Dar El Beida (o seu nome em árabe) ocupa o lugar de várias cidades abandonadas. Em primeiro lugar, Anfa, a cidade que os portugueses arrasaram no século XV com dez mil soldados que expulsaram os seus habitantes. Depois, a modesta Casa Branca portuguesa que o terramoto de 1755 destruiu e que foi reerguida cerca de 1770 pelo sultão Mohamed Ben Abdullah, que também fundou Essaouira. A nossa presença em Marrocos termina nessa altura, aliás, depois do abandono de Mazagão (El Jadida), cujos habitantes são enviados para o limite norte da Amazónia brasileira (actual Amapá). E a Casablanca onde está a marca dos mercadores espanhóis, antes de, no início do século XX, ser ocupada pelos franceses. É impossível não ver na poeira de Casablanca a marca dessa história fantástica de uma cidade sitiada diante do Atlântico, povoada e repovoada, abandonada e retomada, habitada por comunidades de todas as crenças, sobrevivente às guerras e invasões que atravessaram o Mediterrâneo.
O que transforma Casablanca «num caso», para todos nós, é que fica a cinquenta minutos de Lisboa, do outro lado do Mediterrâneo. Em cinquenta minutos passamos de uma das margens da Europa para uma das fronteiras de África e do Islão. Há quem pense que se trata de uma passagem entre o que conhecemos e o que não conhecemos, mas não é bem assim. Casablanca recordou-me o belíssimo romance histórico de Pedro Canais,
A Lenda de Martim Regos (publicado pela Oficina do Livro) – nele, o herói Martim Regos passa de uma civilização a outra, da Cristandade ao Islão (com o judaísmo de permeio, ainda), com uma facilidade surpreendente, transformando-se de acordo com a vida das cidades onde pernoita e dos países que o aceitam. Hoje, recordando Casablanca (que visitei em 2007), sinto que o Mediterrâneo nos separa de um mundo que devíamos conhecer melhor antes que a comunicação se torne totalmente impossível.
E é isto que nos devia incomodar.