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Franz Joseph Haydn (1732-1809) nasceu há 290 anos, cumpridos exatamente hoje, quando chove e não chove, quando há um sol tímido a cobrir as mesmas florestas de carvalhos, pinheiros, abetos, faias, urzes, escarpas montanhosas e florestas à beira dos campos da chamada Baixa Áustria. Há uma certa doçura na sua música – sinfonias que nos fazem estar de acordo com a passagem do tempo, discretas e sem grande enigmas, quartetos de cordas que serviram de padrão para a música posterior. Contemporâneo de Mozart, professor de Beethoven, ponte entre o período “clássico” e o romantismo (ou entre o século XVIII e o século XIX), Haydn é esse padrão da música europeia. O terceiro e último andamento do Concerto n.º2 para violoncelo é uma das peças mais populares da sua obra; convido-vos a escutar o concerto na totalidade, mas terminem, por favor, a ouvir todo o Concerto n.º1, menos festivo, com menos flores, menos feliz – mas mais belo. Diz-se que, antes de tomar Viena pela força, em 1809, Napoleão mandou estacionar uma divisão à porta da casa de Haydn para o proteger das bombas; Deus teve isso em conta.
Da coluna diária do CM.
No Diário do Escritor (agora traduzido por Nina e Filipe Guerra, Relógio d’Água), escrevia Fiódor Dostoiévski: “Mais um confronto com a Europa está de novo em cima da mesa”, e “mais uma vez os europeus olham para a Rússia com desconfiança. Aliás, porque haveríamos de procurar a confiança da Europa? Será que alguma vez a Europa olhou os russos com confiança?” Estávamos em 1876, e o autor de Crime e Castigo comentava a guerra nos Balcãs contra a Turquia num fragmento em que se queixa de os russos serem vistos “como uns bárbaros que vagueiam pela Europa, muito contentes com a possibilidade de destruirmos alguma coisa em qualquer lado”. Dostoiévski é um dos sismógrafos para ler “a alma russa” (o outro seria Tolstoi, mas a sala está cheia de vozes). Enquanto neste momento se joga o destino da Rússia depois de os seus bárbaros terem andado à solta na Ucrânia, convinha que se olhasse para o futuro após Putin, que não sobreviverá muito tempo. As enormes perdas que se aproximam com o balanço dos horrores e da destruição causada são uma vingança a exigir reparação – se a Rússia sobreviver.
Da coluna diária do CM.
Já há alguns anos que não vejo a coisa – nem a noite dos prémios nem o resumo da noite seguinte, mas houve um tempo em que a cerimónia dos Óscares era um palco de elegância, riso, vaidade, celebração e mexericos (tudo natural e humaníssimo) para artistas que tinham merecido chegar lá e se tinham distinguido pelo caminho. Lembro-me de várias dessas noites mas não me recordo de nenhuma cena de bofetada transmitida pela televisão; toda a gente sabe que aconteceram, mas não no palco. Também é verdade que a linguagem e as piadas mudaram bastante, que toda a gente discute sobre se as gracinhas podem versar questões de raça e género, que os únicos momentos agradáveis são os pequenos ‘trailers’ dos filmes, e que os rabos de palha políticos ameaçam transformar aquilo numa modorra insuportável e pouco esclarecida, com atrizes chatas e atores analfabetos a perorar sobre o fim do mundo. Há pouco escrevi a palavra “elegância” porque só um palerma brinca com as doenças dos outros – e isso não tem discussão possível. Merece uma bofetada? Não. Mas merece que pensemos quão tolo se pode se ser.
Da coluna diária do CM.
que restar da Ucrânia, depois da agressão russa, será reerguido; o que restar da influência russa será castigado durante muito tempo, até à queda definitiva de Putin. Se acontecer qualquer coisa muito diferente, isso significará que o crime compensa e que as monstruosidades cometidas pela campanha russa (negadas, sob todas as evidências, por um grupo de parlapatões que continua a alimentar alguns canais de televisão) são um instrumento admissível no diálogo entre as nações. As ruínas da Ucrânia são o produto dos mitos soviéticos acerca da II Guerra e da sua invencibilidade militar, além dos mitos históricos russos – para não falar da vaidade e da insanidade de Putin, que parece acreditar nos seus delírios, tanto como os seus pobres epígonos portugueses, que se mascaram de “neutros”. O que é extraordinário não é que isto aconteça (é da tradição nefelibata dos herdeiros de Estaline): é que o vetusto e pró-soviético Conselho Português para a Paz e Cooperação tenha ressuscitado com uma campanha para “parar a guerra, dar uma oportunidade à paz” sem condenar claramente a agressão russa.
Da coluna diária do CM.
Despedimo-nos de Antonio Tabucchi (1943-2012) há dez anos. Apaixonado por Fernando Pessoa, que estudou longamente e a quem dedicou inteligência e uma intuição elegante, seduzido por Lisboa, onde acabou por morrer, este italiano de Pisa, que ensinou em Siena, Bolonha e Génova, é um dos grandes autores do tempo de que nos despedimos. Noturno Indiano (1984) é uma preciosidade que não merece ser esquecida, juntamente com outras pequenas novelas, narrativas curtas, pequenas histórias – como Mulher de Porto Pim (1983), O Fio do Horizonte (1986) ou Pequenos Equívocos sem Importância (1985). E há a graça de Os Voláteis do Beato Angélico (1987), e os seus memoráveis estudos sobre Pessoa (Pessoana Mínima e A Nostalgia, o Automóvel, o Infinito), além de A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro (1997) ou Afirma Pereira (1994), levado ao cinema com Marcello Mastroianni e Joaquim de Almeida. Fernando Lopes levou ao cinema O Fio do Horizonte (1993), Alain Corneau tratou de Noturno Indiano e Alain Tanner filmou o seu pessoano Requiem. Ainda não nos despedimos.
Da coluna diária do CM.
Como de costume, estou de acordo com duas coisas. Uma: que o pior está ainda para acontecer. Duas: sim, o mal anda à solta com a ajuda do nosso conforto. Como se sabe, o pior ainda pode estar para acontecer porque o halo de loucura que tomou conta do Kremlin é bem capaz de ser insaciável e, em geral, as coisas más acontecem mesmo – na maior parte das vezes com a nossa permissão. Nesta fase da destruição russa da Ucrânia não vale a pena chorar acerca da irrelevância europeia e da forma como a UE está prisioneira da teia energética russa; é uma parte do preço que pagamos atualmente pelo nosso conforto e pela bondade das nossas ações. Os próximos tempos serão de incerteza. Se durante a pandemia (que oscila, que vai e vem) houve limitações de acesso à cultura e a área do espectáculo foi claramente prejudicada, as ondas da guerra impedem agora que “pensemos noutra coisa”. Talvez a música nos acompanhe, talvez os livros nos salvem, talvez uma ida ao museu nos reconcilie com o mundo como ele devia ser, talvez um filme nos ajude. Suspeito que começou um longo período de recolhimento.
Da coluna diária do CM.
O que se passou em Portugal entre 1940 e meados dos anos 70? Como se pensava o futuro e o presente durante essas décadas entre duas guerras – uma, a mundial, outra, a colonial? Podemos sabê-lo através das canções que se ouviam na época e é isso que Luís Trindade tenta mostrar num livro saboroso, quase um documentário: Silêncio Aflito. A Sociedade Portuguesa Através da Música Popular (Tinta-da-China). Está lá o Portugalinho e o país maneirinho da “música ligeira”, os produtores e os locutores de rádio (e os seus programas), as estrelas do palco, os compositores da “canção nacional”, as vozes do fado e os nossos crooners de época, deliciosos, românticos, de papelão – mas também os sons inaugurais do rock e do ié-ié, a ascensão de Amália ou a entrada da televisão. Entre A Menina da Rádio e Simone a cantar a “Desfolhada” ou as canções que passaram pelo Zip-Zip, Portugal desfila aqui como uma pequena província de outro tempo. Estas canções são as lágrimas de amor e as tímidas ousadias desse tempo. Passavam na rádio. Ainda hoje as ouvimos com saudade de um tempo que não queremos viver.
Da coluna diária do CM.
Publicados para além da idade madura, Fogo (2013) e Existência (2019) são – se acreditarmos que cada poema é uma interpretação – dois dos livros que mais prolongarão a vida de Gastão Cruz (1941-2022). Por um lado, são uma espécie de leitura da sua própria obra, o anúncio de uma despedida, a confirmação esplêndida de uma voz onde não há uma grande alegria nem, tão pouco, uma grande e brava melancolia. Gastão Cruz era um dos poetas portugueses em que foi mais intensa a preocupação acerca da linguagem (tal como Ramos Rosa, por exemplo) – não porque a linguagem, em si mesma, fosse a matéria da sua longa, vastíssima obra (desde 1961), mas porque nela se pressente essa garantia: a de que não há poema sem a procura da palavra, não há vida sem uma ideia do fim, não há amor sem ocultação, não há inovação sem mestres (o que o levou a regressar às formas clássicas do poema). Essa procura da palavra não se esgotou no verso acabado – mas numa peregrinação pelo teatro, pela crítica e, sobretudo, pela leitura. Terminou a sua vida como um dos nossos grandes poetas clássicos.
Da coluna diária do CM.
Podíamos falar de algumas canções sobre a temporada de primavera que entrou ontem a meio da tarde de domingo (como “Some Other Spring”, de Billie Holiday, “Spring Is Here”, de Nina Simone, ou “Might As Well Be Spring”, de Frank Sinatra), mas se uma pessoa não fica rendida ao segundo andamento (um larghetto melodioso e romântico) da 1.ª Sinfonia de Schumann (1810-1856) não merece ouvir mais música – toda a sinfonia é dedicada à primavera. Se acordes tão expressivos não nos comovem, então há um recurso: o segundo andamento da 6.ª Sinfonia, Pastoral, de Beethoven (1770-1827), antes da pequena e belíssima “Canção de Primavera”, de Mendelssohn (1809-1847), curiosamente dedicada a Clara Schumann (pianista e mulher de Schumann), ou da profundíssima peça com o mesmo nome do finlandês Jean Sibelius (1865-1957). Talvez a mais conhecida seja a primeira das Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss (1864-1949), com o poema sobre a primavera de Hermann Hesse (oiçam a versão de Elisabeth Schwarzkopf). Sim, também há a primavera das Quatro Estações de Vivaldi (1678-1741). Toda a música é infinita.
A findar o dia, com chuva, a morte de Gastão Cruz (1941) – lembro-me de um poema seu: “Não estamos preparados para nada: / certamente que não para viver/ Dentro da vida vamos escolher / o erro certo ou a certeza errada (...) Não estamos preparados para o nada: / certamente que não para morrer.”
Da coluna diária do CM.
As palavras de Volodymyr Zelensky ecoam como uma espécie de poeira. Esta semana não convinha falarmos de poeira – depois da nuvem alaranjada que chegou de Marrocos. No entanto, foi como uma bênção no final deste inverno sem fim e sem chuva: como se uma onda de cor baça tivesse poisado sobre todas as coisas. Uma melancolia. Não sei como é com os meus leitores – mas comigo é simples: entrei em negação e a partir de certa altura recuso-me a ver televisão como se uma explosão fosse igual a outra, como se um rosto fosse parecido com outro, como se um prédio de Kiev fosse semelhante ao de uma cidade onde estive há muito tempo. Por isso, a nuvem alaranjada foi como uma bênção que pairou sobre as nossas cabeças para lembrar a cólera do silêncio depois das explosões – ou a despedida amarga de cada vez que desligamos a televisão para não ver o que acontece depois de a neve ter ficado suja.
“Lembrar” é uma palavra difícil e, no entanto, foi sobre a recordação que Zelensky falou aos americanos pela net: “Lembrem-se de Pearl Harbour”, disse, “lembrem-se do 11 de Setembro.” Como se dissesse: lembrem-se da nuvem alaranjada. Lembrem-se de uma esplanada onde se bebe um café de manhã. Lembrem-se de um piano a tocar numa rua deserta (é uma das grandes imagens da semana: um habitante de Kiev a tocar piano no meio da rua). Lembrem-se da escadaria de Odessa no filme de Eisenstein. Lembrem-se das florestas e das escolas, de ‘vareniki’ (bolinhos de massa recheados) ou de ‘deruny’ (bolinhos de batata) ucranianos. Lembrem-se do escritor Mikhail Bulgakóv, que nasceu em Kiev. Lembrem-se dos contos de Nikolai Gogol, que nasceu na Ucrânia. Lembrem-se de um beijo roubado e de um comboio que atravessa os campos. Lembrem-se das margens do Dniepr. Lembrem-se da nuvem alaranjada e de como março nunca mais acaba. Lembrem-se do que nunca mais esqueceremos.
Da coluna semanal do CM.
É de 1964 um dos mais belos poemas de John Updike (1932-2009, faria hoje 90 anos), “Azores”. Muitos leitores ignoram que o grande ficcionista da América — ao lado de Norman Mailer, Gore Vidal ou Tom Wolfe — tenha sido também um poeta notável. O seu mundo mais conhecido é o dos romances da série Rabbit, “Coelho”, um retrato tão profundo como harmonioso e irónico da sociedade americana e da sua classe média. Por isso, os seus temas circulam à volta da religião, do dinheiro, do adultério e da sexualidade. Aquilo em que a América se transformou está nos seus livros, e nos de Tom Wolfe; mas Updike compreende os movimentos subterrâneos, não teme as ironias (como em As Bruxas de Eastwick, um romance genial) e, ao contrário de Philip Roth, não se transformou em personagem de si mesmo. Corre Coelho, S. ou Casais Trocados são cómicos, porque Updike sabe que Deus fala através dos ironistas e ele foi um homem tocado tanto pela sua luz como pelas suas dúvidas e desilusões. Para compreender porque é a América este lugar de vaidade, ressentimento e atribulação, nada como ler Updike.
Da coluna diária do CM.
Quando queremos falar de alguém que não se limitou a olhar numa só direção – digamos, só o teatro, ou só o cinema, ou só a literatura, mas também se interessou pela beleza em geral, pela navegação, pela astronomia, pela música ou pela agricultura – dizemos que se trata de uma “figura do Renascimento”. Talvez por isso ontem fui folhear um livro que guardei na parte das estantes em que não há tema, género ou catálogo possível: Deixar a Vida, de Jorge Silva Melo (Cotovia, 2002) é o livro de um ator e encenador que sabia que não se podia olhar apenas numa direção e que nunca o fez; senta-se a contemplar-nos e fala sobre os materiais do seu trabalho e as interrogações que a vida deixa; parece a elegância de alguém que conversa, sentado num banco de jardim, ou à mesa de uma esplanada. Século Passado, que publicou depois, tem um registo diferente mas com o mesmo tom: tão bem escrito. Tal como A Mesa Está Posta (de 2019), uma revisitação da memória. Ou, que os clássicos me perdoem, na versão que compôs para o Rei Édipo a partir da reescrita de Sófocles (2010). Fica a sua marca.
Da coluna diária do CM.
De repente, gritos de horror. Na política, na cultura, na moda, na diplomacia em geral e no chamado “desporto” em particular – quem não quer distanciar-se de “oligarcas” russos? Veja-se o caso de Roman Abramovich, ai dele, que a UEFA e a FIFA (além do governo britânico) agora perseguem com denodo e entusiasmo. Onde estava o génio, o investidor e o filantropo da bola, o amante de arte contemporânea (tinha uma galeria londrina e tudo, um paraíso para lavagem de dinheiro), está agora o cruel e hediondo oligarca a quem se confisca o Chelsea, porque a indústria do futebol quer mãos limpas. Tão limpinhas que o dono do igualmente inglês Newcastle é saudita, ou seja, vem daquele país que, no passado fim de semana, decapitou pelo menos 80 hereges, tudo passado pela lâmina da espada. Isto sem falar de quem ficou mesmo sem mãos. O “mundo do futebol” é tão delicodoce com criminosos e gente ligada a ditaduras ou a dinheiros muito duvidosos, que a UEFA e a FIFA, se querem limpar-se, bem podem começar por decapitar-se a si mesmas antes de se fingirem ofendidas com o que têm feito ultimamente.
Da coluna diária do CM.
Tem vindo a escapar aqui e ali a ideia fanfarrona de que um bom analista de geopolítica é quem valoriza os “interesses” em detrimento dos “valores”. A doutrina é óbvia – mas a forma como certo grupo de comentadores sorri a cada vitória ou indignidade das tropas de Putin aproxima-se do grotesco e do abjeto: preferem naturalmente o ditador e culpam a Ucrânia por não se ter rendido como devia perante a bravura máscula do ditador russo. Pode haver nisso uma fixação sexual, claro – mas não são irresponsáveis, porque eles sabem o que fazem. Uma coisa é analisar evidências (que são tristes); outra, diferente, é sofrer de desarranjo pós-estalinista ou pré-fascista e, a pretexto da sua inteligência lorpa, terem altar para desculparem a agressão russa porque a Ucrânia estava a pedi-las e Putin é um génio. Isso terá, naturalmente, repercussão na chamada “política interna”: o PCP, habituado a justificar massacres, não terá desculpa – em definitivo; do Bloco, titubeante, ninguém poderá esquecer as primeiras posições; do Chega, o retrato é claro: putinista e anti-ocidental, é um albergue de tolos.
Da coluna diária do CM.
Uma das razões por que gosto de Os Lusíadas tem a ver com o halo de doidice que percorre o poema épico. O que ali está é um grupo de estouvados que vai pelo mundo fora a desafiar os deuses, os Elementos e a ordem das coisas – o que irrita muito as pessoas que deve irritar. Como poema, é uma construção quase perfeita; como leitura do mundo, é de um atrevimento notável. No sábado passado assinalámos os 450 anos sobre aquele momento em que o impressor António Gonçalves, a 12 de março 1572, em Lisboa, deve ter folheado o primeiro exemplar. Não abriu nenhum telejornal, claro, mas hoje gostava de vos falar de Danny Susanto (professor na Universitas Indonesia, em Jacarta) que falou de Camões e de Os Lusíadas num congresso sobre o tema; tudo online, organizado na Ásia, mas virtualmente em Ternate, no arquipélago das Molucas, lugar essencial dos roteiros camonianos – onde Camões teria começado (ninguém garante) o poema. Foi um belo dia para Danny Susanto: cumpriu um dos objectivos da sua vida – traduzir Os Lusíadas para indonésio. Saiu agora e está disponível. Um abraço para Jacarta.
Da coluna diária do CM.
Ser de esquerda e de direita – como se distinguem as pessoas de cada campo? Provavelmente, pelas suas ideias, pelas suas companhias e comportamento em sociedade – ou (é preciso relativizar as nossas dioptrias) pela forma como nos posicionamos uns diante dos outros. Para investigadores ouvidos há tempos pelo diário inglês ‘The Guardian’, há outros factores: as pessoas que têm maior tendência a detestar o cheiro de urina, suor e outros odores corporais são mais propensas a frequentar a ala direita. O título do artigo era muito simples: “Não gosta de odor corporal? É mais provável que tenha ideias de direita.” A base da coisa é esta: o sentimento de repulsa pelo mau cheiro dos outros pode significar que se alimenta algum género de discriminação social e sensorial, logo, de “direitista”, “eleitor de Trump” (não estou a brincar) e “autoritarismo”. Acho a ideia muito adequada a piadas sobre quem, de um lado, toma banho e, do outro, se apresenta “lavado, barbeado e talqueado”. Basicamente, para estes filósofos da modernidade, quem falha nos seus propósitos de higiene e anda com uma t-shirt com duas nódoas à altura do umbigo é muito esquerdalhufo, tolerante, amigo dos animais e da natureza – e, seja lá o que isso for, uma pessoa mais igualitária.
Não sei se foi por isso, mas conheceram-se na semana passada os contornos do igualitarismo feminista espanhol: as autoridades do país basco e da comunidade andaluza decidiram que as novas construções de apartamentos não podem incluir suite com casa de banho (porque cria uma divisão de classes) e os quartos terão de ser todos do mesmo tamanho, e a igual distância da casa de banho. Houve quem me explicasse que se tratava de acabar com os “quartos principais”, que favorecem o heteropatriarcado tradicional e os machos da casa — mas ninguém me tira da cabeça que a nova lei espanhola visa impedir as pessoas de terem livre acesso às casas de banho e aos duches, que são fábricas de direitistas encartados.
Da coluna semanal do CM.
Ler o artigo de António Araújo — uma carga de cavalaria nos pobres militares putinianos. Aliás, liliputinianos.
Foi cancelado em Itália um concerto com música de Sergei Prokofiev, que nasceu em 1891 em Donetsk, na atual Ucrânia (curiosamente, viria a morrer no mesmo dia de Estaline). Também foram canceladas apresentações de obras de Tchaikovsky, Borodin, Mussorgsky ou do celestial Dmitri Shostakovich. Ao mesmo tempo, li apelos para que se cancelassem eventos ou cursos em redor de obras de Dostoiévski, Tolstoi ou Gogol, pobre Gogol. O ocidente, coitadinho (ai de nós, que o aturamos) habituou-se a queimar livros que, por motivos quase sempre estúpidos, não lhe agradam mas, com a criminosa invasão russa da Ucrânia, várias cabecinhas histéricas, ardentes de paixão, desataram a proibir música russa, literatura russa ou pintura russa. Estão desejosos de fazer o bem (castigar o facínora Putin) – mas praticando o mal. O que essa atitude traduz não é apenas o ardor ou a comoção diante da barbaridade das tropas de Putin – mas também o orgulho em usar uma das paranoias do nosso tempo (o “cancelamento”, a proibição) em favor do bem ou da virtude, coisa que não existe. Só existem ignorância e horror.
Da coluna diária do CM.
Não é uma data redonda mas, passando hoje 82 anos sobre a morte de Mikhail Afanasyevich Bulgakov (1891-1940), voltemos à Rússia. O romance que o estalinismo perseguiu durante anos, O Mestre e Margarita, começou a ser escrito em 1928 mas só foi publicado em 1966 (e ainda assim uma versão censurada), ou seja, vinte e seis anos depois da morte de Bulgakov – que queimou um primeiro manuscrito em 1930 e viu muitos dos seus textos proibidos pelo regime. A primeira versão integral saiu na Alemanha, em 1973. Bulgakov nasceu em Kiev mas é em Moscovo, para onde foi viver e trabalhar, que ele imagina o Diabo em 1929, visitando o país dos sovietes, da traição e da literatura medíocre da época. Humor negro e diálogo permanente com o bem, o mal, o amor e a obscuridade, o livro de Bulgakov trata dos misticismos da época, tão perigosos como o nacionalismo de Putin ou do patriarca da igreja ortodoxa russa que, descubro-o agora, diz que a culpa de tudo isto é do Ocidente e das paradas gay, razão por que esta guerra é necessária. Isto é tema para o riso de Bulgakov, mas temo que volte a estar proibido.
Da coluna diária do CM.
Veremos se a ideia da “paz perpétua europeia”, uma herança de Kant, não morreu nas ruínas da Ucrânia, que falam por si: um país invadido por um déspota sem escrúpulos, respeito pela humanidade mais básica e capacidade de gerar empatia. Este é o resumo. O resto são variações que poderão obrigar a Europa a mudar de rumo e a discutir a forma de expiar as suas culpas, a sua ineficácia e a sua ingenuidade. Estamos em desvantagem, porque acreditamos no diálogo para resolver conflitos e na capacidade de corrigir o passado (e de melhorar os dias que vêm), o que é visto como uma fragilidade pelos inimigos da ordem liberal e democrática. Putin é apenas um deles; os outros estão cá dentro: uma sociedade amolecida pelo conforto e voltada para dentro, mimada e ingénua, incapaz de esforço e desinteressada pelos seus próprios valores, devorando-se a si própria, ignorando a sua história e o poder dos inimigos mais letais. A resistência da Ucrânia está a ser uma dolorosa maldição para os ucranianos – mas talvez nos ensine a mudar o conformismo e a sermos mais razoáveis e melhores leitores de História.
Da coluna diária do CM.
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