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Há uma extraordinária doença da literatura que é a obsessão pela literatura. Conhecer pessoas que apenas se interessam por literatura é das experiências mais penosas que há; mas quando isso se transforma em obsessão, é doentio e uma descida aos infernos. Portugal conhece o problema todos os anos por altura do 25 de Abril, creio que no 10 de Junho e, por extensão, no Festival da Canção: é quando toda a gente se põe a citar versos, estrofes, às vezes poemas inteiros e geralmente sem o mínimo respeito pelos textos, pelos autores e pelos ouvintes. No caso do 25 de Abril já não suporto a utilização abusiva do “dia inicial inteiro e limpo” (pobre Sophia, que escreveu outros belos poemas) nem de qualquer um dos fragmentos de poemas usados por deputados ou altas figuras da nação, presidentes de junta, locutores de rádio, utilizadores do Instagram, oradores do Minho ao Alentejo ou rodapés das televisões. Toda essa poesia não impede que a piroseira continue a ser tão insuportável como antes.
Da coluna diária do CM.
Nós e o Brasil: uma história de amor intenso e de despeito magoado. Irrita-me o ressentimento de ambos os lados, que é ridículo – mas compreensível – e que, quando vem pela mão de políticos, se torna imbecil, como aconteceu nas presidências de Dilma e Bolsonaro, e como acontecia com Salazar, que via no Brasil um lugar perigoso, amável e cheio de libido e samba, coisas que não entendia. Países irmãos? Não. O Brasil tem uma cultura que conhecemos pouco – exceto a música popular – e não falo dos motivos folclóricos ou turísticos: a sua literatura é melhor do que a nossa (Machado, Rubem, Amado, Verissimo, João Cabral, Drummond, Nelson Rodrigues), tal como a pintura, a arquitetura, a música ou o debate intelectual (tirando os últimos anos, em que o Brasil se transformou num circo de patetas ‘woke’). Parte das suas elites detestava Portugal até ter descoberto que isto ficava na Europa; as nossas gostavam do Brasil à maneira idiota, classista, como se tudo fosse Ipanema. Obrigado por tudo, Brasil.
Da coluna diária do CM.
Dos discursos do fim de semana – podíamos passar sem eles, exceto um. Não comungo da ideia geral que viu luz e coisas notáveis nos discursos no parlamento da pátria, ameaçado por energúmenos. Podíamos passar sem eles. Mas ficaríamos mais pobres sem o discurso de Chico Buarque ao receber o Prémio Camões – que não lhe foi entregue antes por culpa do mostrengo que ocupou a presidência brasileira nos últimos anos. Chico Buarque é um poeta superior e um ficcionista que se distingue facilmente no meio da falta de imaginação geral. Seja poeta, portanto. O seu discurso, apesar do ruído geral, foi precioso e teve todos os momentos: homenagem (ao pai, o notável Sérgio Buarque), evocação (dos antepassados portugueses, índios, judeus sefarditas – e dos pares, com gentileza), e a piada final, com ferroada. Curto e em português muito perfeito, a provar que “a cultura” é sobretudo elegância – e não alarido nem gritaria e banalidade. Do que me lembro, foi o melhor dos discursos de sempre do Prémio Camões.
Da coluna diária do CM.
Não me interessa ler o “parecer” sobre o despedimento dos gestores da TAP, de cuja existência – assegurada por três diligentes ministros – não duvido. Estou a ler um livro de ensaios de Nabokov e a folhear verbetes de um dicionário. Mas fiquei cheio de curiosidade depois de ler as declarações do secretário-geral-adjunto do PS, João Torres, para quem a existência ou não desse texto “não interessa aos portugueses”. Errado: o “parecer” não me interessa, mas a sua existência, sim, é motivo de interesse, porque três ministros garantiram que o “parecer” existe – e um, apenas, disse que não existia. No entanto, João Torres acha que isto é uma questão de “semântica”. Ora, isto é cair no caldeirão. Andei anos e anos a estudar semântica, e a semântica não trata de mentiras, mas do significado de palavras e frases. Na frase “o parecer existe” não há dúvidas, tal como em “o parecer não existe”. Se para João Torres isto não interessa, conclui-se que se pode mentir à vontade, o que é uma barbaridade.
Da coluna diária do CM.
Ontem foi o Dia Mundial do Livro – uma efeméride que junta o adeus a dois génios desaparecidos praticamente ao mesmo tempo, William Shakespeare (1564-1616) e Miguel Cervantes (1547-1616) – e, portanto, falou-se bastante do assunto. Foi festejado o “crescimento do mercado” em 16%, o que representa um bom sinal, ajudado pela chamada “literatura” juvenil e pela onda de “tik-tokers” e “ativistas literárias” que divulgam livros com ar festivo e colorido (parece que a coisa as torna melhores pessoas). Não se pode negar esse otimismo; basta lidar com números em abstracto. Há uma parte de mim que fica genuinamente satisfeita; a outra fica apreensiva, mas tento escondê-la por respeito a quem trabalha “no setor” (livreiros, editores, autores): no ano passado, o estudo da Gulbenkian mostrava que 61% dos portugueses não tinha lido um único livro nos últimos doze meses. No balanço, temos razões para estarmos felizes; o Chat GPT já escreve alguns desses livros e recebeu prémios para as melhores redações.
Da coluna diária do CM.
Há sempre muitas más respostas quando nos perguntamos sobre a forma de criar mais leitores em Portugal. Ao contrário do que dizem os otimistas, os números são maus. As últimas estatísticas sobre os hábitos de leitura do Eurostat colocam-nos no fim da lista; atrás de nós, apenas a Roménia e a Turquia; são números de 2019 – mais de 40% dos portugueses lê apenas, no máximo, um livro por ano. A sensação de que é necessário “fazer alguma coisa” esbarra sempre com o “otimismo do melhor dos mundos” e com o linguajar dos que foram destruindo a escola pública e o ensino das humanidades com o alívio do Estado. Outro dia, numa conversa mais ou menos informal acerca de livros & leitura, alguém perguntou ao orador “como se tinha transformado num bom leitor”. Ele respondeu, com uma clareza notável: “Bom, porque fui obrigado a ler livros até à idade adulta.” Depois da falência do Plano Nacional de Leitura, uma salgalhada, até à destruição da leitura como disciplina escolar, há aqui muito para pensar.
Da coluna diária do CM.
Este ano, o Grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores (APE) foi parar às mãos de Miguel Esteves Cardoso como autor de Independente Demente (Bertrand), que reune textos publicados há mais de trinta anos, no semanário O Independente. Parabéns ao júri. E à APE. O prémio vem com muitos anos de atraso, quando Miguel Esteves Cardoso publicou A Causa das Coisas (1986), Os Meus Problemas (1988) ou As Minhas Aventuras na República Portuguesa (1990) – mas na altura não havia prémio de crónica e, se houvesse, os júris iriam encolher-se na poltrona. Acontece que, com esses livros, ele mudou a forma de escrever e de ser português. Não é pouca coisa. O Portugal bem comportado e canónico (pelos padrões da época) ficou incomodado e irritava-se frequentemente com aquele rapaz que não só escrevia daquela maneira como ainda por cima se ria, nos fazia rir e, caso estranho, nos fazia pensar, não para que pensássemos como ele pensava – mas pensar, por desfastio e consolo.
Da coluna diária do CM.
O romance teve o seu tempo e o seu tempo não passou. O Buda dos Subúrbios, que é um livro de 1990, despertou – através de Karim, o personagem principal – para uma larga comunidade de pessoas invisíveis nos subúrbios de Londres. Depois, O Álbum Negro e, algures no tempo, Intimidade, a palavra fatal. Hanif Kureishi nasceu em Londres (1954) mas o nome não engana e tem raízes paquistanesas. Nos anos 90, o seu nome transportava o sinal de uma literatura feita por londrinos de outra tradição – como Salman Rushdie (nascido em Bombaim e adolescência já no Reino Unido), que tinha escrito Os Filhos da Meia-Noite e Versículos Satânicos, ou Kazuo Ishiguro (Nobel em 2017, autor de Os Despojos do Dia), que tendo nascido no Japão, viveu em Inglaterra desde os seis anos. Ou muitos outros. Em dezembro passado, depois de uma queda, Hanif Kureishi ficou impossibilitado de escrever e de se mover. Está a ditar o seu novo livro – fragmentos e reflexões – porque um escritor não consegue parar de escrever.
Da coluna diária do CM.
Depois da invenção do motor de explosão, a humanidade não pôde fingir que o engenho não tinha sido inventado; ou seja, não se pode recusar tomar conhecimento daquilo que já conhecemos. Não podemos “desver” aquilo que acabámos de ver. A mesma coisa ocorre com os mais recentes desenvolvimentos da Inteligência Artificial (IA) que, desde os anos 90, é um horizonte para o nosso dia-a-dia do futuro. O problema é que verifico, com acrescido terror, que há perigos dramáticos no seu uso – e que é preciso controlar os seus efeitos e o modo de usar. E que há riscos excessivos quando fica refém de pessoas deslumbradas de otimismo e que imaginam o mundo sem sair da sua bolha (do seu deslumbramento infantil) ou sem medir as consequências para os outros – e para os excluídos da festa. Na ciência, na educação, no jornalismo, na administração pública, na ciência – os seus efeitos serão definitivos e o mundo vai mesmo mudar. Já estamos a discutir isto? Claro que não. A IA está a ser o elefante invisível.
Da coluna diária do CM.
Não há remédio senão receber Lula na AR – de forma rápida e passando à cerimónia seguinte. É o presidente brasileiro de visita a Portugal; mesmo que na sua origem esteja um convite trapalhão, é um convite – devemos honrá-lo numa visita que impõe formalidade e hospitalidade. A política interna brasileira não nos interessa, nem as excentricidades de Lula enquanto parlapatão. Lula representa o Brasil, o país a que mais estamos ligados – pela língua, pelo passado, pela ponte aérea dos povos e pelos brasileiros que estão entre nós. Mas sem capital de simpatia. No caso da invasão da Ucrânia, Lula está ao lado dos agressores e dos criminosos, mente como é hábito, e reproduz a propaganda russa. Ignorante e preguiçoso, como de costume, repete burrices alarves e parece saído de uma comédia putinista. É aliado e cúmplice da violência russa – o que significa que nada nos impede de lhe chamar cúmplice servil e indecoroso de Putin. O PR e os diplomatas que lhe vistam a casaca. Mas é formalidade; ele vai nu.
Da coluna diária do CM.
Tirando o sofrimento das vítimas, que nunca, nunca, se deve desvalorizar, o “caso Boaventura” tem pormenores facetos. O primeiro é a desfaçatez de Boaventura Sousa Santos ao desculpar-se com a patranha do “neoliberalismo”: a culpa é do “neoliberalismo”, que rouba a alma das pessoas. Boaventura pode estar totalmente inocente, mas invocar o papão é uma jogada de truz. E, depois, isto: alguém da universidade, ouvindo as queixas de uma aluna, justifica eventual patifaria: “Ele é brilhante, mas infelizmente tem dessas coisas.” A frase é um retrato medonho e tragicómico; primeiro, leva-nos a procurar o extraordinário brilho de Boaventura, que algumas boas almas insistem em imaginar, uma soma de banalidades de comício e uma lista de originalidades sem sustentação científica; mas, sobretudo, leva-nos a tentar entender as razões pelas quais um eventual comportamento abjeto pode ser desculpado por esse “brilhantismo” (que deve andar suspenso na abóbada celeste). As duas coisas invisíveis andam a par.
Da coluna diária do CM.
A Associação de Bibliotecas e bibliotecários dos Estados Unidos da América revelou no mês passado que, em 2022, foram censurados mais de 1 200 livros nas estantes de escolas e bibliotecas públicas; ou foram retirados das instalações, porque o pecado se expande pelo contágio, como a gripe, ou foram escondidos lá atrás, onde se conservam os vírus. Tudo em nome do bem comum. A isto convém somar a crescente quantidade de correções, adaptações, perseguições, cancelamentos e censuras claras que a geração que agora está na idade da gritaria exerce sobre palavras, livros, filmes, pinturas ou conferências – tudo em nome de um bem maior – a bondade artificial e fictícia do ser humano. Uma nova forma de adolescência mimada e frágil, tão intolerante ao glúten como às ideias, ofendida com facilidade e sem mérito, tomou conta do espaço público. A antecedê-la, os mandarins do costume, que passaram uma vida inteira a destruir a ideia de convivência. Esta falsa virtude do mandarinato também vai acabar mal.
Da coluna diária do CM.
Há quatro anos, no livro As Superpotências da Inteligência Artificial, Kai-Fu Lee previa que a China seria líder mundial em inteligência artificial (IA): porque tinha um grande mercado interno e podia acumular dados sem limite. Ele sabia do que falava; tinha passado pela Microsoft e pela Apple tendo fundado a Google China antes de se dedicar a financiar startups chinesas. Kai-Fu previa um mundo fabuloso, mas onde a IA seria incapaz de criatividade pura ou de “gerar sentimentos”. Agora, associou-se a Chen Qiufan, autor de ficção-científica, para escreverem Inteligência Artificial 2041 (também na Relógio d’Água), um conjunto de dez histórias, comentadas, sobre como a IA vai mudar o trabalho e as formas possíveis de vida humana, transformando-as num pesadelo perigoso – porque os operadores comerciais de IA (Google, Facebook, etc.) não são entidades fiáveis. Tudo vai estar bem em 2041, quando formos dispensáveis. Se correr bem, corre. Mas o lado humano da humanidade vai ser dispensável.
Da coluna diária do CM.
O The Guardian quis ouvir a opinião de comissários, críticos, curadores e artistas sobre Picasso. Alguns valorizaram o facto de o autor de Guernica ter sido um patife para as mulheres, mesmo que reconheçam que é um grande pintor. Mas a mácula está lá e o jornal pergunta se, 50 anos depois da sua morte, não estará na altura de o guardar em naftalina. Como se o mundo tivesse nascido ontem, há pessoas que descobrem, com espanto cómico, que o passado da arte, da filosofia, da literatura, está cheio de indignidades e pecadilhos. Oh, horror, houve artistas machistas e teólogos misóginos. E Picasso, ai de nós, estava cheio de “masculinidade machista e vigorosa”, além de a sua vida estar marcada por uma “notória crueldade e misoginia”. Mais: a obra de Picasso só foi possível graças às mulheres: “esposas e amantes que cuidaram dele e organizaram sua vida” e, claro, “modelos e musas que preenchem suas pinturas”. Nem a naftalina nos salva. A justiça que descobre que existiu pecado é apenas cínica.
Da coluna diária do CM.
No sábado viajei de Lisboa para o Porto de manhã e voltei à noite. Com a idade, a falta de paciência, as estradas cheias de loucos, o excesso de carros por todo o lado e o preço da gasolina, deixei de fazer estas viagens ao volante. Faço-o por puro comodismo, não para salvar o planeta: sou neto de ferroviário, escrevi um livro sobre comboios e acho que o que distingue as pessoas e os países civilizados é terem comboios confortáveis e de confiança. Ora, a CP, remendada, aldrabada e com um desprezo fatal pelos passageiros, está também esburacada por greves e supressões de comboios; no sábado não havia comboio à hora normal, o da noite desapareceu e domingo de manhã seria caótico. Fui de camioneta. Custou 20€ (ida e volta, ou seja, quase um terço do preço da ferrovia), cheguei a horas, parti a horas, havia wi-fi muito decente, parámos 5 minutos a meio, demorou 3 horas e 15. Não é a mesma coisa que o comboio, claro, nem tão ecológico. Mas é isto: a CP agoniza, ninguém parece importar-se.
Da coluna diária do CM.
A Páscoa judaica, ‘Pessach’, “passagem”, que este ano coincide com a cristã, celebrava-se cerca de mil anos antes de Cristo, assinalando a libertação dos escravos no Egito. Jesus celebrou essa Páscoa e transformou-se no intérprete de outra – a que trata da sua vida, morte e ressurreição. O mistério destas tradições permanece e lembra-nos que somos peregrinos. Estamos de passagem. Falar disto é uma espécie de despropósito num mundo que reduz a Páscoa a confeitaria, chocolate e Algarve, mas acredito que vale a pena insistir. Todos os anos há uma celebração importante a registar – nem sempre em nome dos escravos que se libertam e atravessam o deserto, ou em nome de quem se liberta da lei da morte através de uma mensagem inovadora e tão cheia de ironia como de promessa. O Ocidente tornou-se laico, primeiro, mas cínico e ateu depois – e ao libertar-se da religião, a sociedade “libertou-se” também da memória. Ficou mais pobre. E, no entanto, alguém continua a celebrar todos os anos. Boa Páscoa.
Da coluna diária do CM.
Lembram-se do “jantar no Hotel Central”? É um episódio muito especial de Os Maias em que um banqueiro, “o Cohen”, cuja esposa é catrapiscada por João da Ega, faz confidências sobre o estado da economia portuguesa e sobre a necessidade “do empréstimo”. Tudo em segredo, entre o brilho dos cristais e a solenidade das casacas. Hoje, as confidências fazem-se na mesma mas através de mensagens de Whatsapp que negoceiam 500 mil euros para cima, um milhão para baixo, um voo da TAP para aqui, uma indemnização para lá, com assinatura de altos funcionários do Estado – e transmissão televisiva. Também dava um romance, que tanto podia ser Os Maias, de Eça, como O Pai Goriot, de Balzac, um dos meus preferidos, onde pululam personagens como Rastignac, ou Vautrin, ou o rico Goriot – a vantagem é que a sua fortuna suspeita não lesa diretamente o Estado. Se, em vez de se dedicarem a questões de género e pipis, os jovens romancistas tomarem estes cenários como exemplo, teremos romance. Mas temo que não liguem.
Da coluna diária do CM.
O escritor Afonso Reis Cabral enviou os seus livros para uma editora americana que, simpaticamente, recusou publicá-los. Porque são maus? Não. Porque, nos EUA, o tema de O Meu Irmão (Prémio Leya), uma personagem que sofre de síndrome de Down, “é levado muito a sério pelos média americanos”e pode chocar as pessoas; e porque o tema de Pão de Açúcar (Prémio Saramago) é Gisberta, o que não pode acontecer porque um autor cisgénero e heterossexual não pode escrever sobre uma personagem transsexual. Não se trata de censura – um editor só publica o que entende; mas é o retrato em que se transformaram sociedades tomadas por maluquinhos de anedota, onde a literatura deixou de ser literatura e passou a ser uma forma de sacerdócio e campo de concentração, e se preferem maus livros obedientes à maluquice, em vez de desafios à criatividade e à humanidade. É provável que isto se agrave, porque a universidade apodreceu com esta gente. Só os autores podem desafiar esses maoistas de jardim de infância.
Da coluna diária do CM.
Houve pormenores caricatos na manifestação e subsequente jornada campal de luta “pelo direito à habitação” que decorreu no sábado passado em Lisboa – mas o tempo dilui quase tudo, sobretudo as coisas risíveis, à maneira de uma comédia. Enquanto parte da imprensa treme de emoção à possibilidade de uma pinguinha de terrorismo, e outra parte sonha com vagas de “coletes amarelos” a incendiar apenas os carros dos vizinhos, os manifestantes do Martim Moniz queixaram-se de violência policial. Talvez por isso, recordei-me de Álvaro Cunhal e da frase que lhe ouvi durante uma entrevista de 1996, e que é (julgo) atribuída a Lenine, “A revolução não é um passeio na Nevsky Prospekt” (a principal das avenidas centrais de São Petersburgo). Já os nossos revolucionários, designados de “ativistas”, iriam de bicicleta ou trotinete, entrevistados por repórteres que recolheriam as suas queixas sobre empurrões de polícias. Claramente, não estão preparados para a revolução. Só se ela for transmitida pela televisão.
Da coluna diária do CM.
Não sei como se vulgarizou a palavra “inverdade”, mas isso levou a que a palavra “mentira” fosse desvalorizada – e deixou de ser um ferrete na biografia de alguém. Ao mesmo tempo, o mentiroso passou a ser designado como “pessoa habilidosa”, artista, maganão espertíssimo, malabarista cómico ou apenas malandrote – e passámos, coletivamente, a apreciar trampolineiros e mentirosos. Imaginemos um país em que a mentira passou a ser desculpada com bons artifícios; o mentiroso é denunciado em público nas televisões e nas manchetes dos jornais, mas passa em frente com o beneplácito dos eleitores, que encolhem os ombros. Um ministro, por exemplo, pode mentir descaradamente e dissimular (números, factos, estatísticas) quanto quer ou lhe convém em áreas tão diferentes como educação, habitação, economia, justiça, finanças, agricultura, forças armadas ou até diplomacia. Os eleitores não confiam mas encolhem os ombros. Achamos graça ao patife. Existem países assim mas, felizmente, não vivemos num deles.
Da coluna diária do CM.
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