De Luís Miguel Queirós a 23.05.2008 às 03:09
Sei exactamente quando vi o Torcato pela primeira vez. Foi há quase vinte anos, no início do Público. Ele tinha vindo à redacção do jornal no Porto, que então funcionava na Rua Nª. Sra. de Fátima. O dia não é fácil de esquecer porque houve um incêndio no prédio. Não creio que a culpa tenha sido do Torcato, embora aquele ar de patriarca bíblico o tornasse um pouco suspeito de poder atrair catástrofes naturais. Não me lembro de nada do que conversámos, mas sei que ficámos amigos nesse dia.
É claro que, já antes de o conhecer, gostava dos textos que ele escrevia. E o que dele ia sabendo por terceiros também me levava a apreciá-lo por antecipação. Mas havia algo mais, e é desse algo mais – que implicava a sua presença física, o som da sua voz, uma certa expressão em que arregalava os olhos e figurava um espanto inocente – que valeria a pena deixar testemunho. Não há é palavras que o digam. Podia sugerir que ele era alguém tão imune à mediocridade e à mesquinhez que a sua mera presença se tornava salutar, como se limpasse o ar à sua volta. Mas não era bem isso, ou não era só isso.
Outros conheceram-no muito melhor. Eu só posso evocar algumas das poucas vezes em que o vi, e não me esqueci de nenhuma. A segunda foi a mais gloriosa. Ele viera de novo ao Porto, para uma reunião da secção de Cultura, e combinámos jantar num resturante magnífico, que me dispenso de designar porque o respectivo proprietário me deu uma vez a entender que preferia que não lhe publicitassem a casa. Como os então directores do Público no Porto ainda estavam a fechar o jornal, eu e um camarada da secção fomos indo à frente com o Torcato Sepúlveda. Estou a escrever-lhe o nome e ocorre-me que aquela imponente anatomia nunca poderia ter cabido num nome como, por exemplo, Armando Ferreira, ou Alberto Cardoso, sem desprimor para os que sofreram esses contratempos baptismais.
Para se entreter enquanto não chegavam os restantes convivas, o Torcato foi aviando dois pratinhos de tripas. Quando os outros apareceram, já íamos, também, na terceira garrafa de Quinta do Côtto, isto numa época em que a versão regular do dito era francamente potável. Não sei exactamente a que horas saímos do restaurante, depois da posta maronesa, do bacalhau assado na brasa, de mais sete Quintas do Côtto – o cômputo global de dez garrafas ainda era, vários anos volvidos, confirmado pelo dono do restaurante – e de um estimável bagacinho para ajudar à digestão. Lembro-me de que o Torcato tinha marcado para muito cedo o comboio de regresso a Lisboa, e que foi com alguma hesitação que acedeu a dar um salto a minha casa, antes de ir para o hotel.
A hesitação veio posteriormente a justificar-se, tendo em conta que perdeu o comboio. Às sete da manhã, e após ter colaborado sem relutância em esgotar as últimas garrafas que me sobravam de uma caixa de Caves S. João do abençoado ano de 1963, gentil oferta do meu sogro, estava debruçado da janela do quinto andar onde eu então morava a recitar poemas de Cesariny para as madrugadoras pombas da Ribeira. Ainda hoje me pergunto o que elas poderão ter pensado daquela desconcertante invectiva: “Despe-te de verdades/ das grandes primeiro que das pequenas”.
A penúltima vez que o vi foi já há alguns anos. Tocou-me à porta, aí pelas duas ou três da manhã, acompanhado de um irmão meu, e estivemos umas horas na conversa. Nessa altura, ele já não estava no Público. Se bem me lembro, mas posso estar enganado, saiu durante a episódica direcção de Nicolau Santos, a quem tinha criticado, nas próprias páginas do jornal, por este ter aceitado participar num lamentável programa de televisão chamado a “A Cadeira do Poder”. Uma das virtudes do Torcato era tê-los no sítio.
A última vez que o vi foi em Lisboa, não há muito tempo. Encontrei-o por acaso, no Largo da Misericórdia, numa pequena feira de livros. Estava com bom aspecto. Gostava mesmo muito de o voltar a ver.