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Mailer.

por FJV, em 31.01.23

Norman Mailer - Grupo Companhia das Letras

Mau feitio reincidente e notório, baixinho, arrivista e com demasiado pendor para o pugilato (bem como para o machismo e as opiniões inesperadas), estrela da política, hiperssexual desastroso (tem um livro intitulado Prisioneiro do Sexo, que as feministas odeiam) e adúltero contumaz (seis casamentos, um deles encerrado com uma tentativa de assassinato), Nachem Malech Mailer, aliás, Norman Mailer (1923-2007) nasceu há cem anos. Incompatibilizou-se com meio mundo; isso era normal em gente com coragem. Por vontade sua estaria entre nós a beber e a discutir boxe (tema a que dedicou vários excelentes textos), os Kennedy, a história da CIA (a que dedicou um romance monumental, O Fantasma de Harlot), Marilyn (de quem escreveu uma biografia) – e literatura, claro, porque foi um dos grandes romancistas do século XX (Os Duros não Dançam é um dos seus momentos), quando os americanos não escreviam como pregadores nem como queixinhas. Foi um historiador e crítico da América. Um trabalhador incansável.

Da coluna diária do CM.

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Os melhores tolos do mundo, 2.

por FJV, em 30.01.23

O jacobinismo e o populismo, cada um nos seus conclaves, rejubilam com a polémica à volta das Jornadas da Juventude; com eles, instituições, flutuadores do costume e políticos a arder põem-se à sombra, caladinhos, porque é Moedas a ser triturado. Escusam. Sobretudo os que desde há quatro anos conhecem a dimensão do evento e só agora fingem despertar – em público, milimetricamente – para o “escândalo dos custos”, cujo orçamento “criticam”. É duvidoso que o Presidente da República e o bispo auxiliar de Lisboa, cujas intervenções são no mínimo estranhas, desconhecessem o que estava em causa: nenhum deles é um corpo estranho às JMJ; sabem que Portugal se convidou para as organizar; os que sabiam os milhões envolvidos representam agora o papel de marcianos, como se os ignorassem; no esdrúxulo caso do bispo, invocando “desagrado” tardio e à medida; no caso do PR, multiplicando-se em perplexidades. Com parte da imprensa a ser usada, custa a acreditar que Santos Silva tenha sido uma das raras vozes sensatas.

Da coluna diária do CM.

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Os melhores tolos do mundo.

por FJV, em 27.01.23

O anticlericalismo vibrou de indignação com os custos do palco e plataformas no Parque Eduardo VII para as jornadas da juventude que contarão com a vinda do Papa. Acontece que, no país da Web Summit, também há católicos indignados com esta “obra nunca antes vista”. A indignação é barata entre nós, e ao alcance de qualquer bolsa, sobretudo da dos esquecidos e distraídos. Por exemplo, quando foi anunciado – com pompa, provincianismo e nacional-pacovismo – que as JMJ viria para Portugal, por que razão não se orçamentou a coisa de imediato? Alguém julgou que a alegria presidencial (“acreditámos, conseguimos!”) nos iria ficar barata para receber dois milhões de pessoas em Lisboa? Alguém apresentou a projeção de receitas & custos para descansar almas frívolas ou temperamentos austeros? Não. É mais barata a alegria dos incautos e a indignação dos justos. Evidentemente que nada disto aconteceria se não fôssemos “os melhores do mundo” (“acreditámos, conseguimos!” ) – e tivéssemos juízo ou contas feitas.

Da coluna diária do CM.

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A natureza do regime.

por FJV, em 26.01.23

Já lá vão mais de quarenta anos quando se publicou em Portugal uma antologia de textos da revista comunista francesa Cause Commune (Causa Comum) sob o título O Apodrecimento das Sociedades – poucos títulos são tão atuais quando pensamos na forma como falamos do nosso país. Outro dia, na SIC, o politólogo André Freire (que é tudo menos um “perigoso direitista”) manifestava a sua preocupação sobre a crise política e os fenómenos correntes de mentira, degradação da forma de governar, desrespeito pelos governados, mediocridade na administração do Estado, má gestão, políticas salariais injustas, casos que indiciam corrupção em larga escala, multiplicação de redes clientelares e familiares na órbita do poder. Se a isto acrescentarmos a dependência crónica do país, bem como a destruição do pobre sistema educativo, podemos dizer – como o disse André Freire, genuinamente preocupado – que é o próprio regime que está em causa. A natureza do regime é benévola, mas as suas doenças são cada vez mais fatais.

Da coluna diária do CM.

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Justiceiros analfabetos.

por FJV, em 25.01.23

É uma nova frente nas “guerras culturais” e o ‘Times’ deu ao assunto largas páginas: escritores não podem escrever sobre personagens, histórias e temas que não fazem parte do seu universo de experiências de “raça”, “género” ou “sexualidade” – ou classe. Isto aconteceu no episódio do Teatro S. Luiz, com o despedimento de um ator “não trans”, e já tinha ocorrido com Marieke Rijneveld (uma boa escritora, infelizmente branca embora não-binária) que foi impedida de traduzir os “poemas” de uma autora negra. Os livros de Philip Roth estão a ser reavaliados porque escreveu sobre um negro quando ele é judeu; Nabokov seria impedido de publicar Lolita; este fascismo cultural é uma coisa séria nos países tolos, mas autores asiáticos ou africanos como Chimamanda N. Adichie ou Kazuo Ishiguro acham a coisa estúpida. Eu, que sou branco, “não posso” escrever sobre coisas asiáticas; nem sobre mulheres ou homens que mudam de sexo. O custo é levar com uma campanha de justiceiros analfabetos e histéricos. Seria uma alegria.

Da coluna diária do CM.

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Churchill e Marraquexe.

por FJV, em 24.01.23

Winston Churchill's painting of Marrakech—given to President Franklin D.  Roosevelt and sold by Angelina Jolie—sells for record £8.2m

Em 1943, Churchill, De Gaulle e Roosevelt reuniram-se em Casablanca – passam hoje 80 anos exatos. Acordaram numa coisa simples: rendição incondicional da Alemanha. Não haveria negociações com os agressores. Mais: o pós-guerra incluiria “a destruição, nesses países, das filosofias que se baseiam na conquista e na subjugação de outras pessoas.” Uma bela lição para os que defendem a entrega de território ucraniano em troca de paz. Há um pormenor que me comove: Churchill insistiu com Roosevelt para que o acompanhasse a Marraquexe (300 kms, quatro horas de viagem) a fim de verem o pôr do sol nas montanhas do Atlas. Já o vi e é um espetáculo inesquecível. Roosevelt acedeu e ficou mais um dia; depois de partir de regresso à América, Churchill ficou outro dia ainda para pintar um dos seus quadros mais famosos: a mesquita de Kutubiyya (“livreiros”) com a luz das montanhas por detrás – mandou-o a Roosevelt no seu aniversário, a 30 de janeiro. Uma bela história que dava um romance sobre o tempo em que havia gente.

Da coluna diária do CM.

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Identidade.

por FJV, em 23.01.23

Os leitores conhecem a história: a meio de uma peça de Almodóvar houve protestos porque uma personagem transsexual estava a ser interpretada por um homem não transsexual, coisa que acontece bastante no teatro. Seja como for, o protesto resultou, porque os protestos sobre sexo resultam quase sempre: o ator foi retirado do elenco e substituído por um ator transsexual, não sei se bom ou mau. Isso não me comove; mas preocupa-me a ideia de que uma pessoa só pode ser representada por uma pessoa idêntica; o romance de uma lésbica só pode ser traduzido por uma lésbica, um poema em língua ‘inuktitut’ só pode ser lido por inuítes da Gronelândia e uma história gay não pode ser escrita por um heterossexual, o que eu acho chato, reacionário e um tanto cavernícola. Isto é um pouco estranho porque, justamente, o teatro trata da usurpação de identidade. Nos protestos alguém disse que o teatro não é só “um palco”, ou seja, arte e representação, mas também “uma plataforma”, ou seja, um megafone. Deixam-me muito mais sossegado.

Da coluna diária do CM.

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Os teóricos.

por FJV, em 20.01.23

A “defesa da escola pública” tem sido uma bandeira das ruas e de muita opinião chique (que tem os seus filhos nas escolas privadas). Basicamente, não é uma defesa da qualidade da escola pública – e apenas do controle da escola pelo ministério da Educação e pelo Estado em geral. É um aperitivo ideológico e erótico – dizem a palavra “público” e sentem um arrepio na espinha. O combate pela escola pública deve insistir no respeito pelo trabalho dos professores, na avaliação da qualidade dos programas de ensino (mesmo na versão maneirinha das “aprendizagens essenciais” decretadas pelo ministério). Os burocratas que enxameiam o ministério são os culpados pelos contínuos retrocessos de aprendizagens em matemática e línguas, em filosofia, em história, em literatura e língua – ao arrepio do que se faz em países que insistem na valorização do trabalho, da disciplina e do rigor na avaliação e na aprendizagem. É esse monstro de teóricos patetinhas que tem vindo a destruir a escola pública com a sua manipulação.

Da coluna diária do CM.

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Adolescência e poesia.

por FJV, em 19.01.23

Na exposição que hoje é inaugurada na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, há
várias versões de um poema que, originalmente, levava o título “A Ciência
Suprema” e que terminou como “A Arte dos Versos” – estão expostas sete dessas
doze versões e servem para verificar até onde Eugénio de Andrade levava a
depuração, um certo amor pela exactidão e um rigor obstinado que se mantém até
encontrar o verso ideal, que traduz uma harmonia invisível e indizível, a imagem
que nos transporta até ao outro lado da linguagem. Eugénio de Andrade (1923-
2005), cujo centenário se assinala hoje, foi um dos poetas mais lidos, amados e
imitados do seu tempo. A sua obra justifica-o: fala de uma intensa humanidade das
coisas, de uma busca do paraíso e do lugar onde só o amor é possível. Os seus
primeiros livros transportam uma inocência que nunca regressou e uma chamada
aos sentidos do leitor. Com o tempo, a sua gramática tornou-se mais previsível mas
nunca perdeu o sabor adolescente, nem o desejo de eternidade.

Da coluna diária do CM.

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Os inimigos da escola pública.

por FJV, em 18.01.23

Na sua coluna de segunda-feira, Armando Esteves Pereira escreveu no CM o essencial sobre a questão do ensino em Portugal: é necessário pensar nos alunos e na quebra dos seus níveis de aprendizagem. O assunto exige que se volte a ele uma e outra vez. Nesta crise “da escola” há duas dimensões: uma, estritamente sindical (a que não é estranho o aparecimento de um novo sindicato) e onde os professores têm argumentos sérios; outra, mais geral, é a da destruição da escola pública por uma série contumaz de dislates pedagógicos e científicos. Este é o monstro que espreita e que domina tudo: fim da exigência, desrespeito pelo papel dos professores (porque se as escolas têm funcionado isso se deve aos professores apesar dos ministérios da Educação), manipulação crescente (agora com autarcas?), linguagem burocrática – até chegarmos, com o último ministro, ao ponto de degradação de reduzir tudo a “aprendizagens essenciais”. É isto o que eles fizeram e é vergonhoso. São eles os inimigos da escola pública.

Da coluna diária do CM.

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Há uma beleza que não serve apenas para pendurar na fotografia.

por FJV, em 17.01.23

Gina Lollobrigida - Go Naked in the World (1961) - Photographic print for  sale

As jovens atrizes que me perdoem mas há uma beleza que não serve apenas para pendurar na fotografia. Tem palavras e sombras à mistura. Lauren Bacall nunca seria a beleza que foi sem ter humilhado Bogart naquela cena do assobio. Há Grace Kelly a cuidar de Jimmy Stewart, Rita Hayworth a roubar-nos em A Dama de Xangai ou Gilda, Gene Tierney capaz de nos assombrar em Laura, Ingrid Bergman a espalhar a sua melancolia e culpa, Deneuve carregada de dissimulação, a lista seria fatal e incluiria Françoise Hardy – e Gina Lollobrigida (1927-2023), por exemplo, que morreu ontem em Roma, aos 95 anos. Pobre Gina – contracenou com os melhores, de Bogart a Mastroianni, de Steve McQuen a Frank Sinatra ou Rock Hudson, mas cujos filmes, ai de nós, hoje estão justamente esquecidos. Havia nela uma beleza calculada e sensual, que não precisava de amparo coreográfico. Vê-los, hoje, é regressar àquele mundo do pós-guerra, opulento e confiante, não sei se me faço entender. Era essa a felicidade de vê-la no ecrã.

Da coluna diária do CM.

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Sontag.

por FJV, em 16.01.23

How Susan Sontag Taught Me to Think - The New York Times

Em 1959, aos 26 anos, Susan Sontag (1933-2004) chegou a Nova Iorque decidida a ocupar um lugar na “vida cultural” da cidade – o que significava ser o centro das atenções, aparecer nos jornais, frequentar os lugares da moda, escrever coisas provocantes, estar com gente famosa, ser alvo de falatórios sobre a sua vida sexual. Conseguiu tudo. Tinha estudado em Chicago, na Califórnia, em Harvard e, depois, na Europa (Oxford e Paris). Era precoce e entrara aos 15 na universidade, passando da literatura à psicanálise, dos clássicos à política, da filosofia ao cinema, interessando-se pela doença e pela fotografia, estabelecendo pontes entre continentes que pouco se comunicavam. Os “estudos culturais” inscreveram o seu nome no Olimpo. Sontag era esquerdista – um vício novaiorquino –, acreditava que a cultura popular merecia tanta atenção como Aristóteles, mas não queria destruir a erudição e sim mudar-lhe as coordenadas. Foi um dos nomes mais influentes do ensaísmo do século XX. Completaria hoje 90 anos.

Da coluna diária do CM.

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República da vulgaridade.

por FJV, em 13.01.23

Outro dia escrevi sobre a recusa dos líderes dos três maiores partidos em falar sobre os livros que gostariam que lhes oferecessem no Natal (nenhum, suponho). Nas “redes” houve algumas rezinguices subordinadas ao tema “isso não faz deles piores políticos”. É falso. Thomas Jefferson (1743-1826), que foi o 3.º presidente dos Estados Unidos, tinha 6500 livros. Para a época é monstruoso. Franklin D. Roosevelt (1882-1945) possuía cerca de 15 mil. Mário Soares era um acumulador de livros, mas as bibliotecas de De Gaulle e Mitterrand eram notáveis e estavam lidas. As bibliotecas da Roma imperial devem muito a Júlio César e aos generais que regressaram à capital e queriam prestígio. As bibliotecas notam-se. Quem visitar as páginas dos discursos parlamentares da última década há de registar uma grande pobreza de referências e de gramática, a falta de vocabulário, a má oratória geral e a repetição de palavreado da treta, própria de cabecinhas pobres e sem leitura. É a República entregue à vulgaridade.

Da coluna diária do CM.

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Videopoder.

por FJV, em 12.01.23

Há, em Espanha, um projeto muito polémico para uso de tecnologia de reconhecimento facial – a Polícia Nacional e a Guardia Civil passarão a vigiar o país através de câmaras de vídeo já este ano, e prometem fiabilidade e boa cobertura do território. Lembro-me de várias notícias aterradoras e de documentários apocalípticos sobre o uso dessa tecnologia na China; porém, não é preciso ir tão longe: qualquer visita a Londres, por exemplo, mostra as câmaras de CCTV (circuito fechado de televisão) penduradas sobre cada ângulo da cidade, o que tem inspirado vários argumentos de filmes e séries policiais sobre vigilância dos cidadãos, violação da vida privada, perda de anonimato, eliminação ou distorção de dados pessoais. Depois de Espanha, se a coisa pegar, virá Portugal. Há uns anos, um relatório elaborado na Universidade de Toronto alertava para a facilidade com que se pode ter acesso a dados de cidadãos nas redes governamentais de alguns estados – como o português. Fica o aviso para quando vier.

Da coluna diária do CM.

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A corja.

por FJV, em 11.01.23

Eusébio Macário

Ao romance Eusébio Macário (de 1879), Camilo Castelo Branco juntou um subtítulo, ​“História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais”: Eusébio é boticário, viúvo e pai de José Fístula, que se casará com Felícia, amante do padre Justino e irmã de Bento Pereira Montalegre, barão do Rabaçal, que por sua vez casará com Custódia, irmã de Fístula. Parece anedótico, mas um resumo é assim. Estamos no final do século XIX e o assunto – o dinheiro, a ascensão social, os apetites, os negócios políticos e carnais, as trocas de favor, a corrupção generalizada, os baronatos e as câmaras, o mau gosto, a falta de escrúpulos – parece tão vasto que no ano seguinte Camilo lhe publica a continuação, com o sugestivo título A Corja, onde os personagens se sujam mais e se salvam sem castigo. Passado século e meio, recordo as palavras de Tomás da Palma Bravo, protagonista de O Delfim (1968), de José Cardoso Pires: “É o preço. Para haver Jaguars e safaris foi preciso aceitar esta trampa toda.”

Da coluna diária do CM.

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O Brasil, coitado.

por FJV, em 10.01.23

Não tenho muitos comentários sobre o vandalismo de Brasília e o seu rasto de destruição e baixeza. Vejo as imagens com um misto de repulsa e de comiseração, de vergonha e de rejeição pura e simples. Edifícios vandalizados, peças de arte destruídas ou danificadas, espaços nobres entregues à turbamulta, a covardia e canalhices de mentores ausentes – e, sobretudo, o chapéu onde essa pólvora se alberga: a pobreza, a indigência mental, a crendice, o desrespeito pela democracia e suas regras, a futebolização da vida brasileira, o desregramento extremista, que periodicamente toma de assalto a política. Tal como nos EUA os moderados carregam o fardo da chocalhice de Trump, também no Brasil será necessário expiar a doença e o vírus que permitiram Bolsonaro e o seu desfile de indignidades. É muito provável que nada desse vandalismo tenha sido comandado ou planeado; isso torna-o ainda mais grave. Como se as labaredas da violência estivessem à espera de serem atiçadas. Vamos ver se há alguém inteligente.

Da coluna diária do CM.

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Luísa Todi, 270 anos.

por FJV, em 09.01.23

Luísa Todi

Se houvesse por cá uma televisão pública, talvez já tivéssemos uma série em redor da vida da cantora Luísa Todi (1753-1833), sobre cujo nascimento passam hoje 270 anos. É verdade que há um auditório e uma avenida em Setúbal (onde nasceu) com o seu nome, mas era bom conhecê-la como uma grande figura de romance. Eu escolheria como primeira cena aquela em que a corte tem de passar-lhe uma autorização para cantar em Lisboa (porque as mulheres não o podiam fazer), por ocasião do batizado de D. Teresa, filha do ainda príncipe D. João e de Carlota Joaquina, em 1793. Tudo isto depois de ter sido festejada por toda a Europa, de Madrid e Paris a São Petersburgo (foi para a Rússia a convite de Catarina, a Grande, que fez dela sua íntima durante quatro anos), de toda a Itália à Prússia (onde o rei Frederico Guilherme II lhe abre as portas dos palácios). Ou colocaria Beethoven a ouvi-la, na Alemanha – mas não deixaria que morresse cega e pobre em Lisboa. Para cantar, escolheria os Músicos do Tejo e a bela voz de Joana Seara, que em 2010 gravaram a música cantada por Luísa Todi há 250 anos. 

Da coluna diária do CM.

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Dizzy Gillespie (1917-1993).

por FJV, em 06.01.23

Dizzy Gillespie | Miles Davis Official Site

O que vai ficar disto tudo? É a pergunta de Dizzy Gillespie (1917-1993) numa interpretação e versão magníficas de “What is there to stay?”, uma gravação da altura em que o futuro mago do be bop tocava com Cab Calloway (uma história feia de conflitos que terminou com tiros e facadas, mas era o mundo do jazz), com Charlie Parker, e usava temas de Cole Porter, Gershwin, ou mesmo Jerome Kern – tudo diferente daquilo que o distinguiu nos anos futuros, com o seu trompete vibrante e desejoso de ritmos latinos (oiçam “Bopping the Blues” e estamos conversados). Antes disso, o meu período preferido: o de “All the Things You Are” (de Kern & Hammerstein, “Night in Tunisia”, “Alone Together”, “On the Alamo” ou o da sua bela interpretação de “I Waited for You” – onde a voz de Dizzy se aproxima da de um “crooner” poderoso e de coração despedaçado. Mas Dizzy não era um romântico (apesar de ter tocado “I Let a Song Go Out of My Heart”, de Duke Ellington) – ele gostava do trompete como um anúncio de tempestade, o que era um erro, mas era seu. Morreu precisamente há trinta anos, assinalados hoje.

Da coluna diária do CM.

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That‘s a post.

por FJV, em 05.01.23

Ao que eu cheguei. A pôr-me a defender o uso da língua portuguesa em vez do inglês para deslumbrados. Começou por uma brincadeira, quando ouvi uma entrevista de um desses parolos – ele insistia que tudo era um problema de “mindset”. Vá lá, de mentalidade. Por que não dizer “mentalidade” em vez de “mindset”? Eu sei que o inglês de economistas é uma regra de ouro internacional, mas não custa nada dizer “prazo” em vez de “deadline” ou “resposta” ou “comentário” em vez de “feedback”. Várias vezes uso a palavra “briefing” mas prometo que usarei “relatório”, “resumo”, ou “instruções”, ou outra coisa qualquer. Não vou comparecer a “meetings” mas sim a reuniões e não responderei a “calls”, mas a “chamadas” ou “telefonemas” ou “comunicações”, mesmo quando se tratar de comentar “orçamentos” – e não “budgets” – ou “roteiros” e não “roadmaps”. E, de qualquer modo, defenderei o fuzilamento de quem disser “aitem” em vez de “item”, porque latim é latim, mesmo que me peçam para “wording” em vez de escrever um texto, digamos, e não um “report”. A menos que seja para dizer “fuck off”, naturalmente.

Da coluna diária do CM.

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Olho no Brasil.

por FJV, em 04.01.23

Ao longo de um dia inteiro, as televisões entronizaram Lula como uma espécie de santo dos últimos dias. Foi um mau serviço prestado ao jornalismo, mas talvez ele mereça, por ser um homem de sorte. Sem ser ilibado das acusações que permanecem de pé, e de todas as outras que o têm por cúmplice, Lula regressou; haveria coisas bem piores, como uma vitória de Bolsonaro, que seria aterrorizante. Durante o mandato da figurinha repelente, o Brasil ficou mais inseguro, mais pobre, ignorando a palavra ‘estabilidade’ e, como era previsível, sem uma ideia do que era a decência no palácio presidencial. A história há de ser contada e não é agradável. Mas convém não esquecer que Lula foi o principal responsável pela radicalização que levou Bolsonaro ao Palácio Alvorada: hostilizou metade do país, deixou à solta um bando de salteadores, cortou laços com todos os moderados. Bolsonaro era o seu rival de eleição. A história do Brasil é assim há anos, colecionando oportunidades perdidas – e talvez não pudesse ser de outra maneira. Pessimista como sou, de vez em quando deito o olho para Geraldo Alckmin.

Da coluna diária do CM.

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