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Por vários motivos, calha-me ver bastante daquelas televisões regionais e locais que são transmitidas no circuito interno do comboio Alfa que faz a viagem entre o Porto e Lisboa. A CP poupa dinheiro e adormece os seus passageiros, as tvs locais ganham audiência sonolenta e eu vejo um pouco do futuro do país naquela programação televisiva: encontros, colóquios e congressos realizados um pouco por todo o lado; festivais & roteiros gastronómicos que nos levam do cabrito de Monção ao caldo verde de Santo Tirso, e que nos mostram pessoas a comer, a apanhar castanha ou a elogiar as virtudes dos cogumelos e dos passeios ao ar livre; pessoas em fato de treino que correm e ganham medalhas e camisolas entregues por presidentes de câmara que, entretanto, já com outra roupa, apresentam uma semana gastronómica e de promoção dos passadiços ou das ‘acessibilidades’ do seu concelho ou a criação de armazéns e escritórios num “parque tecnológico e industrial” que hoje, com uma arquitetura de caixote, se chama também “incubadora sustentável de empresas”. Felizmente que tudo isto é emitido sem som.
Da coluna diária do CM.
Ontem à tarde, comentando a notícia – que acabava de concluir o noticiário das cinco da tarde –, sobre a tentativa de vandalizar o quadro Rapariga de Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer (1632-1675), uma locutora da Rádio Renascença anunciou que em tempos já teve opinião contrária, mas que agora “acha bem” que os “ativistas” ataquem obras de arte nos museus. O argumento é sincero: assim, talvez os poderosos (suponho que se refira a eles, e não a nós, comuns mortais) se sensibilizem para as questões ambientais, passando a ser aceitável qualquer tipo de chantagem. Acontece que os poderosos não precisam de Vermeer (pintor dos pintores), nem de Da Vinci, Van Gogh, Constable, Turner ou Monet, cujas obras têm sido vandalizadas. Nós, pelo contrário, precisamos. Um mundo em que obras e sinais de beleza ou eternidade não estão a salvo é um mundo em si mesmo vandalizado. Just Stop Oil – o lema dos vândalos – é uma mensagem benévola, mas estúpida. Seja como for, proponho que os “ativistas” se dirijam ao estúdio da RR e exerçam a sua criatividade como melhor entenderem. O planeta agradece.
Da coluna diária do CM.
Cinquenta anos depois da morte de Sylvia Plath (1932-1963), os seus diários poderiam ser finalmente publicados, segundo vontade do marido, o poeta Ted Hughes (1930-1998). Porém, acabaram por ser publicados em 2000 – são extremamente pessoais, íntimos, e foram extirpados dos derradeiros anos, quando Plath percorria a via-sacra do casamento com Hughes (um dos melhores poetas ingleses do século XX), dos anti-depressivos, do nascimento dos filhos e da antevisão do que viria a ser a sua despedida, na fria madrugada londrina de 11 de fevereiro de 1963: um suicídio triste, sofrido e cheio de alertas. A Campânula de Vidro (Relógio d’Água), publicado um mês antes da sua morte, é um romance ainda mais pessoal e íntimo do que as páginas do diário. Mas nada supera, em força devastadora e operação melancólica, os seus poemas (uma estreia em 1961, com Colossus & Other Poems, antes da publicação póstuma de Ariel e de Crossing the Water). O resto são minudências. Hoje, Sylvia Plath, que foi sempre demasiado bela e demasiado frágil, assinalaria 90 anos. É um emblema do século que passou.
Da coluna diária do CM.
Há milhares de razões pelas quais devemos apoiar os nossos arqueólogos, técnicos de conservação, preservação e restauro, químicos, especialistas em história de arte, e um vasto número de pessoas desta área, ligados (ou não) à Direção-Geral do Património Cultural. Cada objeto descoberto e inventariado, classificado e estudado, divulgado e amado, transporta a assinatura de equipas que preparam o caminho de cada peça para a luz do dia. Uma dessas razões vem na reportagem de Nicolau Ferreira no Público de ontem, que divulgou as primeiras imagens (de Rui Gaudêncio) da espada de D. Dinis, até aqui escondida no túmulo do rei em Odivelas, sob ossadas, entre tecido, poeira, entulho e outros objetos (até um jornal, que ficou de uma intervenção de 1938). Lá estava ela (e a sua ponteira): de ferro, com punho de prata e um cinto de “tecido com aplicações de esmalte”. Imagino a alegria de Rita Jerónimo e M. Antónia Amaral, que coordenaram a aventura. A partir de agora é outra aventura: a partir da espada de D. Dinis (1261-1325), explicar como era o rei, como era o mundo, como era Portugal.
Da coluna diária do CM.
Em 1914, uma militante sufragista esfaqueou o quadro “Vénus ao Espelho”, de Velázquez, em Londres – era um protesto contra a nudez de uma das mulheres mais belas da história da pintura e contra a prisão de uma companheira de luta; não é um modo surpreendente de chamar a atenção, mas hoje os atacantes são designados por “ativistas” e a ideia é defender boas causas praticando actos de rebeldia. Desde há meses, um grupo britânico intitulado Just Stop Oil já foram considerados ativistas do bem e defendidos nas “redes sociais” depois de terem vandalizado os “Girassóis”, de Van Gogh (1853-1890), na National Gallery, em Londres – de que já se tinham ocupado ao atacar ”Pessegueiros em Flor”, acrescentando à lista um quadro de Constable (1776-1837), outro, belíssimo, de Turner (1775-1851) e ”A Última Ceia”, de Leonardo Da Vinci (1452-1519). Anteontem, um grupo alemão juntou-se-lhes e foram designados ‘ativistas’ por atirarem puré de batata sobre “Os Palheiros”, de Monet (1840-1926). Ao menos, atacassem peças de ”arte contemporânea”, que ninguém ia notar – tirando os negociantes de petróleo.
Da coluna diária do CM.
Era uma vez um grupo de três rapazes que aprendi a admirar e com quem estive a meio de vários caminhos – mas cuja pedalada foi sempre maior do que a minha. Escreviam muito bem, eram inteligentes, cultos, destemidos, ousados (e também tímidos), fugazes e destinados a deixar o seu nome. Pedro Mexia, Pedro Lomba e João Pereira Coutinho fundaram há vinte anos um blog chamado ‘A Coluna Infame’ e provaram que era possível fazê-lo sem estar a repetir a lengalenga politicamente bem-educada, respeitadora e que, mais tarde ou mais cedo, iria levá-los às lideranças partidárias. Não foi assim: eram três pessoas diferentes, três canetas distintas, à direita, três bibliotecas contíguas – e ‘A Coluna Infame’ é uma marca cravada nesses primeiros anos do século; uma espécie de bandeira na encosta do Evereste: “Aqui estamos e foi isto que deixámos, não nos procurem lá no alto. Cada um foi pelo seu caminho.” Cada um deles é uma parte da natureza humana de que falava Manzoni (1785-1873), o autor da História da Coluna Infame. Vinte anos depois, pode dizer-se que esses três rapazes ganharam o combate.
Da coluna diária do CM.
A grande arte é saber envelhecer – e aceitar a idade. Há páginas maravilhosas de Séneca (4 a.C-65 d.C.) e de Montaigne (1533-1592) sobre o assunto. “Qualquer que seja a duração de nossa vida, ela é completa”, escrevia Montaigne nos seus Ensaios. “Os anos que vão declinando estão entre os mais doces da vida de um homem”, dizia Séneca. É a grande arte. Penso nisso diante dos gestos de Cristiano Ronaldo – o que pode ser abusivo da minha parte, porque CR7 é jovem pelos padrões habituais. Mas há no género humano uma tendência pouco nobre para a ingratidão quando se lhe colocam os desafios da idade, ao não compreender que a envelhecer, como escrevia Séneca a Lucílio, é entrar numa idade cansada, não numa idade arruinada. No caso de CR7, desaparece com a ingratidão toda a aura de um herói público que não sabe retirar-se, o que é uma pena. Mesmo Cícero (106-43 a.C), que era vaidoso e arrogante, e tinha sido um homem poderoso, recua quando se dá conta de que a idade o deixa amargo – e reconsidera: pelo menos tinha vivido. Não reconhecer isto é triste; dá pena ver a ingratidão de um anjo caído.
Da coluna diária do CM.
Tal como hoje lemos com algum espanto as narrativas sobre o fim do mundo na Alta Idade Média, há mais de mil anos, os historiadores de daqui a duzentos ou trezentos anos irão dedicar algum espaço às “redes sociais” do início do século XXI. Não porque sejam fontes essenciais, mas porque permitirão avaliar até que ponto as turbulências deste período se irão assemelhar a outras épocas de crise. É esse o motivo que me leva a ler as páginas de Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon (1737-1794), por exemplo. Mas o que torna a coisa apaixonante é a proliferação de “contas paródia” nas “redes sociais”, sobretudo no Twitter; são contas falsas que exageram os tiques ideológicos mais em voga, da esquerda à direita. Muitos leitores acham-nas tão prováveis e tão imbecis que caem na esparrela e tomam-nas por verdadeiras. O que elas defendem é geralmente absurdo, radical, insensato e cómico – mas as “guerras culturais” andam de tal forma ridículas, que algumas podem ser tomadas a sério. Eu defendo a sua proliferação, nem que seja para fazer rir os historiadores do futuro.
Da coluna diária do CM.
O novo livro de Lídia Jorge, Misericórdia (Dom Quixote), só podia ser escrito nestas condições. Há nele um sopro da idade, que me comove como há muito tempo não acontecia com nenhum livro de Lídia Jorge – e fui um leitor obstinado de O Dia dos Prodígios (1980), Notícia da Cidade Silvestre (1984) ou O Vale da Paixão (1998). Parte da sua obra (sobretudo depois de O Vento Assobiando nas Gruas, 2002) busca um certo género bondoso de perfeição ou humanidade – e acaba por perder força. Não sei o que isso é. Mas reconheço-a neste romance, retirado dos últimos dois anos de pavor, isolamento e perturbação. Colocada diante de um cenário de perda na comunidade ou na família (e de tolice humana, que também conta muito), Lídia Jorge resistiu a escrever uma memória da pandemia, da peste e do sofrimento; a sua melancolia (“uma alegria mansa que se chama melancolia”) é resistente, mas com a idade e as despedidas chega uma força inábil, enérgica e mais livre – é isso que nos deixa à vontade para escrever bons romances. Por isso, este ‘Misericórdia’ é poderoso e a sua escrita flutua sem ceder.
Da coluna diária do CM.
Houve um tempo em que, na literatura, cinema ou edição, mas também no jornalismo, nas escolas de ciências, economia e humanidades, por exemplo, podíamos falar de uma “geração de prata do catolicismo”. Ruy Belo falou dela, com ironia e desilusão, convencido de que estava no seu termo: “Nós os vencidos do catolicismo/ que não sabemos já donde a luz mana…” Com ele, havia também Alçada, Bénard da Costa, Luís Archer e muitos outros: um escol de economistas preocupados, de teólogos silenciados (como José Augusto Mourão), ou historiadores da igreja, como o patriarca Manuel Clemente. O silêncio (ou a desilusão) que se seguiu levou muitos a abandonar o catolicismo. O resumo do que ficou pode ser a arquitetura de Fátima, tão feia como funesta – e a ação missionária, a elogiar. Pessoas como Manuel Clemente, José Azevedo, Bento Domingues ou Tolentino Mendonça ou estão na hierarquia ou exilados pelo tempo. Talvez esta crise seja a oportunidade para católicos de raiz (e não os amigos de classe da hierarquia do anterior regime) voltarem a ter voz e assinarem com o seu nome as inquietações do tempo.
Da coluna diária do CM.
Passam amanhã 100 anos sobre o nascimento de Agustina Bessa-Luís (1922-2009). Foi a voz mais rebelde da literatura portuguesa de todo o século XX sem ter necessidade de o anunciar uma única vez, de tal modo destoa do romance que lhe foi contemporâneo. Avessa ao consenso, sempre surpreendente (a cada leitura descubro novas armadilhas e sombras que estendeu com perversidade), fugindo das soluções e das ideias mais correntes, mais dominantes e mais fáceis, Agustina leu Portugal melhor do que ninguém. Nos seus livros, somos peregrinos no caminho das paisagens, das cidades e das almas que fazem perguntas. Alguns dos seus romances, como Meninos de Ouro (1983), A Corte do Norte (1987), As Pessoas Felizes (1975), O Mosteiro (1980) ou A Sibila (1954), fazem parte da grande biblioteca da nossa língua – não porque a linguagem a preocupa, mas porque nos interroga e nos faz herdeiros dos grandes autores e visitas em trânsito de histórias que só ela teve a originalidade de tratar. Biógrafa, romancista, historiadora por empréstimo, Agustina deixou nos seus leitores uma marca de beleza e inteligência.
Da coluna diária do CM.
Esqueço a minha embirração com o artista britânico Damien Hirst, que há 15 anos vendeu uma das suas peças por cem milhões de dólares – um crânio coberto com cerca de 8 mil diamantes. A mais-valia eram a assinatura de Damien Hirst, a margem de comercialização dos diamantes e o valor não mensurável do objeto de arte. Bom negócio, cem milhões. Algumas das suas peças anteriores eram animais cortados mergulhados em formol – e ultimamente dedicou-se a “produzir” pinturas com pontos, do tamanho de pequenos confetis, coloridos aleatoriamente. Cerca de 10 mil. Esta semana decidiu queimar os seus originais em papel e substituí-los por cópias digitais, cada uma avaliada em cerca de 2 mil euros, o que totaliza 20 milhões de euros – todos NFT, “bens digitais únicos”. Podemos fazer um ‘screenshot’ no computador, mas não são “certificados”. É todo um outro patamar do negócio da arte; mais do que isso, a confirmação de que o futuro é cada vez mais frágil, digitalizado, guardado “na nuvem”. Nada contra. Somos cópias de cópias. A autenticidade é um simulacro que teremos de procurar nas coisas antigas.
Da coluna diária do CM.
Há duas maneiras de ler a estranha reação do Presidente da República às revelações sobre os abusos sexuais na igreja católica. A primeira, mais rigorosa, apreciaria as contradições do PR ao contactar figuras do episcopado, informando-as sobre inquéritos judiciais em curso. Noutro país, isto seria uma ilegalidade muito grave; entre nós, devia sê-lo. A segunda diria que o Presidente, católico e figura próxima da igreja, tentava minimizar o impacto dessas revelações e “proteger a fortaleza”, em nome “de um valor maior”. É uma péssima fotografia, porque o coloca ao lado dos poderosos e abusadores – e, sobretudo, contra as vítimas, cujo número o PR ontem desvalorizou de forma inaceitável, incompreensível e pouco avisada. Acontece que, para um católico, sobretudo depois dos dislates cometidos pelo bispo do Porto, é necessário tirar lições. A questão não está na relevância ou irrelevância dos números – mas na sua existência. E um Presidente é presidente de todos os portugueses. No jogo entre poderosos, abusadores e desprotegidos, ele deve estar no lugar que se lhe exige. Ou então não.
Da coluna diária do CM.
Passaram uma década a insultar-nos com a ideia de que, sem “uma companhia aérea de bandeira” não só perderíamos o negócio dos ares como, também, ficaríamos amputados de uma parte fundamental da nossa identidade. Sem a TAP seríamos um rebanho de beduínos perdidos no deserto europeu. Sem a TAP seríamos bárbaros que abandonam os emigrantes e as regiões autónomas. Com a TAP entraríamos no paraíso e salvaríamos a língua portuguesa, ai dela, que roncaria nos motores dos aviões, espalhando a fé e lembrando das caravelas. Ao fim de uma década e 5 mil milhões de euros, os heróis que nacionalizaram a TAP anunciam, no parlamento, que a TAP é para ser vendida e privatizada, “tal como estava previsto”. Se isto não é descaramento, a TAP é uma passarola, com a desvantagem de nos ficar mais cara, de ser interminável o seu folhetim, e de ser mais uma amostra de como é sempre fácil invocar a “identidade nacional” para proteger as maiores tolices e as opções políticas mais desastrosas. Estou a ser moderado. Samuel Johnson (1709-1784) diria, como disse, que o patriotismo é o último refúgio de um canalha.
Da coluna diária do CM.
Este fim-de-semana, no Folio – o festival literário que decorre em Óbidos – Mia Couto pode ter dado um passo fundamental para abordar a questão do passado português em África, ao sugerir a criação de um “museu da colonização”, pensado e criado em conjunto “por portugueses e africanos e que fosse um museu para construir memórias comuns”. Mia, que tem o dom de uma sensatez tranquila, acha que não se trata de reabrir feridas do passado – “seria mais terapêutico do que pedidos de desculpas”. Completamente de acordo. Lisboa é hoje uma cidade com uma marca africana tão relevante que é impossível pensá-la sem a comunidade de emigrantes de primeira e segunda geração que fazem de nós um país cada vez mais (felizmente) carregado de memórias comuns. Falamos de dar visibilidade aos africanos, que devem estar mais na política ou na televisão, como estão também no futebol ou nas artes; mas falamos também de dar visibilidade a uma herança comum, uma genealogia partilhada entre erros, omissões, violência, reencontro e palavras. Este é o caminho para evitar os guetos e tornar visível a memória.
Da coluna diária do CM.
O derradeiro romance de Saul Bellow (1915-2005) levava o título Ravelstein e foi publicado em 2000; o personagem principal inspirava-se na figura de um amigo, Allan Bloom, professor da Universidade de Chicago que morrera oito anos antes, e a quem prefaciou um dos mais importantes livros da década de 80, The Closing of the American Mind (traduzido em português por A Cultura Inculta). Bloom (1932-1992), sobre cuja morte passam hoje 30 anos, foi um dos intelectuais mais discutidos dessa década – e o livro é uma importante previsão sobre a decadência da sociedade americana, que ele comparou à República de Weimar alemã que levou ao nazismo, e sobre a crise das sociedades ocidentais tal como hoje a vivemos. Antecipando a emergência da cultura woke e do pop & rock como uma espécie de indústria da hipocrisia do capitalismo, Bloom não trouxe boas notícias: o vazio americano foi o território onde assentaria o radicalismo ideológico que tomou conta das universidades depois dos anos 60, renegando os autores e os livros clássicos. O tempo deu-lhe razão. É um grande e poderoso livro profético.
Da coluna diária do CM.
Não consigo resistir – nunca – a um romance de John Le Carré. A Murder of Quality (Um Crime de Categoria, Dom Quixote) tem 60 anos de idade e acaba de chegar às livrarias como uma espécie de recordação das primeiras deambulações de George Smiley, o personagem que marcou para sempre a sua obra e que deixa na nossa vida de leitores um sulco de mediocridade e melancolia. Entre a espionagem e os subterrâneos da elite, altos funcionários, universidade, troca de favores. Um Crime de Categoria é o segundo romance de Le Carré, um ano depois da estreia com Chamada para o Morto, e foi publicado em Portugal há muito tempo com o título Um Crime Quase Perfeito. Smiley não transporta ainda aquela doce resignação do pessimista, do homem traído pela sua história pessoal e pela ascensão dos medíocres no MI5, o serviço secreto britânico. Mas o cenário do livro – a vida universitária, em parte maior – já abre as portas para aquele mundo contaminado pela suspeita e pelas lembranças da História. É uma pequena delícia, este livro; uma segunda introdução ao mundo de Smiley, o génio discreto.
Da coluna diária do CM.
Aqui está, pois, o 5 de Outubro, um momento tão festejado na liturgia das efemérides. Não nos basta o 10 de Junho, festa que celebra a união simbólica dos portugueses, e o 25 de Abril, data fundadora do regime democrático – é necessário ainda festejar o 1.º de Dezembro, para assinalar a separação da coroa espanhola, e o 5 de Outubro, que comemora a República, um regime que durou pouco mas que deixou duas ou três instituições duradouras, entre muitas patifarias e uma história turbulenta. Em O Poder e o Povo: a revolução de 1910, sua tese de doutoramento em Oxford, Vasco Pulido Valente desmonta meio século de propaganda da República como regime cordato, democrático, avançado e próspero. Pelo contrário, foi violento, em guerra civil quase permanente, dominado pelas oligarquias, reacionário – e que transportou o país às portas da pobreza. Resta, ao 5 de Outubro, ser esse momento de viragem por ter cessado a vida da monarquia; infelizmente, os atuais casos de corrupção e abuso de poder contrariam a lógica de qualquer ética republicana. Espero que falem disso nos discursos de hoje.
Da coluna diária do CM.
É impossível não sentir alguma comoção diante daquela escultura de Bernini (1598-1680), na igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma, imortalizando o célebre êxtase de Santa Teresa de Ávila (1515-1582, passam hoje 440 anos sobre a sua morte): o anjo contempla Santa Teresa, desmaiada, antes ou depois de a trespassar com a lança que segura com a mão direita. A fundadora das Carmelitas Descalças (ordem para que há de arrebatar São João da Cruz, seu cúmplice no grande terramoto místico do catolicismo sombrio da época) fala desse momento num texto maravilhoso que está no livro Seta de Fogo (Assírio & Alvim), traduzido por José Bento, mencionando “vir de algures, não se entende de onde nem como, um golpe, ou como se viesse uma seta de fogo”, ou “um raio, que num instante atravessa tudo o que acha de terreno na nossa natureza e o deixa feito em pó”. Perseguida e depois apenas permitida, Santa Teresa de Ávila, falava de uma religião interior, de êxtase, sofrimento e espiritualidade que nunca mais existiu. Podemos lê-la como um relâmpago – só possível em tempos sombrios.
Da coluna diária do CM.
Por que é que o discurso de Vladimir Putin foi perigoso? Porque, além de se dirigir aos russos, responde a muitas questões levantadas pelos populistas europeus e americanos. Fala sobre a importância da pátria, a corrupção da vida em sociedade e as “ameaças modernas” à sexualidade tradicional, dirige-se a comunistas empedernidos e a reacionários radicais. Ambos morrem de amores por Putin e, para muitos, este discurso foi um combustível inestimável. A Europa devia ter respondido; não respondeu. A verdade é que não sabe responder, limita-se a confiar. Não devia. Depois do discurso de Putin, devia responder desmantelando todas as mentiras, manipulações e falsidades, como Churchill o fez em relação a Hitler e aos populismos da época. Joe Biden fornece armas para a Ucrânia resistir e ripostar; mas a opinião pública ocidental, enfraquecida e acomodada à boa vida a que nos habituámos, está cada vez mais periclitante; o discurso de Putin está cheio de mentiras, até factuais, mas nenhum líder europeu o lembrou, podendo ser cúmplices da devastação que a demagogia russa está a semear.
Da coluna diária do CM.
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