.com/news.phtml?today=16-04-2008&type=culture
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De Anónimo a 30.06.2008 às 11:47

Ai que homem tão fino, este Doutor Homem, um homem rodeado de doutores por todo o lado.

Wellington

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De C a 30.06.2008 às 13:45

Francisco José Viegas, quer então dizer que o meu amigo tem dois ou mais dentro de si? Santa ingenuidade alentejana, nunca tal passaria pela minha cabecinha. Logo eu que me ocorrem tantas coisas. Seu brincalhão. Mas tem a sua graça. Ai ainda que mal pergunte: é V. Exa. o Homem ou não?
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De Fulano de Sicrano a 01.07.2008 às 13:41

Até gosto de ler o Homem, que gente fina é outra coisa, já se sabe. Ainda bem que o dito Sr. não seguiu o exemplo do Tio Alberto que torrava nos « melhores hotéis de Madrid» as mais valias arrancadas à terra por pobrérrimos mas muito honrados e alegres camponeses que o Altíssimo botou no mundo para na sua tipicidade decorar as paisagens do « pittoresco» Minho . Também estamos cientes do azul do seu sangue. O Homem também não nos deixa esquecer do facto por um segundo. Só para nos roer de inveja com tanto status. O Homem até é modesto, que se o não fosse sacava dos pergaminhos que o ligam directamente ao Tio Carlos Magno.
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De Anónimo a 01.07.2008 às 14:28

O Senhor Homem nem desconfia, e guardem-se de lho dizer, mas é um personagem bastante ridículo. Ele intimamente pensa que é um Clássico, um Grand Seigneur do minho pittoresco, enfim... já dei boas gargalhadas à sua conta. Se foi feito pelo FJV, está um character bem construído, uma caricatura hiper-realista, parabéns.

Luis

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