Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
As palavras de Volodymyr Zelensky ecoam como uma espécie de poeira. Esta semana não convinha falarmos de poeira – depois da nuvem alaranjada que chegou de Marrocos. No entanto, foi como uma bênção no final deste inverno sem fim e sem chuva: como se uma onda de cor baça tivesse poisado sobre todas as coisas. Uma melancolia. Não sei como é com os meus leitores – mas comigo é simples: entrei em negação e a partir de certa altura recuso-me a ver televisão como se uma explosão fosse igual a outra, como se um rosto fosse parecido com outro, como se um prédio de Kiev fosse semelhante ao de uma cidade onde estive há muito tempo. Por isso, a nuvem alaranjada foi como uma bênção que pairou sobre as nossas cabeças para lembrar a cólera do silêncio depois das explosões – ou a despedida amarga de cada vez que desligamos a televisão para não ver o que acontece depois de a neve ter ficado suja.
“Lembrar” é uma palavra difícil e, no entanto, foi sobre a recordação que Zelensky falou aos americanos pela net: “Lembrem-se de Pearl Harbour”, disse, “lembrem-se do 11 de Setembro.” Como se dissesse: lembrem-se da nuvem alaranjada. Lembrem-se de uma esplanada onde se bebe um café de manhã. Lembrem-se de um piano a tocar numa rua deserta (é uma das grandes imagens da semana: um habitante de Kiev a tocar piano no meio da rua). Lembrem-se da escadaria de Odessa no filme de Eisenstein. Lembrem-se das florestas e das escolas, de ‘vareniki’ (bolinhos de massa recheados) ou de ‘deruny’ (bolinhos de batata) ucranianos. Lembrem-se do escritor Mikhail Bulgakóv, que nasceu em Kiev. Lembrem-se dos contos de Nikolai Gogol, que nasceu na Ucrânia. Lembrem-se de um beijo roubado e de um comboio que atravessa os campos. Lembrem-se das margens do Dniepr. Lembrem-se da nuvem alaranjada e de como março nunca mais acaba. Lembrem-se do que nunca mais esqueceremos.
Da coluna semanal do CM.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.