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Há uma história deliciosa que me enche as medidas, e creio que todos nos recordamos do princípio dela – quando Harry e Meghan Markle conversam, diante das câmaras de televisão, com Oprah Winfrey no jardim de uma mansão em Montecito, Califórnia. A casa, que compraram por 15 milhões de dólares, é o pequeno arranjo do casal; ela, que veste um casaquinho primaveril, queixa-se de uma palavra que pode passar por comentário racista feita pelo sogro; ele, aos 36 anos, queixa-se do corte na mesada. O parlapié é delicioso: falam de “viver autenticamente”, e o cenário ajuda, porque a mim me parece o de um jardim de uma vivenda na Malveira, com galinhas a vaguear entre os canteiros e restos de comida num prato. De repente, ela recorda-se do tempo em que era uma atriz medíocre, e deixa rolar duas lágrimas diante de Oprah – uma lágrima na televisão vale ouro e pode compensar o corte na mesada e o cacarejo dos animais, que até podem ser substituídos com vantagem por patos de plástico. Está consumado o corte com a família que ficou em Windsor, rodeada de retratos e garrafas vazias: não mais serão duque e duquesa – não mais, ai de nós – mas apenas um jovem casal em busca de fortuna e que arrecadam uns cobres a vender segredos de alcova. Na América, o “ativismo” local, as atrizes da Califórnia e o partido democrata, acharam a coisa absolutamente divina.
Na semana passada, no entanto, Harry e Meghan queixaram-se de o príncipe não receber proteção policial quando estiver no Reino Unido. Estavam ofendidos, como acontece geralmente com as pessoas da sua geração, porque tudo as ofende: um corte na mesada, um comentário pateta, um vestido fora de moda, a falta de proteção policial, a deferência, coisas que os impedem de “viver autenticamente” e lhes rouba o apetite. Republicanos entre as galinhas gordas da Califórnia, mas duque e duquesa para outros efeitos.
Da coluna semanal do CM.
Camilo José Cela (1916-2002) morreu há vinte anos e foi um dos maiores escritores espanhóis do século XX. Não teria lugar na Espanha de hoje, porque ele era de outro mundo – truculento e pícaro, valdevinos, meio vadio, desafiador, tão vanguardista como conservador. Este foi também o seu trajeto político: censor do regime, as suas obras foram censuradas e impedidas de serem publicadas. Um personagem como este, tonitruante e meio ator, não podia ser verdadeiramente amado – eu acho brilhante o autor de A Colmeia (1951) ou de A Família de Pascual Duarte (1942), e gosto especialmente de Mazurca para Dois Mortos (1983), que tem um arranque maravilhoso. Viajante por Espanha em Viaje a la Alcarria (1948) e Del Miño al Bidasoa (1952), imagino-o de botas e de mochila às costas, muito antes de ter sido marquês e senador, imaginando como ia escrever o absolutamente notável e barroco Rol de Cornudos (1976). Prémio Príncipe das Astúrias em 1987 e Cervantes em 1995, foi Nobel em 1989. Dá-me sempre gozo vê-lo criticado por motivos políticos – porque ele foi, de facto, um grande escritor.
Da coluna diária do CM.
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