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por FJV, em 29.08.07
||| Porque tinhas “mundo” explicaste-nos o mundo…









Meu caro Eduardo,
Na noite do dia em que morreste, fui com a Rosário e as nossas mães ao Senhor Vinho, ouvir a Aldina Duarte. Era um compromisso antigo, a minha mãe estava de passagem por Lisboa, e eu tinha a certeza de que me perdoarias esse pecadilho inocente de te trocar durante umas horas por essa intérprete soberba que tantas vezes elogiaste nas tuas crónicas.
Porque foi contigo que aprendi (que aprendemos) que a postura de um intelectual na cidade tem de ser um compromisso com tudo aquilo que nela manifesta a múltipla e complexa actividade dos homens: dos livros ao cinema, da arte em geral ao futebol, da moda aos centros comerciais, da gastronomia à política.
Disse num depoimento que foste o mais importante intelectual da minha geração. E foste. Desde os tempos já tão longínquos em que, nas páginas de O Tempo e o Modo puseste em causa a noção de fidelidade para defender uma relação baseada na verdade, sempre encontrámos nos teus textos alguma coisa que nos explicava melhor o mundo, as nossas dúvidas, as nossas hesitações, os nossos erros, os nossos passos.
E os nossos passos comuns foram muitos.
Na madrugada do 25 de Abril, recordas-te?, foste tu a tocar-me à campainha e a despertar-me para a liberdade que nascia. E logo fomos (com o José António Pinto Ribeiro) mergulhar na cidade em torvelinho.
(Mergulhar na cidade – eis o que sempre fizeste e sempre ensinaste. Nas salas de aula, nos cafés, nos livros.)
Antes já tínhamos incendiado as noites de Luanda à procura do amor louco de Breton. E mais tarde tentámos a “revolução” surrealista (e, claro, fracassada) de fazer um suplemento cultural do Avante! dedicado a La Grande Bouffe, do Ferreri. Divertimo-nos à grande, Eduardo! E lá estavas tu a ensinar-me (a ensinar-nos) a independência, a ironia, a distância com que se deve lidar com todos os poderes do mundo.
Por isso nunca foste um homem do poder, mesmo passando por cargos públicos, mesmo cortejado pelos políticos, mesmo que atacado, quantas vezes, pelos arautos da “parolice” nacional.
Mas foste, isso sim, “o actor mais disponível, mediático e plural da cena portuguesa”, como escreveu no Público esse outro, grandíssimo, Eduardo (Lourenço).
Essa cena, esse palco, ficou agora vazio. As luzes apagaram-se. Já não iremos logo pela manhã viajar contigo no fio do horizonte e medir a temperatura às coisas boas e más deste país.
Não há ninguém que te suceda. Porque, de certa maneira, foste único. Rindo, castigavas os costumes. Tinhas “mundo”, como disse no dia da tua morte o Manuel Maria Carrilho. E ter “mundo” é o que mais falta a uma enorme fatia da nossa classe dirigente: na cultura como na política.
Porque tinhas “mundo” explicaste-nos o mundo. Puseste a nu os nossos ridículos, a nossa petulância, a nossa falta de maturidade cívica.
Pode ser que, lendo-te, alguns agora descubram, finalmente, esse ponto de incandescência em que a arte e a vida acabam por coincidir.
Foste tu que o escreveste.

Publicado hoje no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

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