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Há uma semana eu não sabia quem era Anitta. Na verdade continuo sem saber, salvo que se apresentou no Rock in Rio e que uma boa parte das “redes sociais” ficou escandalizada porque ela abanou o rabo e valorizou aquilo que tem para mostrar – refiro-me ao corpo, não à música. João Bonifácio escreveu sobre o assunto no Observador e tocou no aspeto que me traz aqui hoje. Primeiro, continuo sem ter ouvido um único acorde de Anitta; segundo, muita gente se escandalizou com o meneio & saracoteio de Anitta, mas nunca se escandalizou com os meneios & saracoteios de Elvis, Prince, Mick Jagger ou, vá lá, Ney Matogrosso. Nas “redes” houve quem se sentisse enojado. Ah, maravilhosa hipocrisia. O mundo da pop é assim; o da música é outra coisa. Está bem que Mick Jagger ou Elvis também cantavam, tal como Beyoncé ou, digamos, Madonna. Mas o facto de Anitta ser mulher e brasileira também contou para a avaliação moral de sacristia. Eu, que me indigno até quando os músicos tocam Bach ou Shostakovich de camisolinha ou blazer cinzento, ri com gosto quando as tias e tios se escandalizaram com a Anitta.
Da coluna diária do CM.
O meu sonho é ser marcelólogo – estudioso de Marcelo e dos seus humores discursivos. Depois de várias intervenções discutíveis, o Presidente da República regressou ontem com uma mensagem muito positiva e atrevida: “Só haverá verdadeiramente igualdade entre homens e mulheres quando chegar aos mais altos postos uma mulher tão incompetente como chega em vários casos, em inúmeros casos, aos mais altos postos, um homem.” O PR, com ar sorridente, referia-se às Forças Armadas (sobre ser difícil uma mulher chegar a oficial superior unidades de elite), mas a ideia pode ser levada, com vantagem, para áreas muito distintas. Todas, a bem dizer. Não sei se as chefias militares, mesmo sem identificar os casos de incompetência, poderão fazer o exercício perverso de aplicar idêntica regra à Presidência. Mas essa é a vantagem de Marcelo como Presidente, lidando com as palavras, ele sabe exatamente o que quer dizer quando não disse o que efetivamente disse; disse uma graça feminista (com toda a justiça) e, de passagem, deu uma palmatoada na, como é que se diz?, “instituição militar”. Aprendam.
Da coluna diária do CM.
Nascido há exatamente 310 anos, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos mais influentes filósofos europeus – para o bem e para o mal. Primeiro, a sua “doutrina do contrato social”, da soberania da vontade popular, modelo das democracias tal como as conhecemos hoje, mas também de algumas tiranias que interpretam a “vontade geral” com rédea solta. Para Rousseau, os seres humanos são naturalmente bondosos e o germe corruptor é “a sociedade” – a proximidade ao estado natural, o do “bom selvagem”, estaria na base desta ideia de um mundo feliz, harmonioso e utopicamente devolvido ao estado natural. As implicações desta doutrina são rocambolescas, sobretudo pelas suas consequências no discurso das pedagogias modernas, a que dedica Emílio, ou Da Educação. As suas Confissões são um modelo de literatura autobiográfica, destinadas a esclarecer a sua má fama e a desmentir questões de carácter. São um colosso, para quem gosta do género lacrimal – mas são os melancólicos Devaneios do Caminhante Solitário, escritos à beira da morte, que melhor condensam a desilusão de Rousseau.
Da coluna diária do CM.
Uma das vantagens de ter estado encerrado a trabalhar e isolado do mundo das notícias é que fui poupado de imediato ao horror de Setúbal (que não deixa de ser horror ao enfrentar a realidade) – e à sessão inaugural da “silly season”, a “estação tonta”, que este ano ocorreu quando a Sra. Diretora-Geral da Saúde nos recomendou que não caíssemos de cama em agosto, porque há menos médicos e abunda o bacalhau à Brás, que eu ignorava ser um dos principais pratos das merendas estivais. A cena foi penosa e os leitores, atualizados ao minuto, já a conhecem, bem como à frase do Presidente da República, que insistiu em não adoecermos porque isso nos faz mal e põe em cuidado “a saúde dos outros”. Calha bem: já tinha pensado em adoecer em agosto mas vou reservar-me para outubro. Compreendo, agradecido, a preocupação dos líderes que cuidam de nós para não recorrermos ao SNS. Durante a pandemia, estas boas almas providenciaram aconselhamento diário – e creio que se habituaram. Daí até considerarem que os portugueses (nós, pecadores) precisam de ser tratados com condescendência e meninez, é um passo.
Da coluna diária do CM.
O ano de 1842, há 160 anos, foi o da morte de Stendhal, o da anexação de Hong Kong pelo Reino Unido, o do nascimento de Mallarmé – e de Ambrose Bierce, a 24 de junho, no distante Ohio. Bierce é o autor do Dicionário do Diabo, obra-prima do cinismo contemporâneo, publicado em 1906, sete anos antes de, isolado, solitário, divorciado e deprimido, ter desaparecido para sempre no México, onde acompanhava as tropas de Pancho Villa na guerra civil. Calcula-se, portanto, que tenha morrido nesse ano de 1913. Para trás deixava uma obra de jornalista combativo, corajoso e indecente – além de muita ficção, poesia, sátira, correspondência. Um autor, portanto. Mas é o Dicionário do Diabo (há duas edições entre nós, a da Tinta da China e a da Sistema Solar) que fica na memória de um leitor não americano, um prodígio de ironia, maldade e humor negro, no qual a sua desfaçatez desmonta o significado das palavras que servem os desígnios do patriotismo como da demagogia e das vigarices e hipocrisias legalizadas. Foi um pioneiro corajoso. O Dicionário é, ainda hoje, um guia indisciplinador.
Da coluna diária do CM.
A meio de uma frase amena sobre se é ou não necessário um Orçamento de Estado retificativo para 2022, o primeiro-ministro tergiversou e mencionou o tradicional pessimismo português. Esta ideia de sermos um grupo de generosos pessimistas merece discussão. O espanhol Miguel de Unamuno mencionou – com aquele ar trágico de quem nasceu em Bilbau, estudou a língua basca em Madrid e ensinou grego em Salamanca – o facto de sermos “um país de suicidas” (ele falava sobretudo de Manuel Laranjeira), mas não de pessimistas. Pelo contrário, o otimismo está nos genes portugueses. O “velho do Restelo” ficou em Belém, Vasco da Gama partiu. Os portugueses julgam-se destinados a ganhar o campeonato do mundo de futebol e, inspirados pelo Presidente da República, acreditam que são os melhores do mundo em qualquer coisa. Mesmo no fado, não há pessimismo: tudo corre de acordo com o destino, não vale a pena ser valoroso, combativo ou malandro. Elegemos Sócrates por duas vezes. Consideramos a Dra. Marta Temido a melhor ministra. É isto pessimismo? Não. Este otimismo há de acabar por dar cabo de nós.
Da coluna diária do CM.
A fotografia que mostra o beijo de Marcelo Rebelo de Sousa na barriga de Marina Dias tornou-se um emblema da sua Presidência amável, popular, populista e apelando aos “sentimentos das pessoas”. As pessoas somos nós. A fotografia tem virtudes inegáveis: durante a crise das urgências de obstetrícia, o PR beija a barriga de uma mulher grávida, dando visibilidade quer à comunidade africana, o que é muito importante, quer à natalidade, quer à crise hospitalar, que é também a crise profunda do SNS (antes, o PR tinha beijado as vítimas e sobreviventes da catástrofe de Pedrógão Grande, o que foi consolador e fotogénico, mas não poupou ninguém à incúria). Agora que se livrou do seu eleitorado e não tem mais nenhum mandato pela frente, o sentimentalismo presidencial é muito útil para consolidar a imagem de Marcelo como figura apaziguadora, próxima e paternal Essa é uma parte do seu papel. Mas o sentimentalismo tem abismos negros e um deles é a irrelevância política, de que governantes menos sentimentais tiram vantagem sem graça nem pudor. Um beijinho nessa altura já não vale de grande coisa.
Da coluna diária do CM.
Em França, 60% da população urbana sentiu-se “surpreendida” com o silêncio durante os confinamentos da pandemia, mas grande parte já não sabia viver com ele. O silêncio é um luxo destes tempos. Li, com atraso, o belo livro de Jean-Michel Delacomptée, Pequeno Elogio dos Amantes do Silêncio (de 2011), onde o ensaísta prevê que o silêncio esteja “em vias de extinção”. Uma abundância generosa e brutal de telemóveis (e de conversas que somos obrigados a ouvir), altifalantes, ruído de camiões e de obras, falta de graciosidade e cuidado nos transportes, aparelhos de televisão sempre ligados, auriculares perpetuamente conectados – tal é o nosso estado de saturação auditiva. Não se compreende que grande parte das praias semi-urbanas, por exemplo, seja inundada por colunas de som agressivas que vomitam “música” quando só queremos ouvir o mar ou o pregão de batatas fritas e bolas de Berlim – e que haja câmaras municipais a autorizar ou patrocinar esse ruído criminoso, como se o verão autorizasse os grunhos a estragar-nos o repouso. O silêncio é um luxo; democratizá-lo é uma obrigação pública.
Da coluna diária do CM.
A 17 de junho de 1922 – passam hoje cem anos – o hidroavião Santa Cruz amarou na baía da Guanabara, Rio de Janeiro. O aparelho tinha substituído o Lusitânia, com que Gago Coutinho e Sacadura Cabral tinham partido de Lisboa a 30 de março desse ano, fazendo escalas em Las Palmas e depois na Praia, Cabo Verde, antes de chegarem a 18 de de abril a território brasileiro. Há qualquer coisa de épico e luminoso na primeira travessia aérea do Atlântico Sul, e decerto que a menos importante não é ter sido feita por dois navegadores portugueses que desafiaram o perigo e correram os riscos. A história da aviação portuguesa teve heróis imprevistos e desafiantes; Gago Coutinho e Sacadura Cabral (que morreu no mar, em acidente) foram os mais conhecidos, mas há ainda Carlos Bleck, que em 1934 fez a viagem de Lisboa a Goa (José Correia Guedes tem um belo livro sobre ele). Há um tempo em que os heróis, marcados por um certo halo de barroco e loucura, desafiam as condições da sua época e não se limitam a arriscar a pele; tornam possível o que não tinha existido. É essa a sua natureza da sua vida.
Da coluna diária do CM.
A propósito da guerra da Ucrânia, o papa Francisco recusa-se “à complexidade tortuosa da distinção entre bom e mau”. A frase tem sentido no conjunto das operações militares – em guerra, não há bons e maus; há apenas crueldade e destruição, trincheiras e devastação, cidades destruídas e contabilidade de vítimas. Outra coisa é considerar que a guerra e a invasão de países soberanos são direitos que assistem a países com exércitos poderosos que reclamam o território ou a eliminação de povos vizinhos. Se é assim, pode dizer-se que, depois de destruir quanto pôde e de espalhar valas comuns e cidades arrasadas à vista do Ocidente, a Rússia ganhou a guerra. É talvez por isso que uma cada vez maior percentagem de europeus “prefere” que a Ucrânia ceda território a fim de obter uma paz rápida para todos – restando-nos ficar, envergonhados e prósperos, um pouco mais adiante, “à espera dos bárbaros”. No seu célebre poema com este título, o grego Konstantinos Kaváfis lembra este incómodo europeu: “Que leis haveriam de fazer agora os senadores?/ Os bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.”
Da coluna diária do CM.
Foram precisos apenas dois dias para que a menção ao “povo” e à “arraia-miúda” no discurso de 10 de Junho se transformasse em desprezo por essas duas entidades. Exemplo? A forma como, de forma infeliz, o Presidente desvalorizou a crise dos hospitais. É um hábito deplorável das classes altas, imunes à vida dos outros, e das castas dirigentes, metidas com os seus interesses: manifestar um amor acrisolado e puríssimo pelo povo, mas exprimir a sua compreensão pelo desprezo com que a arraia-miúda (uma gente incómoda e manipulável que precisa de hospitais, justiça, segurança e educação) é tratada. Que a ministra da Saúde o faça, com o seu discurso redondo e burocrático, indiferente, soletrado, cheio de tiques de propaganda – não espanta. Mas que o Presidente, uma instituição eleita pela arraia-miúda, dê essa ideia – deveria preocupar-nos. Portugal continua a reger-se pelo princípio de “um país, dois sistemas”, que tem coroado a nossa cultura há séculos. É pena verificar que as castas se protegem sem pudor nem constrangimento, desde que se propaguem e beneficiem com certa amenidade.
Da coluna diária do CM.
Pedir aos portugueses que vivem no estrangeiro que regressem à pátria parece uma ideia generosa; mas não é. Ela foi repetida no passado 10 de Junho, quer pelo Presidente da República, quer pelo ministro dos Negócios Estrangeiros – mas não quer dizer nada e terá o insucesso esperado. Os salários continuam a ser baixos; as carreiras continuam limitadas, e sem “progressão”; o Estado continua a ser o grande patrão, com o seu provincianismo de capataz. No fundo, trata-se de uma sugestão para que a “arraia miúda” (de que o PR se encarregou de fazer o duvidoso elogio no discurso de Braga) continue a ser a “arraia miúda” e “o povo”, bom para citar como motor da História, continue a ser “o pobre povo”. Técnicos superiores, economistas, enfermeiros, médicos, cientistas, professores, cozinheiros – dificilmente regressarão (não menciono os futebolistas, naturalmente). O fim das fronteiras europeias tem essa virtude, a de permitir a circulação de pessoas que procuram, em liberdade, o que é melhor para elas. É esta a natureza das coisas, contra a qual o patriotismo de pacotilha nada pode.
Da coluna diária do CM.
Falemos do silêncio dos católicos. Foi preciso pesquisar em várias páginas do Google para encontrar referências portuguesas aos ataques que, desde há algumas semanas, aterrorizam os cristãos da Nigéria. A 10 de maio, militantes do Estado Islâmico executaram 20 católicos; duas semanas depois, no sul do país, 31 católicos foram mortos numa igreja; no passado dia 5, 50 católicos de Owo foram mortos durante um ataque durante a missa de domingo. As televisões portuguesas pouco ou nenhum destaque deram aos massacres, apesar de as imagens mostrarem a natureza e a intensidade da violência. Também passou em silêncio, o linchamento da estudante universitária Deborah Samuel Yakubu, a 12 de maio, particularmente chocante: por se tratar de uma jovem estudante, e porque os seus assassinos (colegas da universidade), não satisfeitos por a terem apedrejado e agredido até à morte, a queimaram depois de a terem prendido com pneus. Como sabemos, há mortos de primeira e de segunda categoria, consoante a origem geográfica, a cor da pele e a necessidade de evitar críticas aos executantes dos crimes.
Da coluna diária do CM.
Gostamos dele, sim, sofremos por ele. É o único que temos, o país – e, no entanto, é como se sentíssemos que parte dele nos foi retirado. A transformação do 10 de Junho numa espécie de continuação de debate e do jogo político que aguarda um discurso, meia dúzia de reações, uma corrida ao comentário, deixa-nos desprotegidos, porque já ninguém acredita na dimensão simbólica da nossa pertença ou da comunidade que fomos. Portugal é hoje, felizmente para todos, um mosaico maravilhoso de europeus, africanos, americanos e asiáticos – trata-se de uma enormíssima vantagem que nos permite ler Camões (porque é o Dia de Camões e de Os Lusíadas) de outra forma, substituindo a afirmação exclusiva de uma identidade pelo alargamento plural dessa identidade. Devemos convocar todos para a nossa casa comum; não como resposta a exigências agressivas mas como proposta para impedir a exclusão ou a indiferença. Não tenho ouvido falar disto e é pena. Temo bastante que não se regresse a esse 10 de Junho simbólico e se lhe dê uma lufada de atrevimento e coisas destemidas. Que emprestem significado à vida real.
Da coluna diária do CM.
Ninguém tem de concordar com as suas opiniões ou leituras do mundo para chegarmos ao essencial: Paula Rego é sem dúvida uma das pintoras mais geniais do nosso tempo e não devia ser permitido morrer sem ver alguns dos quadros representativos da sua obra – onde é provável que entremos todos (ou não) pela porta entreaberta, associando-nos aos fantasmas e aos abismos dessas telas, assustando-nos ou comovendo-nos, nunca tomando nada por certo. Boa parte da sua pintura denuncia o preconceito, a condição da mulher, as formas de dominação sexual e social na vida portuguesa; fá-lo inventando um mundo próprio ou fantasiando a sua inversão. E é genial, no verdadeiro sentido da palavra, como o foram Vermeer, Bosch ou Gentileschi. Seria fácil elaborar uma lista das suas vinte melhores obras porque há um contínuo de estranhamento, contorção e prevaricação nesse trabalho que é um derradeiro esforço para manter a dimensão figurativa na pintura, ao lado de nomes como Lucian Freud ou Francis Bacon, mas centrando-a no lugar do feminino. Paula Rego faz parte desse pódio, levando consigo peças como ‘A Dança’ e ‘A Família’, em primeiro lugar, ‘O Anjo’, ‘Olhando para trás’, ‘Mãe’, ‘A prova’, ‘Agonia no Horto’, ‘O cadete e a irmã’, as Brancas de Neve, bem como as séries Mulher-Cão ou Avestruzes, por exemplo – escolhas ditadas pela traição da memória. A cada dia descobriremos que Paula Rego, afinal, não morreu.
Da coluna diária do CM.
As forças nazis invadiram a Checoslováquia em março de 1939 com a benção da Inglaterra, França e Itália (Tratado de Munique) que tinham decidido sacrificar o país em nome da paz europeia. Hitler não obedeceu ao tratado – foi, naturalmente, mais além. Uns meses depois, a Alemanha nazi e a URSS comunista assinam um pacto que conduziu, em setembro desse ano, à invasão da Polónia e à sua divisão entre os dois países agressores; ficaria igualmente selado o destino da Estónia, da Lituânia, da Finlândia, da Letónia e da Roménia. Deram-se sempre bem e hoje voltariam ao mesmo; Putin é o novo nome do agressor. É por isso grave e trágico ver como pela Europa fora (e em Portugal, como é óbvio, vozes ligadas ao PCP bem como “aos negócios”) há cada vez mais opiniões favoráveis a esse sacrifício da Ucrânia. O PCP alerta para o facto de a guerra (ou seja, a resistência da Ucrânia) estar a prejudicar os preços e a agravar a inflação; os homens de negócios também. Que a sinistra aliança Hitler-Estaline (ou Molotov-Ribbentrop) se repita não é estranho. É trágico e vergonhoso que se imagine essa solução.
Da coluna diária do CM.
Ao fim de seis anos (seis longos anos), o tribunal de Guimarães deu início ao julgamento para apurar a verdade e punir os autores dos maus tratos infligidos a jovens raparigas oriundas de meios humildes, pobres e desprotegidos que viveram sob a alçada da Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, em Requião, Famalicão. O julgamento começou em abril do ano passado – a sentença vai ser lida mais de um ano depois, a 23 deste mês, e pelo meio concluímos que o então arcebispo de Braga soube das acusações, que lhe foram comunicadas numa carta das vítimas (que sofreram em condições sub-humanas, perversas, sádicas e inferiores à condição de escravatura, com noviças torturadas a chicote e obrigadas a toda a sorte de castigos e humilhações indescritíveis), mas esperou pacientemente que o caso viesse a lume. Já era tarde. A Fraternidade estava ligada a uma seita milenarista que lutava contra Satanás espalhando cruzes pelo país fora, mas o padre e as três freiras atuaram até a PJ ter desmantelado a casa de horrores. Satanás, como se sabe, espreita por onde quer. Pena que seja na igreja.
Da coluna diária do CM.
Estava escrito que isto ia acontecer. No caso de Macron, o presidente de plástico, acontece pelos conhecidos enigmas eleitorais (há votos este mês, a 12 e 19) a fim de não hostilizar a extrema esquerda de Mélenchon, suponho. Diz Macron que é preciso “não humilhar Putin” a fim de conseguir sair da guerra “por meios diplomáticos”. A cerviz de Macron está à beira da dos seus compatriotas que governaram a partir de Vichy: Putin humilha a Europa, ataca a Ucrânia, mente ao próprio Macron (humilhando-o, porque foi à vista de todos), semeia a morte e destrói hospitais, escolas e casas (humilhando o que lhe resta de género humano), promete retaliações contra a soberania europeia – e Macron, moldando-se à forma da plasticina, apela a que não se humilhe Putin e se recorde a experiência francesa nessa área (de Bonaparte a Versalhes e Vichy, de novo). Pelo contrário, o mundo não voltará a ser nada de importante sem Putin sair humilhado – e indecorosamente humilhado. Para que se salvem a Rússia e o seu povo, e os bandidos e tiranos não possam invadir o que lhes apetece, nem humilhar o pequeno Macron.
Da coluna diária do CM.
O regime sandinista de Daniel Ortega, muito esquerdista revolucionário e agora convertido a católico e nacionalista à antiga, mandou na semana passada encerrar a Academia da Língua da Nicarágua sob a acusação de, no fundo, se tratar de uma organização anti-revolucionária – e que deve registar-se como organização estrangeira. Não sei se o leitor conhece Ruben Darío ou Ernesto Cardenal, mas são grandes escritores nicaraguenses cuja obra é albergada pela academia. No funeral de Cardenal (em 2020), os sandinistas, como maluquinhos, irromperam pela catedral de Manágua, interromperam a cerimónia e obrigaram a família a retirar o corpo por uma porta lateral. Quanto a Sergio Ramírez, prémio Cervantes e belo escritor (está publicado em Portugal, vive exilado em França), Ortega passou-lhe um mandato de detenção em setembro passado, por vingança e perseguição política. Mais do que uma tentativa de asfixiar o país, Daniel Ortega é um ditador apostado em transformar a Nicarágua numa república das bananas, provando que os “grandes revolucionários” mais cedo ou mais tarde deixam cair a máscara.
Da coluna diária do CM.
Outro dia enganei-me. Cometi a distração no prefácio a um divertido livro de Ramalho Ortigão: escrevi “Vila do Conde” e, depois, pumba, “onde nascera Eça”. Acontece que Eça nasceu ao lado, na Póvoa de Varzim, e dias depois batizado em Vila do Conde. Devo ter escrito a expressão “Eça nasceu” numa dezena de textos e, depois, “Póvoa de Varzim” – exceto desta vez. Amigos da Póvoa brincaram (prometeram cortar-me as provisões de arroz de linguado na petisqueira A Barca) e eu também – fui condenado a afixar uma lápide junto da simpática igreja matriz de Vila do Conde: “Aqui foi batizado Eça de Queirós.” O que me leva a perguntar: se um escritor nasceu em determinado lugar, esse lugar fica melhor? Não necessariamente, se bem que os lugares, mais tarde ou mais cedo, fiquem colados à pele. Joyce detestava Dublin, que detestava Joyce, mas quando passeio por Dublin lembro-me de Joyce. Camilo, que nasceu em Lisboa, é considerado “um escritor do Porto”, cidade que destratou com aplicação e paixão. Claro que era pior se tivesse escrito “Póvoa do Varzim”, mas eu tenho cuidado com a língua.
Da coluna diária do CM.
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