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Portanto, no meio disto – um país amável onde os pivôs de televisão nos aconselham a ficar em casa nos confinamentos –, interessam-me os crimes. Há tempos, o CM publicava na net uma atualização periódica dos homicídios cometidos pelas províncias fora. (Ainda lá está, um mapa dos crimes de violência doméstica, vergonha da pátria.) A maior parte deles não caberia num romance policial. O crime “de Rosa Grilo, do triatleta e do amante”, como ficou conhecido, é um retrato dessa contradição do país a dois tempos. Não tem a brutalidade dos assassinos do Meia Culpa, de Amarante, que chocou aquele país que se julgava uma espécie de horta de legumes biológicos e ervas aromáticas rodeada de melros a cutucar nos ramos das oliveiras e a ler epopeias de Saramago. Não tem essa violência; é mal desenhado – um crime de segunda categoria com as costuras à mostra.
Visitei o cemitério onde está o triatleta, perto de Vila Franca de Xira, e o lugar solitário, no Alentejo, onde o corpo foi abandonado com alívio. Tamanha incompetência merecia castigo. Ele corria dez quilómetros diários, aumentando aos fins de semana, duplicando a solidão de Rosa Grilo com mais umas léguas. A casa de família, que passou trezentas vezes na televisão, não dá ideia desse contraste: também há melros e oliveiras em redor, campos verdes e estradas onde só se aventuram ciclistas destemidos (há demasiados declives) – uma família é uma família é uma família. O que me apaixonou verdadeiramente no crime, mais do que as mentiras inábeis, foram as pontas soltas: a pequena aldeia onde eu passaria parte da reforma a beber mazagrãs no pico do verão; um homem apaixonado pelo esforço físico; uma mulher que, no tempo de Balzac, teria a sede e os apetites da sua “mulher de trinta anos”; um espírito salafrário, a falta de dinheiro e os maus negócios de subúrbio. Todos compreendem o cenário – e o enredo. Uma coisa puxava a outra, incluindo a incompetência natural dos homicidas portugueses.
Da coluna semanal do CM.
Francisco Augusto Silva – era assim que devia chamar-se Francis Augustus Silva, nascido em Nova Iorque em 1835, que conheci depois de ver em Madrid (Museu Thyssen) uma das suas paisagens luminosas, amenas, crepusculares, inocentes, quase todas enquadradas pela geografia permanente das suas obras: o rio Hudson, Coney Island, as baías de Rhode Island, as praias do Massachussets, os estuários da Virgínia e de Maryland. Foi uma surpresa. Filho de um barbeiro madeirense que emigrou para a América em 1930, Francis Silva era autodidata; começou por pintar sinalização pública e carruagens atreladas a cavalos; foi soldado mal-comportado na guerra civil americana (1961-1865) e, finalmente, arriscou o amor da sua vida. Paisagens dessas, com baías onde fundeavam pequenos veleiros, arvoredos que inspirariam autores como Ralph Waldo Emerson e Thoreau para o seu ambientalismo inicial. Silva, cujo nome esteve ligado ao movimento do Luminismo Americano, morreu aos 50 anos, em 1886. Na Madeira nunca teria pintado, mas as suas paisagens são de tal maneira belas que merecem ser vistas um dia em Portugal.
Da coluna diária do CM.
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