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A invasão da Ucrânia despertou algum interesse pela história, mas foi sol de pouca dura. O ensino público europeu dá cada vez menos espaço ao estudo da história. É um erro grave – e o resultado do sentimento de culpa insuflado hoje em dia no ocidente, que vive da retórica anti-imperial e onde a regra é a de pedir desculpa pelo passado.Uma suposta “nova ordem internacional” assenta na forma como se interpretam as heranças dos vários impérios, a começar pela violência da Rússia dos Romanov (1613-1917) e dos sovietes (1917-1986), mas também pelo da dinastia Qin (221 a.C-206 a.C) à Qing na China (1644-1912), pelo da ambição otomana de Erdogan (1299-1922) ou na dos domínios persas em torno do Irão (do Líbano ao Afeganistão) ou na Índia. Estas coisas aprendem-se no contacto com a história, que também ensina que a União Europeia agrupa antigos impérios (do de Carlos Magno aos Habsburgos ou à Prússia, por exemplo). A questão é distinguir-se a ordem imperial de outrora e a geografia da memória. Se o ocidente abdica da memória porque ela não está conforme às ideias de hoje, daqui a pouco não terá passado nem futuro.
Da coluna diária do CM.
O Global Teacher Status (Varkey Foundation) analisa a forma como os professores são respeitados em relação a outras profissões, qual o seu estatuto, as suas retribuições, a confiança que neles é depositada pelos pais, alunos e resto da comunidade. Os dados de 2018 incluem 35 países, cabendo o topo à China e, logo a seguir, à Malásia e a Taiwan (nesses três países, os professores são recrutados entre os 10% melhores de cada curso); Portugal está na 23.ª posição. Não admira que a Comissão Europeia tenha admoestado o nosso país sobre os salários de professores contratados a prazo (manchete do CM de ontem) – parentes pobres e recorrentes do sistema, cuja situação profissional pode prolongar-se absurda e indefinidamente. Não basta, no entanto, resolver esse problema. Os partidos, os burocratas e os políticos transformaram os professores em “classe detestada”, desprotegidos em casos de violência e condenados à burocracia. Resta-lhes pouco tempo para serem professores; são psicólogos, animadores, pais de substituição, gestores. A forma como são tratados dá uma imagem de como o país é tratado.
Da coluna diária do CM.
Nunca gostei de histórias de espadachins, de modo que o meu primeiro livro de Alexandre Dumas (1802-1870) foi A Tulipa Negra, uma história de amor holandesa, passada no cárcere – que me aborreceu muito e nunca terminei. Depois li Conde de Monte Cristo, na velha edição da Civilização, em quatro volumes, que ainda guardo. Como todos os adolescentes, a figura de Edmond Dantès foi apaixonante, tal como a sua vingança sobre Danglars, Mondego, Morcerf e Villefort, os malvados de Paris. Só na idade adulta li Os Quatro Mosqueteiros (bom como A Rainha Margot e o aventuroso conjunto de Memórias de um Médico, com Joseph Balsamo), e por causa de O Clube Dumas, romance de Arturo Pérez-Reverte; foi acertado – os imbróglios de D’Artagnan com Athos, Porthos e Aramis só se compreendem realmente no contexto da política francesa sob Luís XIII (casado com Ana de Habsburgo, infanta de Portugal), Richelieu e Mazarin. Alexandre Dumas, espalhafatoso e figura de romance de quem hoje assinalamos 220 anos sobre o seu nascimento, escreveu o retrato folhetinesco dessa época. De capa e espada, como no cinema.
Da coluna diária do CM.
Passam hoje 140 anos sobre o nascimento de Edward Hopper (1882-1967), um dos mais importantes pintores norte-americanos. Há pouco a dizer sobre os seus quadros, aos quais aderimos como uma sombra à procura do original: seres abandonados, envoltos em silêncio, lendo, bebendo, esperando, contemplando. Nenhum pintor conseguiu, como Hopper – que foi um mestre da melancolia americana – mostrar esse mundo urbano, solitário e cheio de cinema, transitando entre quartos de hotel, balcões de restaurantes, salas de leitura, compartimentos de comboios ou casas da Costa Leste, penduradas sobre o mar ou em pradarias e falésias indefinidas. As suas personagens parecem sempre suspensas e paralisadas, como se aguardassem alguém com quem possam dialogar no meio dessa geometria colorida e amável. Era fácil compreender estas referências no século XX; ao contrário das vanguardas em que cresceu, Hopper preferiu uma pintura figurativa, realista, a meio caminho entre a réplica fotográfica e a ilustração – nada disso o impede de ser absolutamente genial, deixando em cada quadro um rasto de beleza sem tormento.
Da coluna diária do CM.
Em maio de 1928, o poeta Oswald de Andrade publicou o Manifesto Antropofágico e com isso começou a cultura brasileira; a “antropofagia cultural” não defendia o canibalismo em si mesmo – mas que se devorasse tudo o resto: na música, pintura, literatura, cozinha, moda, o que fosse. Deglutir o que nos é estranho, usar o que é dos outros, desde as tranças no cabelo aos ingredientes da sobremesa. Essa foi a génese da modernidade, que hoje enfrenta uma barulhenta e decidida vaga reacionária que luta contra a “apropriação cultural”, encabeçada por indigenistas e nacionalistas. Não são criadores nem pessoas ousadas e livres; no mundo da cultura, são uma espécie de fiscais que controla a licença de isqueiro, como no tempo do fascismo. Esta pobre gente inculta mas com berraria, acha que a posta mirandesa só pode ser comida em Sendim, que os piercing dos ianomani só podem ser usados na Amazónia e que o cérebro só pode ser usado longe deles. Uma das coisas que ignoram é que tranças frisadas se usavam no Mediterrâneo há mais de 2000 anos, mas isso é um pormenor para o seu exibicionismo flibusteiro.
Da coluna diária do CM.
No seu derradeiro livro, Coisas Que Eu Sei (Oficina do Livro), publicado em maio do ano passado, Maria de Lourdes Modesto (1930-2022) lamenta que estejam a desaparecer as memórias da cozinha portuguesa e declara que “o risco de desfiguração e perda se tornou superlativo”. Ao longo dos últimos 50 anos, preocupou-se em divulgar, proteger e clarificar essa herança cultural transmitida nas nossas cozinhas – ela sabia que a principal fonte dessa tradição eram os fogões domésticos onde nascia um sistema que juntava paladar, história económica e social, geografia, biologia e sensatez. Esse último livro é um modelo de precisão, simplicidade e gosto. Só isso permite que a receita de ovos Bénédictine, por exemplo, tenha apenas três linhas e meia; nada mais. O seu Cozinha Tradicional Portuguesa (1981) continuará a ser uma referência monumental; mas o que permanece, e não se deve desprezar, é esse ideal de sensatez e descoberta que trouxe para a nossa mesa, relembrando o que construiu os grandes sabores das nossas vidas. Num mundo de exibicionistas, ela foi uma Grande Dama discreta e sábia.
Da coluna diária do CM.
Tanto os suecos (no século XVIII), como os franceses (Bonaparte, em 1812) ou os alemães (1943) experimentaram a força do “general Inverno”, o grande aliado da Rússia que derrotou exércitos e chefes militares otimistas. Temo que, desta vez, os russos agradeçam ao “general Verão” a desmobilização do interesse ocidental pela Ucrânia. Com o verão e as férias europeias, essa desmobilização deixa à solta, como um fantasma, a agressividade da invasão russa – que, além das cidades e das vidas destruídas, da fome e da ameaça a todo o mundo, arrasou bibliotecas, museus, edifícios históricos e religiosos, centros culturais, museus, escolas e universidades (os dados da UNESCO falam de mais de 300 locais de interesse cultural atacados ou destruídos). O ocidente, muito preocupado com as políticas identitárias e as pequenas “guerras culturais” sobre o que é “género” e o que é “sexo”, sobre o que é censurável, admissível e ofensivo, esquece esta verdadeira guerra cultural – a destruição massiva e propositada, orientada pelo aparelho militar russo em território estrangeiro. Esta é uma guerra verdadeira.
Da coluna diária do CM.
Agora, que se fala muito em cancelamento e censura, ou em reavaliação da história, recordo apenas que a onda de maluquinhos já vem de há muito, e sempre em nome de excelentes causas. Ninguém se recorda hoje mas, em março de 1983, o jornal francês Libération (um porta-voz dessa espécie) propôs que a ministra dos Direitos da Mulher (no 3.º governo socialista de Mitterrand-Mauroy, e na sequência da sua lei anti-sexista), colocasse no índex o Pantagruel, de Rabelais, As Neves de Kilimanjaro, de Hemingway, Judas, o Obscuro, de Thomas Hardy, toda a obra de Kafka, a poesia de Baudelaire e, claro, Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Porquê? “Provocação pública e ódio sexista.” Toda a obra de Kafka e Baudelaire? Flaubert? Convém lembrar que a sanha persecutória que hoje é praticada pelas boas consciências progressistas tem raízes profundas na história dos seus desejos. A ministra não acedeu (Mitterrand não deixou); mas é bom saber que certas almas defendiam um mundo que não podia ler Kafka, nem Baudelaire, nem Flaubert, nem Hardy ou Hemingway, entre outros. Ontem como hoje.
Da coluna diária do CM.
Kevin Spacey é um dos atores que mais admiro, que mais gosto de ver atuar (revejo House of Cards todos os anos, vejo Beleza Americana de vez em quando) que mais me espantam pelo silêncio em redor das acusações de “comportamento inapropriado”. Refiro-me a “cinco crimes sexuais” cometidos sobre três homens, “entre os 30 e os 40 anos”. Vejamos. Olarila. Que coisa. Entre os 30 e os 40, repito – ou seja, gente na plena posse das suas responsabilidades e no chamado “gozo da idade adulta”, que acusa Kevin Spacey de agressão. Castiguem-no. O segundo ponto é o do “comportamento inapropriado”; parece que Spacey teve esse tipo de “comportamento” enquanto passava pelo corredor ou no acesso ao palco, ou num vão de escada, ou entre os reposteiros de um salão onde decorria um cocktail. O “comportamento inapropriado” dá hoje origem a julgamento em tribunal, processo judicial, despedimento compulsivo, desprezo pelos seus pares, silenciamento geral em tudo quanto é lugar e inclusive cenas suas, em filmes (de Ridley Scott), que foram retiradas. Bem vistas as coisas, mariquinhas é o que eles são.
Da coluna diária do CM.
Independentemente da tragicomédia familiar, que o pudor impede que se comente, há um grande desfile de elogios fúnebres e de discussões solenes sobre o legado de José Eduardo dos Santos. Para afastar a polémica podia dizer-se que se trata de uma personagem “boa para um romance” – a verdade é que já está em alguns, sobretudo na sua capacidade de algoz. Desde a independência, para não irmos mais além, houve vários regimes: o de Agostinho Neto até ao 27 de maio de 1977, quando se realizou a grande purga no partido do poder e se instalou em definitivo o gulag angolano; os dois tempos de José Eduardo dos Santos, que herdou o paísem desordem e instalou a sua oligarquia cleptocrata num país cheio de pobreza, derrotou a UNITA, fingiu não ser um chefe de regime de partido único, continuou a encher as prisões e a empregar bandidos arrogantes até entrar em derrocada; finalmente, o de Lourenço, que tenta uma certa normalidade, que só será conseguida quando o partido sair do poder. Em resumo é isto, com mais ou menos elegância. Dado o número de vítimas dos vários regimes, prefiro esta maneira.
Da coluna diária do CM.
Mesmo a milhares de quilómetros, a vaga de calor não tem apenas um valor meteorológico – tem uma dimensão trágica. Urbano Tavares Rodrigues tem um romance com esse título, tomando o lado benigno do calor. Eça de Queirós escreveu sobre o “calor de ananases” e citou um outro – conhecido de Camilo, naturalmente –, o “de derreter untos”. Era o calor do século XIX, manso como um aldeia com campanário e filarmónica ao domingo. A citação mais literária que conheço é a de Wilfred Thesiger, um inglês nascido em Addis Abbeba, também conhecido pelo nome de Mubarak bin Landan (1910-2003), que se apaixonou pelas arábias e escreveu sobre “a fornalha do deserto”. Mas nunca encontrei calor tão maléfico como o de Grande Sertão Veredas (1953), de João Guimarães Rosa, ou o de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1938). O calor mais hipócrita é o das vozes da rádio logo de manhã, e que ao longo de mais de metade do ano pedem “bom tempo” e o fim da chuva como se o mundo fosse uma cidade à beira mar onde nascessem caipirinhas debaixo de jacarandás pegajosos. Depois, à tarde, são “ativistas pelo planeta”.
Da coluna diária do CM.
Temos de mudar. Conservador como sou, digo-o de outra maneira: vamos recuperar o que estava bem. Explico: o mundo descobriu de repente que estava afogado em plástico, o que obriga a tomar medidas drásticas: acabar com as sacolas de plástico (uma bênção!), com talheres e copos plásticos, a lista é vasta. Isto leva-me a pensar no tempo em que nem tudo era descartável: as toalhas de mesa, que eram de tecido, as garrafas, que eram de vidro (e que se trocavam), tal como os copos. Os talheres. O saco de pano para ir comprar pão. Os guardanapos com argola individual. A roupa, que não era descartável e tinha de durar de ano para ano, e mais. As solas dos sapatos, que se gastavam e se substituíam – e engraxavam-se os sapatos, claro. Parte dos meus leitores recorda esse tempo. Não comíamos em pratos de plástico nem de cartão. Ao contrário do que pensam os ativistas, o mundo não nasceu hoje; já éramos anti-desperdício antes da era da abundância em que foram criados: éramos gente antiga e com uma certa ideia da duração das coisas. Há um tempo em que somos forçados a aceitar o razoável.
Da coluna diária do CM.
É evidente que uma reforma da floresta não muda o destino dos incêndios. Muda-o, sim, enquanto se aceitar viver no mundo da propaganda. Quando as dores de Pedrógão ainda não tinham sido pacificadas (porque nunca desaparecerão), um ministro anunciou a maior reforma da floresta desde D. Dinis. Convém não o esquecer. Não é por embirração, teimosia, obsessão – como a generalidade dos portugueses cordatos pensa. É, sobretudo, porque não devemos autorizar que ninguém nos minta, aldrabe, menospreze ou ofenda – com a nossa concordância. O ministro da Agricultura de então anunciou a maior reforma da floresta desde D. Dinis. Não uma, mas duas vezes – no local onde plantou umas árvores comemorativas, e num jornal onde perorou sobre a sua reforma da floresta. As árvores comemorativas, já agora, secaram pouco tempo depois e nunca mais as televisões se interessaram por elas. Estou à espera que se exija uma reforma da floresta. Não tardará. Primeiro, virá o desejo de um belo “estado de calamidade”, porque se habituaram presidir e a governar em emergências. Quem quer morar aqui, no meio da propaganda?
Da coluna diária do CM.
Uma jovem relativamente analfabeta escreveu um artigo na Folha de São Paulo sobre a Bienal do Livro que, este ano, é dedicada a Portugal; a tese, relativamente simples, é a de que a delegação de escritores portugueses é sobretudo composta de autores brancos, o que é uma ofensa no ano em que se assinala o bicentenário da independência do Brasil. Boa sorte. Mesmo os autores não-europeus que estão presentes nesse grupo (o timorense Luís Cardoso, o angolano Kalaf Epalanga e a moçambicana Paulina Chiziane) são uma espécie de idiotas úteis que acompanham a “delegação colonialista” portuguesa. Adiante. No Brasil, na moderna esquerda inteletual, que esmaga a agenda social num país onde a miséria ameça ser endémica, a propaganda “woke” marca estes debates em que são criticadas as “homenagens” (porque se deveria dizer “feminagens”), o uso de “denegrir” ou de “clarificar” (porque usam os radicais “negro” ou “claro”). Esta ignorância supina é uma vaga de espuma suja e histérica, coroada pelo ressentimento e por mais ignorância. É uma pena. Cometemos o pecado de sermos pálidos, velhos e cordatos.
Da coluna diária do CM.
Volto à questão de ontem (para colocar um ponto no i), a das crianças de Famalicão que o Ministério Público queria entregar à direção da escola, a fim de frequentarem as aulas de Cidadania. Não está em causa a existência dessas aulas, mas parece que o MP encontra sérios perigos “impingidos” pelos pais (que têm um feitio “contumaz”) aos filhos – e que os estaria a prejudicar gravemente; os relatórios existentes não dizem isso. É a opinião (insisto: opinião) do MP, que interpreta a lei e introduz ademanes de linguagem para percebermos qual a sua posição. Evidentemente que há aqui um problema de sensatez, como escrevi ontem – e essa falta de sensatez reduz tudo a trincheiras. Primeiro, os pais criaram um reduto final do qual não sairão com felicidade; depois, noto o feitio português na reação à proposta do MP: alegria pela imposição, pela coerção e pelo castigo iminente. A falta de apego à liberdade – e às suas consequências – é uma das memórias mais confrangedoras da tradição portuguesa e na sua adoração infinita pelo poder do Estado, a quem se atribuem poderes divinos. É a vida.
Da coluna diária do CM.
Sim, Gerrit Komrij é pouco conhecido – e hoje ainda mais, porque passam 10 anos sobre a sua morte – mas não faz mal se falarmos de um dos grandes autores europeus, um dos grandes holandeses (foi poeta laureado entre 2000 e 2004). As suas cinzas repousam em Portugal, Vila Pouca da Beira, Oliveira do Hospital, onde viveu os últimos anos, até 2012; mas a sua paixão portuguesa é anterior, vem de 1984, quando veio de Amesterdão para se fixar em Trás-os-Montes, a que dedicou um romance malvado, Atrás dos Montes (1990). Gerrit Komrij (1944-2012), poeta, ficcionista, ensaísta, jornalista, era holandês puro, com defeitos e virtudes que nunca largou, mesmo tendo vivido tanto tempo em Portugal (cujos defeitos, já agora, notou bem no divertido e curto Um Almoço de Negócios em Sintra, ). Recordo-o sobretudo à mesa e através dos seus poemas, que são de uma limpidez amarga, cínica, furiosa e melancólica (a alma da boa poesia), traduzidos para a nossa língua por Fernando Venâncio: “Versos magoam, a folha angustia./ Dão guinadas no corpo, infernais./ É o teu mal: leste poemas a mais.» Grande.
Da coluna diária do CM.
A violência, e sobretudo aquela que é exercida sobre os mais frágeis e desprotegidos, como as crianças e os velhos – horroriza-nos. O caso de Jéssica choca-nos e, por isso, admito que uma das reações mais naturais é a de não mostrar ou não querer ver as imagens que, durante vários dias, chegaram de Setúbal: o aparato policial, os retratos de Jéssica, a vizinhança, aquilo que o Presidente da República designou por “miséria moral”, e que não chega, ou chega raramente, às primeiras páginas dos chamados “jornais de referência”, ocupados muitas vezes com a miséria luminosa da política, da finança ou das “pessoas famosas”. É um retrato pouco atraente, que contradiz o nosso melhor espírito, cheio de fé e simpatia. Não gostamos de mostrar o mau lado nos retratos; corrigimo-lo – ou eliminamos as fotografias que não ficam bem no Instagram. Por detrás do país amável e solidário, cordial e tolerante, a natureza humana mostra-se por vezes no seu lado mais brutal. Ele sempre esteve lá, à espera – para desferir um golpe sem misericórdia. Como um arquivo da nossa história que não se pode censurar.
Da coluna diária do CM.
A cimeira dos oceanos de Lisboa não pode compreender-se sem o contexto mais vasto da crise ecológica – mais vasta do que a “emergência climática”, e que inclui alterações na saúde dos humanos e na biodiversidade da natureza, com grandes exigências na economia e nos nossos hábitos quotidianos. Porém, durante uns tempos vai ser tudo “azul”, “blue” e “oceânico” – todos marcharão em defesa dos oceanos, enviarão a mensagem de que é necessário salvá-los e os líderes políticos expiarão a sua culpa. “Eu não quero a vossa esperança. Não quero o vosso otimismo. Eu quero que entrem em pânico, que sintam o medo que me acompanha todos os dias”, dizia Greta Thunberg, convidada para falar em Davos em 2019. Precisamente, o que interessa a quem anuncia o fim do mundo, bem como aos adolescentes cheios de ansiedade e boas intenções, é ampliar a culpa – o que vai bem a Guterres como bom católico. Mas a alteração a pedir é a da nossa forma de sermos humanos, não a da nossa linguagem. Sermos mais sensatos, menos consumistas, menos radicais, mais conservadores, mais contemplativos. E menos folclóricos.
Da coluna diária do CM.
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