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«Tal como a personagem de O Leopardo, de Lampedusa, o velho doutor Homem, meu pai, assistiu à ruína do seu mundo sem ruir com ele. Simplesmente, enquanto a maioria dos leitores de O Leopardo critica a hipocrisia do príncipe, eu vejo nela alguma virtude.
Tentei explicar esta ideia tortuosa à minha sobrinha Maria Luísa. Com a idade, as «novas gerações» vão ficando mais interessantes, livrando-se das enfermidades da juventude. O Leopardo foi uma das suas leituras e, para ela, o príncipe – representando «o velho mundo» – assemelhava-se um tanto aos heróis da máfia que apareceram no cinema como figuras românticas que afrontam o trono, o altar e os seus exércitos, como se fossem herdeiros do Robin dos Bosques. Educada pela história oficial, que trata os derrotados com dureza e obstinação, a minha sobrinha resiste ainda à ideia de que o mundo não está dividido em heróis e facínoras. O século XIX é para ela uma incógnita maior do que a revolução de 1974. O velho doutor Homem, meu pai, é para ela uma lembrança vaga a que o tempo e a idade emprestam agora mais graça e fascínio. Entrando na biblioteca, observando as lombadas dos livros, imagino que se interrogue como pôde aquele homem culto, irónico, céptico e mordaz (de que ela conheceu vagamente a figura) ser um herdeiro da velha ordem e não um revolucionário que combatesse as classes médias, a família e as instituições.
Primeiro, respondo que as coisas são como são, o que não a satisfaz. Depois, lembro-lhe de que Rousseau, que é considerado um grande pedagogo e um pensador revolucionário, abandonou os seus filhos e maltratava a sua pobre mulher. É um argumento descabido, mas diz muito sobre como as coisas são como são.»
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