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Em 1996, o escritor David Foster Wallace (1962-2008), autor de A Piada Infinita, escreveu um artigo sobre cruzeiros nas Caraíbas para a revista Harpers – o texto foi depois republicado num livro com o maravilhoso título Uma Coisa Supostamente Divertida Que Nunca Mais Vou Fazer, onde também escreve sobre ténis, pornografia, televisão ou literatura. Basicamente, Wallace analisa a indústria da amabilidade e da simpatia a bordo de um gigantesco navio onde se joga às cartas, se bebe e come com certa liberalidade, se gasta imenso dinheiro e, finalmente, onde se entra em depressão caso alguma coisa corra mal. Lembrei-me deste artigo genial depois de ler a notícia sobre o navio alemão que ficou retido em Lisboa a meio de um cruzeiro para Lanzarote, depois de um surto de Covid. A ideia de, a meio do inverno e de uma pandemia, sair da Alemanha rumo ao fogo de artifício do Funchal e depois às Canárias, num navio onde se dorme em condições deficientes e é necessário estabelecer contacto com milhares de pessoas que não conhecemos e não podemos evitar – teria de ter um final deste género.
Da coluna diária do CM.
Os crimes interessam-me. Não porque tenha um gosto perverso pela morte dos outros, ou pelo mal que anda à solta, mas porque cada ocorrência (é a linguagem das estatísticas) revela uma parte do país à nossa volta.
A ideia que temos é a de uma pátria maneirinha, educada no respeito pelas instituições, pela vizinhança, pelos dinheiros europeus, pelos direitos dos animais e pela cozinha de autor – tanto como o desrespeito pelos sinais de trânsito. Confere. Há uma enorme quantidade de concidadãos que publica fotografias no Instagram; também me interessam essas imagens: comida em empratamentos suaves, uma certa delicadeza aprendida nas páginas de lifestyle, paisagens roubadas de uma espécie de paraíso onde tivemos a sorte de nascer e de albergar turistas, e no qual as pessoas praticam ioga, dão caminhadas em fato de treino e vestem de licra numa ciclovia à beira-mar ou numa estrada rodeada de pastagens.
Há quem pense que isto, mais o clima maravilhoso, são uma boa imagem do país: um modo de vida saudável, abreviando. E a linguagem, cheia de preciosidades. Não há subcomissário de polícia que, a propósito de uma ajuntamento de zés pereiras à porta de um estádio, ou de uma família que usa máscara contra as gotículas de Covid, não mencione as alterações climáticas, o dever de cidadania, uma atitude responsável, a sustentabilidade ou a salada de quinoa.
Antigamente, havia o país a duas velocidades: os ricos e os pobres, os do interior e os do litoral, os de Pinhel e os de Cascais. Agora, há um país com duas línguas: os que ainda falam da sua vida em português (uma velharia sem prestígio), e os que vivem num país cosmopolita que assiste aos vinte e dois programas televisivos sobre cozinha saudável e cidades sustentáveis. No meio disto, interessam-me muito os crimes.
Anunciar assim o programa destas crónicas revela um espírito maldoso e recalcitrante. Espero mantê-lo semana a semana.
Da coluna semanal do CM.
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