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O espaço público

por FJV, em 30.09.22

Devolver o território aos comboios é um passo importante; sem eles, o país é um desastre ambulante. Seria importante que, a par da nova linha Porto-Lisboa (anunciada por Pedro Nuno Santos), pudéssemos, um dia, assinalar que volta a ser possível viajar em comboios decentes pelo interior – em linhas que construíram a nossa geografia, a nossa memória e a nossa paisagem, ao longo dos rios, desenhando contornos nas montanhas. O regresso do comboio faz mais pelo ambiente do que dezenas de parvoíces para alegrar ginastas de ocasião que cavalgam trotinetas. Outra boa notícia foi a retirada dos ‘outdoors’ da praça do Marquês de Pombal (decidida por Carlos Moedas); os partidos políticos consideram que têm acesso livre e incondicional ao espaço público e que as suas tralhas devem ficar penduradas por tempo indefinido. Não é verdade. A defesa da paisagem urbana, tão desmazelada pela falta de árvores, de jardins (e de bancos de rua, volto a insistir) e de limpeza, teve aqui um combate importante, que devia ser seguido por outras autarquias. Só falta Lisboa limpa, e comboios e estações limpos.

Da coluna diária do CM.

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Zola, 120 anos.

por FJV, em 29.09.22

Talvez nunca perdoe a Émile Zola (1840-1902) eu ter lido primeiro o seu La Faute de l’abbé Mouret (O Pecado do padre Mouret) e só depois O Crime do Padre Amaro, de Eça – mas na altura líamos bastante francês e o livro tinha um certo picante. Ambos datam de 1875, têm títulos semelhantes e histórias idênticas. Afastada a hipótese de plágio, é uma vitória de Eça em todo o terreno, porque o Padre Amaro é muito melhor. Mas, 120 anos depois da morte de Zola, que passam hoje, reconheçamos que Zola foi um dos nomes mais marcantes da literatura ocidental. Nas estantes da adolescência, os seus livros (Thérèse Raquin, Germinal, Nana, A Taberna, A Besta Humana) eram uma referência constante. A defesa de Alfred Dreyfus num caso de anti-semitismo, de que resultaria o seu libelo J’Accuse!, transformou a história da vida intelectual moderna – até hoje. Não era um escritor brilhante; na comparação, Eça era um artista, Zola um repórter carregado de trabalho e boas intenções, cujos livros fazem parte da história e são testemunho dela. Talvez isso não seja suficiente, mas é bastante.

Da coluna diária do CM.

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Velhos.

por FJV, em 27.09.22

Os casos-limite que sucedem nos lares de idosos são apenas a face visível de uma cultura degradada na forma como trata os mais velhos. Por exemplo, as cidades – são feitas para quem? Ao longo de cerca de dois ou três quilómetros, num circuito de manutenção e pista para caminhadas junto ao mar, não há uma única sombra, um único banco para repouso; quem seja um pouco mais velho do que eu não tem lugar onde descansar. Os idosos. Os velhos. Nós, hoje ou um dia destes. No centro das cidades, as praças já não têm bancos de jardim, daqueles em que víamos gente sentada antes da pandemia. As carruagens do comboio têm um desvão de 30 a 40 centímetros para a plataforma, e estações muito modernas não têm escadas rolantes. São exemplos de falta de consideração pelos mais velhos. É um pecado nosso, país que adora adolescentes e nos trata por tu nos anúncios, como se fôssemos todos da trupe. Mas a honorabilidade de um país mede-se pela forma como respeita e cuida os mais velhos – e como essa cultura passa para a família e para a política. E assim perde parte da sua honra e da sua história.

Da coluna diária do CM.

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Volta aos Açores em 15 Dias.

por FJV, em 27.09.22

Garrett, nas Viagens, desafiava Xavier de Maistre, o autor de Viagem à Roda do meu Quarto (1794), a dar um salto pelo menos ao quintal. Hoje em dia exagera-se: a busca do exótico e das paragens distantes leva a que boa parte dos poucos livros de viagem que se escrevem entre nós acabem por ignorar o quintal e a soleira da porta. José Pedro Castanheira nem sequer repetiu a viagem paisagista de Raul Brandão em Ilhas Desconhecidas (de 1926) – em vez disso, partiu para os Açores de barco, sem literatura e como deve partir um viajante: rodeado de família. O resultado é Volta aos Açores em 15 Dias. Diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer (Tinta-da-China), um relato circunstancial e detalhado de tudo o que faz a viagem pelos mares: um confronto desmesurado entre um fragmento de ilha e um excesso de mar, os enjoos, as dificuldades, os episódios, as alegrias, os raros momentos de felicidade, que são únicos. Não há aqui “proveytoso deleyte”, como escrevem os poetas de antanho: há viagem pura e dura, agreste e maravilhosa, o que faz dela, por isso, matéria de um livro comovente.

Da coluna diária do CM.

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Eis a Europa doente de si mesma.

por FJV, em 26.09.22

O Ocidente, o nosso lugar no mundo, é uma tradição de liberdade, de solidariedade e de cultura que atravessa os séculos e produziu génios que perseguiram um ideal de beleza (Shakespeare, Cervantes, Kafka, Espinosa, Vasco da Gama, Bach, Velázquez, Mozart), lançou as bases de uma sociedade em que a porta da prosperidade deve ser aberta a todos, permitiu a discussão livre de ideias, extinguiu o autoritarismo e permitiu que cada indivíduo procure os meios de obter a sua “felicidade”, reformando a linguagem das religiões e libertando às minorias. Não são bens ou valores adquiridos; precisam ser defendidos e exigem sacrifícios. A decadência da Europa tem, no entanto, a ver com a sua prosperidade, com o modo como é egoísta e trai os seus valores ou abdica deles. A guerra na Ucrânia é também a guerra da Europa contra a barbárie e o imperialismo. Custa a crer como parte dos europeus, a acreditar nas últimas sondagens, preferem ceder parte da Ucrânia a enfrentar a agressão e o autoritarismo russos, desde que não seja nas suas cidades e nos seus jardins. Eis a Europa doente de si mesma.

Da coluna diária do CM.

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Greve ao sexo.

por FJV, em 23.09.22

Bife com molho de limão e grão-de-bico - Panelinha

O braço alemão daquela organização estroina, mas de bons princípios, designada por PETA (traduzo literalmente: “pessoas pelo tratamento ético dos animais”), pede encarecidamente que as mulheres façam uma greve de sexo “contra os homens carnívoros”. A ideia é salvar o mundo, não só da “masculinidade tóxica” (porque os homens, sobretudo alemães, consomem mais carne do que as mulheres), mas também da reprodução de seres eventualmente omnívoros, ou seja, capazes de tudo: de comer um bife, depenicar uma asa de frango, filetear uma sardinha – tudo na companhias de salada. Trata-se, portanto, de uma campanha em favor da castidade. Não é novo. Nas religiões primevas, como o judaísmo e o islão, há regras (kasher e halal) e alimentos proibidos. Para o PETA, é mais do que isso: qualquer contacto com a carne – através do tacto, de eventuais fluidos ou da simples imaginação erótica – é pecado. As mulheres, e não só as militantes do PETA (que defendem a proibição de gerar gente carnívora) devem, portanto, abster-se de envolvimento com rapazes. Sinceramente, acho que estes pensam que é boa ideia.

Da coluna diária do CM.

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A estupidez é a guerra por outros meios.

por FJV, em 22.09.22

Depois de setenta anos de «paz perpétua», a Europa tem uma guerra nas suas fronteiras. A invasão da Ucrânia pelos exércitos imperialistas russos é o fim dessa estabilidade – e à qual a Europa não podia ficar indiferente, porque a inviolabilidade das fronteiras é uma das bases dessa estabilidade. Isso e o respeito pelos povos. Adiante. De todas as razões, as “históricas” parecem-me bastante senis; são as mesmas que, recuando de século para século, levariam a França a reivindicar o atual Reino Unido ou nós, se não fôssemos pindéricos, a fazer uma arruaça em Marrocos, porque o Marquês de Pombal estava bêbedo quando mandou abandonar Mazagão. O que me preocupa é o argumento de que “é preciso ser muito estúpido para achar que a Rússia podia perder a guerra, porque agora vemos levar com a ogiva”. A frase vem diretamente das “redes sociais”, onde analistas de grande sensibilidade, rebuscados no PCP ou na direita radical, dão as mãos embevecidos e hirtos de cada vez que os majores-generais Costa e Branco procedem nas suas homilias. De facto, a estupidez é a guerra por outros meios.

Da coluna diária do CM.

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Scott.

por FJV, em 21.09.22

Walter Scott – Wikipédia, a enciclopédia livre

Hoje falamos de Walter Scott (1771-1832) como de uma velharia que ninguém lê senão como uma espécie de arqueologia do romance histórico, cheia de castelos medievais, aventureiros obscuros e amores românticos e obsessivos. Escocês de Edimburgo, Scott foi um dos representantes dessa geração de grandes autores europeus que pretendia reconstruir a História nos seus romances. A verdade é que a sua obra e o seu génio marcaram autores tão diferentes como Victor Hugo, Emilio Salgari, Alexandre Herculano, Júlio Verne, as irmãs Brontë, Dumas ou mesmo Virginia Woolf. Ivanhoe, que foi adaptado e readaptado ao cinema (incluindo com Elizabeth Taylor e Joan Fontaine), à televisão e à ópera – os seus livros, aliás, inspiraram grandes compositores, de Schubert a Rossini ou Berlioz e Beethoven), é um livro eterno. As edições portuguesas de Scott, tirando Ivanhoe, estão esgotadas, incluindo Rob Roy ou O Espelho da Tia Margarida, que foram sucesso de livraria. É a vida. 190 anos depois da sua morte, que passam hoje, sabemos que, sem esses livros de Scott, a Europa não teria sido como foi.

Da coluna diária do CM.

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O lugar mais solene.

por FJV, em 20.09.22

10 dos melhores looks da rainha Isabel II no seu aniversário – LuxWOMAN

Ao longo dos últimos dez dias, a generalidade das televisões portuguesas (mesmo os canais mais moralistas) arrastou-se penosamente pelas ruas de Londres para fazer a cobertura das homenagens a Isabel II e imagino que ontem tenha sido a apoteose das transmissões em direto – não vi. Não porque não admirasse Isabel II, mas porque há um limite para a tolice funerária que tomou conta das televisões, exultantes com o tamanho das filas e com o horário dos protocolos, repetidos até à exaustão. Finalmente, a rainha pode descansar em paz e nós reconduzidos a algum recato. Ela foi uma exceção de sensatez, sacrifício e dever no meio de um bando de linhas sucessórias mimadas e sem o sentido da “gravitas” que lhes exigia a sua condição. Grande parte da sua família – creio que com exceção de William – comportou-se como alimento para mexericos, exibindo caprichos de seres mimados, bons para Hollywood mas péssimos para uma monarquia respeitável. Só ela percebeu que Buckingham não podia ser um festim para as primeiras páginas dos jornais e, ao invés, devia ser o lugar mais solene do Reino Unido.

Da coluna diária do CM.

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Uma vergonhosa agressão.

por FJV, em 19.09.22

Que tenha dado conta, apenas um edifício escapou às pichagens e pinturas dos vândalos nas estações de comboio entre Cascais e Lisboa: o da 3ª Esquadra de Segurança a Transportes Públicos da PSP, em Oeiras. De resto, não há uma única estação onde se tenham salvo paredes, túneis, divisórias de acrílico, placas de sinalização, muros ou escadas. Em todos esses lugares, a criatividade imbecil da rapaziada deixou a sua marca e o seu rasto de destruição, às vezes misturando-se com a duvidosa “arte urbana”. Os leitores sabem: todas as estações urbanas e suburbanas de Portugal, da hedionda e desagradável Estação de Oriente, em Lisboa, até à antigamente galante de Sintra, estão submetidas à lei da selva e ao lixo perpétuo. Sobre o lixo, é tradição de desleixo; sobre as pinturas, é uma agressão aos cidadãos, e nada explica que o espaço público esteja a ser destroçado por essa tribo de selvagens. Por mim, obrigava cada prevaricador a limpar o que pintalgou e a passar uma temporada em reeducação – ou a desafiar o destino e pintar as paredes da PSP da estação de Oeiras. É uma campanha pelo país.

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O Português. Ponto.

por FJV, em 16.09.22

Corre nas “redes sociais” um debate para determinar se um exame de Português deve, ou não, ser obrigatório para concluir o ensino secundário nos cursos de ciências. Já se percebeu que o Ministério da Educação não vai descansar enquanto não acabar com os exames propriamente ditos, quanto mais com os de Português. Tenho verificado que algumas almas práticas, muito “modernas” e “liberais”, consideram que essa exigência é supérflua – bastam inglês e “disciplinas práticas”. Esta ideia de que o Português é inimigo dos portugueses deve muito à forma como o Ministério da Educação deixou que uma casta de gramáticos descarados e lunáticos transformasse o ensino da língua aos adolescentes numa caranguejola que ninguém entende e de que se deve fugir a sete pés (lembram-se da TLEBS?). Mas, tirando isso, não custa entender como há quem pense assim. Juntando o abandono de professores experimentados ao desinteresse pelo rigor e por coisas tão “inúteis” como a correção ortográfica, vejo o futuro com muito otimismo e prevejo que teremos manuais de Português escritos por influencers. Ou analfabetos.

Da coluna diária do CM.

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O declínio do império.

por FJV, em 14.09.22

A terminar o seu artigo desta semana no DN, António Araújo foi lapidar: “A Europa acabou, esmagada pela pressão demográfica e migratória do Sul, pelo poderio económico do Oriente e pela geopolítica do eixo do Pacífico. A Europa acabou. Divirtam-se nas compras de Natal.” Mesmo não sabendo como vai terminar a guerra da Ucrânia, é isso. Calhou estar a reler a monumental ‘História do Declínio e Queda do Império Romano’, de Edward Gibbon (1737-1794), que a Bookbuilders publicou na versão resumida de dois volumes (a original é de seis). A prodigiosa obra de Gibbon é também lapidar: como foi possível que o império ignorasse todos os sinais de decadência, da ameaça do cristianismo, da degradação “na moral e no governo material do mundo” e deitasse a perder “o período da História do mundo em que a condição da raça humana foi mais feliz e próspera”? A verdade é que “a corrupção dos costumes iria sempre originar aduladores, ansiosos por aplaudir, e ministros dispostos a servir o medo ou a avareza, a volúpia ou a crueldade”. Ontem como hoje, imaginamo-nos eternos e preparamos as compras de Natal.

Da coluna diária do CM.

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Aguiar e Silva.

por FJV, em 13.09.22

Noutra vida qualquer, quando pensei em preparar o doutoramento, a primeira pessoa com quem falei foi Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1939-2022), cuja Teoria da Literatura acompanhou os meus anos de estudante como uma referência indispensável e um repositório do melhor sobre a matéria – tal como os seus estudos sobre o barroco. Mais tarde, Aguiar e Silva, já na Universidade do Minho, regressou a Camões, a quem dedicou a organização de um dicionário de mil páginas, e um belo Camões, Labirintos e Fascínios. Em 2010 tinha publicado um premonitório livro de combate, As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua, antes de um melancólico Colheita de Inverno, páginas de crítica e leitura, pouco antes de receber o Prémio Camões, há dois anos. Era um humanista amável e solene, um dos últimos representantes de uma escola de seriedade que hoje infelizmente se despreza, um estudioso e erudito que marcou a vida das letras e da universidade. Com a sua morte, ontem, perdeu-se um homem discreto cuja obra não podemos ignorar nem esquecer.

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Javier, o Outono.

por FJV, em 12.09.22

Está portanto inaugurado o outono nas letras hispânicas. A morte de Javier Marías teve, ontem, esse efeito sobre nós, seus leitores. Não só porque a morte é como é, mas porque, como escritor, teríamos muito a esperar da sua obra. Filho de Julián Marías, filósofo e académico, Javier é o mais importante escritor espanhol das últimas décadas, um raio fulminante de literatura e só literatura. Todas as AlmasCoração Tão Branco, Amanhã na Batalha Pensa em MimEnamoramentosAssim Começa o Mal (todos publicados na Alfaguara) ou esse notável Berta Isla ficarão para sempre no panteão das letras espanholas. Talvez esteja a ser solene demais; num mundo de banalização da literatura, Javier Marías recusou descer os degraus da legibilidade – quando a generalidade dos autores optava por tratar ‘temas de agora’, encostando-se aos púlpitos da moral, ele prosseguia sendo escritor, se me faço entender. Por isso, os seus livros ficarão para sempre. Em Vidas Escritas, um livro sobre escritores, Marías escrevia sobre os seus pares e antepassados notáveis. Ele é um deles agora. Uma vida escrita.

Da coluna diária do CM.

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Livros em papel.

por FJV, em 09.09.22

Antes que os sinos dobrem, falemos dos arquivos do passado, guardados em papel, gravados em pergaminho, reunidos em vastíssimos corredores que levam a outros e a outrs, sem limite – e cujo acesso está geralmente vedado. Temo-los com mil anos de idade. Com mais de dois mil, se pensarmos nas carapaças de tartaruga, nas argilas do deserto, nas pedras onde os antigos gravaram palavras para a eternidade. A eternidade é o nosso tempo. Esses arquivos são hoje impensáveis, e substituímo-los por discos de sílica e nuvens invisíveis onde pairam pedaços encriptados da nossa vida: registos, dados, factos, memórias, segredos. Não durarão tanto como as tabuinhas, as placas e os pergaminhos. São assaltados e roubados a uma velocidade estonteante, transformados em poeira e acessíveis a ladrões especializados e à revenda em corredores digitais. Agora, que a feira do livro está a terminar, penso nos livros em papel que durarão mais do que um CD ou um arquivo digital, que manterão o seu odor e que os nossos netos poderão folhear. Já os arquivos militares portugueses, ó deuses, alguém sabe onde andam?

Da coluna diária do CM.

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A verdade tem um preço.

por FJV, em 08.09.22

No calor da discussão sobre a bondade do “pacote” anunciado na segunda-feira fui à CMTV e, como não sou economista, lembrei apenas que as decisões do governo costumam deixar um travo amargo quando se analisam à distância de dois ou três dias. Exemplos: a meia pensão antecipada para reformados (que na verdade antecipa penalizações para depois) e as taxas de eletricidade (poupança de 1,5€, se estiver no escalão mais baixo). Ambas traziam o lastro da astúcia. O problema é que nos habituámos a que sempre exista um truque, uma bilhardice, uma maneira de contornar a realidade. Para o gosto político português, muito trafulha e bisonho, isso é uma vantagem, porque parece gostarmos de enganos, caudilhos espertos e bravatas autoritárias. Em 2017, depois dos incêndios de Pedrógão, anunciou-se a “maior reforma da floresta desde D. Dinis”; esta semana, com atraso de meses, o “maior apoio de sempre”. Durante dois dias, isto enche o olho de um país pobre, de recursos limitados, servidor e dependente, impressionável; depois, a realidade mostra o malabarismo. A verdade é que tudo tem um preço.

Da coluna diária do CM.

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O Lixo na Minha Cabeça.

por FJV, em 07.09.22

O que é mais fascinante nos desenhos de Hugo Van der Ding é que os textos que os acompanham não poderiam dar-nos tanta vontade de rir se não fossem acompanhados pelos desenhos de Hugo Van der Ding. Estão agora antologiados e reunidos num volume intitulado O Lixo na Minha Cabeça (Oficina do Livro) e são geniais. O resto é bastante: um humor corrosivo (é o mínimo que se pode dizer), mau, perverso, fútil, justíssimo, desagradável, malévolo, malcriado, enternecedor, em redor de personagens que modelam a nossa “vida moderna” e falam em nosso nome quando estamos na plena posse das nossas piores faculdades – como as extraordinárias psicanalista Juliana Saavedra e farmacêutica Madalena, as Duas Amigas, a Dra. Messalina, a velhinha moderna Celeste da Encarnação, ou A Mulher que Gritava Coisas Durante o Orgasmo. O mundo podia ser muito diferente sem a maldade destas personagens – mas seria artificial e pomposo. As pessoas demasiado agradáveis são aborrecidas e metem demasiado; Hugo Van der Ding desenha as suas personagens como um trituradores de bons sentimentos. É muito, muito bom.

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António Lobo Antunes, 80 anos.

por FJV, em 05.09.22

António Lobo Antunes completou 80 anos na passada quinta-feira. A data foi comemorada: é o nosso maior escritor vivo, não uma estrela de televisão, um convidado esporádico da política, um “ativista” que empresta o seu nome ao tempo que passa. Isso só o pode fazer um escritor que vive como escritor e que afronta sem receio o estado das coisas, ou seja, isto que somos. Não precisamos de “estar de acordo”; não precisamos de ser “do mesmo grupo”, da mesma família, do mesmo conjunto de “afinidades eletivas”. António Lobo Antunes, peço desculpa pela expressão, “está-se nas tintas” – e isso é o sinal vivo de um escritor, que decide sobre o que quer escrever, como quer escrever. Os seus livros não propõem uma forma de vida, um regime político, uma moral acerca do fim do mundo – são grandes livros, escritos com aquela melancolia, contígua da tristeza, que não se confunde com nenhuma amargura, nenhum ressentimento. O meu livro preferido é O Manual dos Inquisidores (de 1996), mas podia escolher outro. Seria igualmente de difícil leitura, o que não faria Lobo Antunes facilitar coisa nenhuma.

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O Velho e o Mar.

por FJV, em 01.09.22

A 1 de setembro de 1952, exatamente há 70 anos, a revista ‘Life’ publicou um grande excerto de O Velho e o Mar, a pequena história de Ernest Hemingway. O livro, publicado no mesmo dia (127 páginas, com belíssimas ilustrações), teve um êxito extraordinário e foi decisivo não só para a divulgação do nome de Hemingway mas, também, para a atribuição do Nobel, dois anos depois. É uma história humaníssima, passada em Cuba contando a história de Santiago, um pescador que não consegue arrancar peixe do mar ao longo de 85 dias – altura em que captura um gigantesco espadarte de cinco metros e meio. A luta contra o mar e contra o peixe é a parte do livro que se aproxima da epopeia, que relembra a história de Moby Dick, de Herman Melville. Mas isso seria fácil demais; Hemingway cria mais luta ainda, a de Santiago com tubarões que atacam o barco e o peixe capturado, que é maior do que a embarcação. Deixo o resto da história para os leitores descobrirem – o final é de uma melancolia muito à maneira de Hemingway, que fez deO Velho e o Mar um belo clássico da literatura do século XX.

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