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O exorbitante delírio de Putin acerca da Ucrânia não é apenas obra daquela cabeça autoritária e estalinista. Era bom reler Dostoiévski contra a autonomia ucraniana e o niilismo ou “utilitarismo”, sinónimos de ocidentalismo. É um debate que percorre toda a cultura russa, com momentos mais ruidosos e extremos em que o imperialismo russo toma uma forma agressiva (como agora). Há cinco anos, o Kremlin protestou contra a publicação, pela Penguin inglesa, dos escritos de Ivan Turgéniev (1818-1883), que foi o criador do termo niilista, emprestado a uma das suas personagens, Bazárov, um homem que detestava “ambos os lados da contenda” (ou seja, os “modernizadores da Rússia”, tanto como os representantes da “velha Rússia”). Esta perspetiva marcou obras decisivas como as de Soljienitsine, Pasternak ou Bulgakov. “Aristocracia, liberalismo, progresso, princípios... palavras sem utilidade. A Rússia não precisa delas”, dizia Turgéniev, que acabou por abandonar a Rússia e ir viver para a França cosmopolita e liberal, onde morreu – a Rússia de 2022 nunca deixou de ser a de 1860 (o romance Pais e Filhos, deTurgéniev, é de 1862). Pelos motivos errados.
Da coluna diária do CM.
Fanni Kaplan estivera em Simferopol, na Crimeia, antes de rumar a Moscovo para assassinar Lenine – e, por ter falhado, ser executada na madrugada seguinte numa garagem das traseiras do Kremlin. Há um pormenor lírico no meio disto: a polícia ordenou ao poeta Damian Bedni que estivesse presente durante a execução a fim de traduzir em verso a eliminação de uma inimiga do povo. Era mau poeta e nunca versejou sobre o assunto. Mais tarde, Lenine chamar-lhe-ia “vulgar” e até “pornográfico”, o que era um juízo inesperado acerca de um “poeta do campesinato” que seria depois suspeito e silenciado até à invasão nazi da URSS. Uma das acusações sobre Bedni era a de não exaltar suficientemente Estaline e de criticar a existência de “galinhas coletivas”.
Seja como for, Fanni Kaplan falhou o seu objetivo, mas Lenine (que, de qualquer modo, se habituara a ser alvo de atentados falhados) nunca recuperou totalmente e passava pequenas temporadas em Gorki, não longe de Moscovo, numa dacha que em tempos tinha pertencido aos Morozov, uma das mais ricas família do império, ligada aos texteis. Para quem, como Lenine, praticava uma espécie de ascetismo gastronómico (Vladimir Ilitch tivera sempre um estômago delicado, atreito a maleitas e habituado a dieta) que se satisfazia com refeições de chá, sopa, pão escuro e queijo, Gorki tinha uma novidade: além dos guarda-costas e de Nadejda Krupskaia, a mulher, havia um cozinheiro, Spiridon Ivanovich Putin. Não se lhe conhece nenhuma especialidade, nenhuma criação no fogão – apenas uma lealdade silenciosa junto do líder do Sovnarkom, o Conselho do Comissariado do Povo da União Soviética, o “maior ser humano da nossa nova era”, como lhe chamou Trotsky, que teve o destino que teve.
Cem anos depois, o neto de Spiridon Putin, Vladimir Vladimirovitch – é o que sabemos. Mas se eu tivesse de eleger um personagem seria ele. Sopa de beterraba, repolho com maçã, talvez golubtsi (couve recheada com carne) e a leitura do Pravda. Nada que Vladimir aprecie.
Da coluna semanal do CM.
O que leva uma pessoa sensata e agradável como João Oliveira a defender as posições e a narrativa do imperialismo fascista de Vladimir Putin, como o fez ontem no parlamento? Que pessoas como Jerónimo de Sousa não tenham aprendido praticamente nada com as lições da Guerra Fria, compreende-se; mas uma coisa é, apesar de tudo, seguir a estratégia dos que criaram o Gulag, gostavam do humor negro de Estaline e acreditavam que a pobreza criada pelo comunismo era uma coisa digna – outra, é acreditar que o imperialismo russo, expansionista, nacionalista e herdeiro do czarismo, merece ser defendido, ainda que tenha causado vagas deploráveis de miséria, fome e escravidão a um povo nobre e explorado. Para o PCP, para a gerontocracia comunista e, pelos vistos, lamentavelmente, para João Oliveira, merece (o que o deixa ao nível de Trump e da extrema-direita, as bestas negras). Que a então deputada comunista Rita Rato tenha dito que não sabia o que era o Gulag, com aquela desculpa esfarrapada (a de que não tinha estudado o assunto na universidade), até admito – era a desculpa de uma pobre de espírito. Mas que João Oliveira acredite que o fascista Putin faz justiça à sua interpretação da história, isso é muito preocupante.
Da coluna diária do CM.
Por causa daquele baile de 1978 – dez anos depois de a canção ter sido gravada pela primeira vez –, no ginásio do liceu, em que obrigámos o disc jockey a repeti-la três vezes, ainda que muitos de nós não gostassem da banda. Por causa da quantidade de vezes em que rolámos as cassetes Mawell e BASF com uma esferográfica até conseguirmos alinhar o som pelos primeiros acordes de “A Whiter Shade of Pale”, e as reproduzimos num aparelho a pilhas no pátio das traseiras de casa. Por causa da voz de Gary Brooker ao cantá-la e por causa das inúmeras vezes em que não conseguimos dobrar aquele verso na exata sílaba em que descobríamos que já tínhamos sido ultrapassados. Por causa de todas as namoradas da época, que suportaram as tentativas de rapazes desajeitados e desafinados para cantar “A Whiter Shade of Pale“, quando o que queríamos mesmo era tocar a primeira frase da guitarra de “Smoke in the Water“. Por causa de Gary Brooker (1945-2022), que morreu no sábado passado e há de ser sempre a voz dos Procol Harum, que nunca há de ser uma banda pirosa, pelo menos na nossa memória. É a memória.
Da coluna diária do CM.
O cenário de destruição que atingiu Petrópolis recordou-me Stefan Zweig (1881-1942), que encontrou aí refúgio depois de, em 1940, ter escapado ao nazismo e ter atravessado o Atlântico. Em 1941 publicou Brasil, País do Futuro – título que constitui, em simultâneo, uma promessa e uma maldição. Mas não é do Brasil nem de Petrópolis que hoje se deve falar, apesar dos demónios do desprezo e da infelicidade, e sim de Stefan Zweig, que viveu naquelas montanhas sobre o Rio de Janeiro. Pessimista e muito para lá de culto, com raízes judaicas, Zweig foi um dos grandes humanistas europeus do século XX – ensinou-nos que a História se reencontra com os nossos medos e as nossas desilusões; as suas biografias (Fernão de Magalhães, Maria Antonieta ou Balzac, por exemplo), tal como a maior parte dos seus romances, são estudos sobre a complexidade e o desejo, sobre o destino de vidas de exceção num tabuleiro de xadrez em movimento perpétuo – e sobre nós mesmos enquanto seres em busca de alguma perfeição. Passam hoje 80 anos sobre o suicídio de Stefan Zweig, o autor de Amok ou A Novela de Xadrez.
Da coluna diária do CM.
O The New York Times, uma espécie de órgão central dos maluquinhos de serviço, fez uma campanha sobre os seus tipos de leitores. Um desses tipos é Lianna, que é não-binária, queer e negra. O que a caracteriza como leitora? “Ela imagina Harry Potter sem a sua criadora.” Ou seja, sem J.K. Rowling, uma vez que J.K. Rowling foi acusada de transfobia apenas por dizer que não basta um homem sentir-se “mulher” para ser mulher – e que há uma dimensão biológica importante no feminino, tal como no masculino. Mesmo sem essa trangalhadança sexual, a ameaça está na ideia de imaginar um livro sem o seu criador: Harry Potter sem JK Rowling, porque ela é uma pessoa má; Os Maias sem Eça, porque ele “racista”; O Misantropo sem Molière, porque ele era soez; Orgulho e Preconceito sem Jane Austen, porque ela era conservadora; As Bruxas de Eastwick sem Updike, porque ele era machista – um mundo sem dificuldades nem discussões, nem dúvidas, bem contrariedades. É uma nova e brutal forma de apropriação – um mundo sem criadores nem autores, porque eles são incómodos. Só com patetices.
Da coluna diária do CM.
Em França, foi um dos temas mais “fraturantes” da campanha presidencial em curso: o candidato comunista, Fabian Roussel, disse uma coisa simples: “Um bom vinho, uma boa carne, um bom queijo – é a gastronomia francesa. A melhor forma de a defender é permitir que os franceses possam desfrutá-la.” Protestos imediatos à esquerda – porque “a França” é um conceito ideológico ultrapassado e porque é necessário integrar a gastronomia “de um ponto de vista ecológico e social”, porque nem toda a gente ingere queijo, vinho (e logo vinho!) e carne (e logo carne!) e, finalmente, porque essa declaração pode bem ser direitista. E protestos na direita, sobretudo à roda de Macron, que também quer ser tolinha como os “wokes”, e diz que não existe gastronomia francesa mas “gastronomia em França”, muito multicultural. Roussel diz uma verdade elementar: a gastronomia é a alma de um povo, sobretudo um direito dos mais humildes, e deve ser de qualidade e acessível a todos. Que tenha sido atacado pela esquerda “moderna” diz bem de como os grandes combates podem nascer de coisas elementares. Aprendam.
Da coluna diária do CM.
Tony Soprano ficou deprimido quando os patos, abandonando a sua piscina, levantaram voo, sobrevoaram a copa das árvores e partiram para sempre. Foi nessa altura que teve o seu primeiro ataque de pânico (e desmaio), o que o levou a procurar a ajuda da Dra. Jennifer Melfi, uma psiquiatra. Quem viu a série de televisão sabe que tudo isto é verdade.
Mas o mais surpreendente foi a circunstância de Tony Soprano, chefe da máfia, recorrer a uma psiquiatra e tomar Prozac. Há outro caso na genealogia do crime organizado: no filme Analyze This (Uma Questão de Nervos), um colega de Soprano, Paul Vitti (Robert De Niro), tem de recorrer aos serviços do Dr. Ben Sobel (Billy Crystal). Na altura não se falava de “saúde mental” – mas hoje a expressão serve para quase tudo. Ouço-a pelo menos duas vezes por dia, tirando as alturas em que os vários especialistas da televisão têm de comentar um desvario e, não sabendo como catalogá-lo, usam o precioso guarda-chuva de “saúde mental”. A “saúde mental” deveria preocupar-nos porque atinge uma larga faixa de portugueses, sobretudo em idade madura, e os deuses sabem como isso é dramático, triste e inevitável. Mas não devia confundir-se a melancolia, as várias decisões erradas ou a incapacidade em enfrentar a rejeição com “um problema de saúde mental”.
A arte de sobreviver é das mais subvalorizadas. Infelizmente, estão em alta os curandeiros que dizem o que parece soar melhor ao sentimentalismo corrente – que há sempre culpas a distribuir pelos outros e que todos somos crianças indefesas e insatisfeitas que a vida traiu. Soa melhor e há quem verta uma lágrima. Tony Soprano vê os patos a levantar voo e descobre que não voltam. É isso que as pessoas com juízo percebem: há coisas que partem e parte de nós vai com elas – ou não. Isto não é um problema de “saúde mental”.
Em 1989, cinco anos após a morte de Ngaio Marsh, os correios neozelandeses puseram em circulação um selo com a sua imagem – era um dos nomes mais importantes da literatura local, ao lado de Katherine Mansfield. Curiosamente, o detetive criado por Ngaio Marsh (1895-1982) não tem nada de neozelandês: Roderick Alleyn é um cavalheiro britânico que atravessou os horrores da I Guerra (em que morreu o marido de Ngaio) e ingressou na Scotland Yard. Desde 1934 figura em 32 livros policiais da autora. Ela era uma shakespeariana, Rory Alleyn cita Shakespeare nas suas investigações. A meio da II Guerra, o detetive finalmente vai até à terra natal da sua criadora, trabalhando para os serviços de espionagem – mas regressa a Londres. Ngaio nunca precisou de regressar ao Reino Unido; na Nova Zelândia, do outro lado do mundo, foi tão ou mais britânica do que Agatha Christie ou P:D. James. Os seus livros têm uma melancolia suave e evocam as paisagens e ambientes de um mundo sem conflitos. O último livro com Alleyn foi publicado em 1982, pouco antes da morte de Ngaio Marsh, passam hoje exatamente 40 anos.
Da coluna diária do CM.
Ontem, boa parte da imprensa e das pessoas bondosas e com boas intenções escandalizou-se com os números de um inquérito realizado pelo Instituto de Ciências Sociais para a Fundação Calouste Gulbenkian acerca dos hábitos culturais dos portugueses. A hipocrisia das televisões foi muito saborosa, sobretudo depois de, nos últimos anos, terem ignorado os livros na sua programação – e transformado tudo o resto numa variação de bailaricos e turismo serôdio. Lamento informar que os números não são novidade – nem mesmo a revelação de que 61% dos portugueses não leram um livro em 2020 (os dados do Eurostat desde 2010 que nos colocam em antepenúltimo lugar em matéria de leitura, apenas à frente da Roménia e da Turquia); revelam sobretudo que é necessário mudar a forma como a escola aborda a leitura depois de ter sido democratizada e tornada muito inclusiva. Com uma escola empobrecida, sem meios, burocratizada, sem incentivos, entregue aos mesmos responsáveis incultos de há vinte e trinta anos, não será possível criar novos públicos para a cultura. Por mais que “a cultura” cumpra o seu papel.
Da coluna diária do CM.
O livro de Sheera Frenkel e Cecilia Kang sobre o universo Facebook (Manipulados, publicado pela Objectiva) é uma poderosa investigação sobre aquele domínio das chamadas “redes sociais”. Em relação ao tema, orgulho-me de duas coisas: 1) não tenho Facebook; 2) nunca escrevi “redes sociais” sem usar aspas. O que o livro tenta honrosamente demonstrar é uma evidência fácil de verificar à distância: o negócio de dados sempre esteve na mira do Facebook como uma das suas principais motivações. É esse negócio que permite o funcionamento das GAFAM, as gigantes da net: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. O livro fornece abundantes pormenores sobre a empresa de Zuckerberg (e do génio Sheryl Sandberg) – mas o problema é que se trata de um processo irreversível: de desumanização, roubo de identidade, viciação e adição, valorização bolsista e combate à escala global. As GAFAM têm um poder incalculável; tanto comandam a correção política pateta de hoje, como as nuvens da indústria da imaginação. Os seus algoritmos são o verdadeiro pesadelo de Orwell. Só lhes falta entrar no negócio prisional.
Da coluna diária do CM.
Coisas que o tempo devora: o encontro com os outros, por exemplo. Estávamos num jantar carioca (Lúcia Guimarães no intervalo de novaiorquina, Luciana Villas-Bôas – que viria a ser minha editora no Brasil –, Olívia Hime, Ana Lúcia, Sérgio Augusto, de que tinha acabado de ler Lado B e o maravilhoso livro sobre o Botafogo (Entre o Céu e o Inferno), etc.) e de repente ele entra. Era o vizinho (acho que ele tinha fome), ou seja, era Arnaldo Jabor. Cousa mais divertida. Mal eu chegava ao Rio, comprava uma sacola de livros e lá estava Amor é Prosa, Sexo é Poesia, o livro que Jabor acabara de lançar. Eu tinha visto Toda a Nudez Será Castigada ou O Casamento (adaptações de Nelson Rodrigues, o grande reaccionário) e também Eu Sei Que Vou Te Amar, seus filmes – mas gostava dele como cronista, zangado e irónico, patife, com ar de saber de tudo (e sabia). Arnaldo Jabor (1940-2022), desbocado e culto, era um símbolo daquela geração de pessoas livres do Brasil, e eu queria entrevistá-lo na época. Não deu. Ele dizia coisas de um passageiro preguiçoso: "Andamos com fome de beleza em tudo.” Morreu ontem em São Paulo.
Da coluna diária do CM.
Parece que um dos argumentos mais perversos e práticos que pesa a favor da designação de “terrorismo” tem a ver com o alcance dos poderes policiais. Ou seja, se um acontecimento é classificado como “terrorismo”, as autoridades ficam com os movimentos muito mais livres. De perversidade em perversidade, talvez fosse isso que levou a designar como “terrorista” o aluno da Faculdade de Ciências capturado antes de poder levar adiante o eventual atentado que tinha preparado. A verdade é que, como falamos demais, temos cada vez menos cuidado com as palavras. Na maior parte das vezes, por ignorância; depois, por maldade; finalmente, por descuido. Quando aqui me irrito com o uso atribuído a certas palavras (agora é “terrorista” – mas, antes disso, “resiliência”, “viral”, “distanciamento social”, “robusto”, “novo normal”, usos alarves de palavras que significam outras coisas), não é por mera vaidade. Também há vaidade, claro – porque devemos ser vaidosos da nossa língua e usá-la com solenidade e correção. Mas, geralmente, é pura irritação diante da falta de juízo e de dicionário.
Da coluna diária do CM.
Quando entrámos em modo de “navegação pandémica”, no início de 2020, várias vezes escrevi aqui sobre o horror que me causava a ideia de “interromper a política” – opção, aliás, também tomada pelo curioso Dr. Rio. Era preciso estarmos todos do mesmo lado. E estivemos, sob a batuta das televisões – que recomendavam recolhimento e recitavam sonetos sobre o dever de estar em casa (os que podiam, claro, porque havia sempre gente silenciosa a trabalhar). Pelo meio, naturalmente, “fez-se política”. Ou seja, autorizámos que as autoridades abusassem da sua autoridade, aceitámos que o Estado se transformasse num manicómio e, com sensatez e cordatamente, obedecemos. Alguém me recordou que, quando Robespierre quis reforçar o estado de Terror, durante a Revolução Francesa, usou o argumento de que o seu governo era “de saúde pública". Agora, que não há Covid, a nova justificação para “interromper a política” chama-se PRR, o plano de resiliência e recuperação. É preciso, pois, ficamos todos do mesmo lado, na fila dos fundos europeus – somos cidadãos fiéis e crentes, faremos o que for necessário.
Da coluna diária do CM.
Por motivos que me ultrapassam e de que peço desculpa, estive a ler um belo romance – coisa que não costuma acontecer, porque parte da literatura de hoje se entretém a mostrar que as ideias do livro estão certinhas, ou então a servir como divã para lamentações de autores (com abundância nórdica) que têm problemas sexuais e familiares de que o Dr. Freud podia dar uma explicação simples. Nenhuma dessas matérias me interessa. Porém, o romance que li era muito bom: uma pequena saga entre África e a Europa, uma história bem humorada e enquadrada entre o século XIX e os dias de hoje, cheia de belas páginas proféticas, com personagens que lutam pela (sua) liberdade e tentam refazer a história das suas famílias. Porém, na publicidade ao livro que circula nas redes sociais, o editor lá incluiu palavras como “colonialismo”, “racismo” e, ena!, “identidade de género”. Fui ler outra vez o livro, porque não detetara esses temas, tão dissimulados estariam. Não, não os descortinei. Simplesmente, essas palavras são o novo ‘aloe vera’ dos detergentes e iogurtes: se não estão lá, o livro corre riscos.
Da coluna diária do CM.
Se há coisa de que não se pode acusar Carme Junyent é de ser anti-feminista. A professora da Universidade de Barcelona não só é uma das vozes históricas do feminismo em Espanha como é uma conceituada linguista, especializada em diversidade linguística e antropologia, além de ter organizado um estudo sobre as “questões de género” na linguagem de hoje. Carme Junyent diz que ninguém pode obrigar-nos a dizer “todas e todos” e, muito menos, “todas, todos e todes”, como querem os marcianos – e as marcianas. Porém, cansou-se – e acaba de reunir 70 mulheres num único livro intitulado Somos Mulheres, somos Linguistas, Somos Muitas e Dizemos Basta (no original Som dones, som lingüistes, som moltes i diem prou). Junyent vê as coisas de forma clara: esta moda veio para ficar, como as abreviaturas, os erros ortográficos e o mau estilo; porém, ninguém deve ser obrigado a seguir a palermice. Nenhuma lei pode impô-lo. O que é importante é que cada pessoa viva os seus direitos em liberdade e disponha da vida sexual como entender – mas que não nos seja imposta uma norma linguística errada, defeituosa e injustificada que só analfabetismo pode promover. E era isto.
Da coluna diária do CM.
Esta era a temporada das chuvas. Não era bom nem mau tempo; chovia. No inverno havia frio. No verão havia calor. Não nos queixávamos de frio no inverno nem reclamávamos do calor no pico do verão. Na sexta-feira passada, a menina da rádio aplaudia o bom tempo: “Vai estar bom tempo, não chove, parece já a entrada do verão.” Dizia isto com aquele ar de festa apatetada, como se vivêssemos na Costa Rica e houvesse chuva bastante para encher as barragens e fazer correr os ribeiras nas serras. “Há umas pequenas nuvens, nada de especial.” No mundo da “natureza” (uma coisa que existe cá fora, e que não é apenas boazinha), chuva não quer dizer “mau tempo”; além de Lisboa, do Bairro Alto e do Chiado, há outras terras no mapa de Portugal – podem visitá-las. Seja como for, daí a meia hora, a menina da rádio entrevistava um “ativista” (nada tão solene como um “ativista”) que nos incitava a lutar contra as “alterações climáticas” tomando banho de dois minutos e diminuindo o fluxo de água do autoclismo. E depois, sorridente, despedia-se de todos: que aproveitássemos o magnífico tempo sem chuva.
[La pluie et le beau temps é o título de uma recolha de poesia de Jacques Prévert; e de uma canção dos Nouvelle Vague.]
Da coluna diária do CM.
Portanto, cresceram-nos os polegares – não só aos adolescentes e infantes, mas a todos nós, de meia-idade ou no derradeiro quartel da vida, quando tudo o que fazemos devia ser por gozo ou comodidade. Não é assim. A ideia é que nos sirvamos dos polegares para manejar o telefone, porque as autoridades estão cientes de que os maiores de setenta são muito capazes de fazer no computador operações que há vinte anos não se imaginavam sequer no cinema: pagar impostos através do computador, que seja; ir ao banco, só pelo computador; ir ao médico, pela tela do computador; conversar com a família – durante após a “pandemia” (todos estamos fartos da palavra) –, pois que seja pelo computador. Vamos e venhamos, isso é uma coisa que se aprende, desde que haja computador, desde que haja internet e desde que haja pessoas entre um ponto e outro. O problema é que às vezes não há.
Consciente disso, Carlos San Juán – um espanhol de 78 anos, urologista reformado – entrou na semana passada pela porta do ministério da Economia com 600 mil assinaturas de pessoas que reclamam contra a “exclusão financeira” de que são vítimas os maiores de idade por parte dos bancos. “Sou velho, não sou idiota”, disse San Juán.
Desde 2008, para melhorarem os seus resultados, os bancos encerraram mais de 50% das suas agências e sucursais. O resultado é que “o interior” e as zonas onde há mais idosos, reformados ou pessoas que não usam o computador, ficaram privados do que antes podiam fazer na sua freguesia, ou perto: fazer um depósito, levantar dinheiro, conversar com quem guarda as suas economias, pagar uma conta, assinar um documento. Tudo coisas que se fazem na “era digital” com certa facilidade – mas de que não se podem afastar os nossos mais velhos. Para o Estado e para os bancos, eternos aliados, não há cá “exclusão financeira”, tudo se faz com teclas. Mas, pelo sim, pelo não, receberam o Dr. Carlos San Juán com cautelas e prometeram pensar no assunto. Como diz o jornal ABC, talvez por ser urologista e saber onde é que lhes dói.
Nenhum autor – tirando Shakespeare, por vários motivos – resumiu tão bem o retrato de um mundo em convulsão como Charles Dickens; ninguém esquece o início de Um Conto de Duas Cidades (1859), onde fala do “melhor dos tempos e do pior dos tempos”, “o tempo da sabedoria e o tempo da loucura; a estação da luz e a estação das trevas”. Dickens, que nasceu há duzentos e dez anos, assinalados hoje, foi um dos maiores produtos da época vitoriana, ao lado de Darwin, Ruskin, as irmãs Brontë, Stevenson, Lewis Carroll, Thomas Hardy, George Eliot ou Thackeray. São os nossos clássicos do século XIX, contemporâneos de Marx ou Freud. Os Cadernos de Pickwick (1837) é um retrato prodigioso como a Inglaterra quase nunca teve, se nos abstivermos de muitos escritos de Orwell. Mas é como romancista e de grande estilista que Dickens entra na galeria dos eternos que nos comovem, em livros como David Copperfield (1850), Tempos Difíceis (1854) ou Grandes Esperanças (1861). O olhar da Europa sobre “as classes desfavorecidas” nunca foi o mesmo. A ficção e o seu poder também não. 210 anos de Dickens, notem bem.
Da coluna diária do CM.
A adaptação de Manhã Submersa traduz um pouco aquilo que Lauro António (1942-2022) pensava do cinema; se se recordam, aquele trecho de A Força do Destino, de Verdi, é como uma sombra que paira sobre todo o filme – e sobre a sua ideia de cinema. O que sempre me alegrou na forma como Lauro António falava de cinema (apaixonadamente, incessantemente) foi a tentativa de ligar sempre o cinema às suas “coisas favoritas”. Uma delas, talvez a mais importante, era a literatura. Um dia gravei com Lauro António um dos programas que mantive sobre bibliotecas pessoais; em sua casa, sobre o Café Vavá, em Alvalade (lugar essencial para a geografia lisboeta da geração do Cinema Novo), todos os espaços tinham sido ocupados por livros. Na altura havia cassetes de VHS – mas a quantidade de livros era demolidora. A conversa com ele foi espantosa; de um livro passava a outro, de uma recordação a outra, de um filme a outro, a sua generosidade deixando sempre abertas as portas para mais memórias. Com ele vai parte da nossa ligação emocional e afetiva ao cinema. Será mais uma coisa que temos de agradecer-lhe.
Da coluna diária do CM.
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