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O regresso do Dr. António Sousa Homem, 6.

por FJV, em 02.06.08

 

«Todos os anos, nesta época, o velho doutor Homem, meu pai, suspirava por ostras. Era um queixume surdo e inclemente, que Portugal ouviu durante muito tempo. As ostras não eram propriamente um luxo na orla marítima da Galiza, e a recordação das suas viagens à Corunha ou a Vigo trazia-lhe aquela memória salgada arrancada ao mar frio deste lado da Península. A sua excentricidade chegou a levá-lo a Ribadeo, na fronteira entre a Galiza e o velho reino das Astúrias, porque lhe disseram que Don Álvaro Cunqueiro prezava especialmente essas ostras. Não quis deixar o crédito, inteiro e solitário, nas mãos do académico - e partiu para aquelas falésias, na compa­nhia do então director do Progreso de Lugo, que tinha famí­lia perto de Melgaço e era um teórico da culinária galega, para além de ter nascido nos arredores de Mondonedo, a terra de Cunqueiro.
O meu pai insistia que o escritor, por ter nascido no vale, não podia degustar inteiramente as ostras daquelas praias, contaminadas, ao longe, pelo Cantábrico. Era conversa fiada. Mondonedo, famosa pelas suas trutas e salmões, mas também por ser terra «de pão, boas águas e latim», como dizia Cunqueiro, era uma porta aberta na direcção do mar. O jornalista do Lugo (que tinha uma paixão pela ópera desde que escutara Manolo Cortés no teatro de Ribadeo, durante uma récita oferecida pelos Ruiseñores del Eo) visitou por duas vezes a casa de Ponte de Lima, durante o Verão, mas nunca trouxe ostras. Vinha ver o ciumen­to, como ele dizia, achando graça à perseguição que o velho doutor Homem, meu pai, fazia às enumerações gastronómicas do autor da Escola de Mencineiros.
Tudo isto ocupava uma parte do Verão, a mais cómi­ca e literária. Nessa altura, os areais de Moledo (con­quistados para a família, definitivamente, só a partir dos anos setenta, quando a «época balnear da Ínsua» era uma excentricidade) ainda não constituíam uma dependência da Academia Sueca e não se liam best-sellers à beira do mar.
As leituras de Verão disputavam terreno com os chamados «amores de Verão», que nasciam para fazer respeitar a tradição romântica do lugar. Os meus sobrinhos querem, com alguma frequência, saber se naquela altura já havia escândalos amoro­sos. Se confirmo, logo se abre uma brecha para considerar que as velhas gerações conheciam abundantemente o pecado e não têm razões para lamentar os infortú­nios da actualidade.»

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3 comentários

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De Yourself a 02.06.2008 às 09:56

Adar com um texto maravilhoso.
muito boas, mo' gostou muito, da mesma maneira que o blog, obrigado muito
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De Anónimo a 02.06.2008 às 16:21

Olha, o gajo do "o velho doutor Homem, meu pai". E mais um texto "lindíssimo" (como dizia um tipo do 5Dias;)) sobre a aventuras do "o velho doutor Homem, meu pai" e do que dizia e fazia o "o velho doutor Homem, meu pai", na praia do Moledo e na quinta dele, do "o velho doutor Homem, meu pai", acho eu

Eu lembro-me que me ria às gargalhadas quando lia estas crónicas "lindíssímas" no Indy.

Pedro
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De viguesa a 08.06.2008 às 00:55

Faltou-lhe falar na "rua das ostras" lá na minha terra, Viigo , e que aconselho toda a gente a visitar.
E falando de sobrinhos e prevaricações..É horrivel , ao mesmo tempo que é marvilhoso, saber que nada farão que eu já não tivesse feito. Para ser diferentes, como manda o códiga das lutas geracionais , só lhes resta fazer marcha atrás e recuperar valores do passado. No drugs , no sex, no rock and roll.

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