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O papa Francisco elevou a igreja matriz de Torre de Moncorvo à dignidade de basílica. É um colosso cuja construção se iniciou no século XVI e que, hoje, domina a vila. Ao longe, de noite, é uma coroa iluminada no emaranhado de ruas que sobem até ao topo da colina. O seu interior (três naves, retábulos barrocos), de chão austero e frio, de granito, é de uma elegância notável; a escadaria minúscula que leva ao topo, ao varandim e ao campanário, é um prodígio; as fachadas, tanto a frontal como a lateral, têm fragmentos de grande arte. Sempre achei belíssima esta igreja de Nossa Senhora da Assunção que agora se junta à lista das outras basílicas portuguesas – e, em especial, à basílica do Santo Cristo do Outeiro, na aldeia de Outeiro, no mesmo distrito, Bragança. Esta, é uma explosão de beleza no meio de planalto (foi elevada a basílica em 2014), com um interior magnânimo e uma sacristia fantástica, toda ela preenchida (paredes e tecto) com quadros, em puzzle, de Damián Bustamante, um pintor de Valladolid do século XVIII. Moncorvo pode orgulhar-se desta distinção de primeira ordem.
Da coluna diária do CM.
Falar-vos de A Caça ao Snark e de Sylvie e Bruno – ou de Euclides e os Seus Rivais Modernos e O Alfabeto da Cifra – não há de ser de grande ajuda. Mas o autor destes títulos muito menos conhecidos (era matemático, fotógrafo, poeta) é o mesmo de Alice no País das Maravilhas ou de Alice do Outro Lado do Espelho publicados, respetivamente, em 1865 e 1871. Lewis Carrol (aliás, Charles Lutwidge Dodgson, seu nome verdadeiro, 1832-1898) foi muito mais do que o autor das histórias que nós centramos em Alice, a menina que entra numa toca de coelho e acaba por cair numa espécie de mundo às avessas. Tudo o que hoje trauteamos sobre verdadeiro 'nonsense' aprendemos com as histórias de Alice, ou é herdeiro desse imaginário que pensamos ser destinado a crianças – e que, afinal, sob aqueles jogos e invenções, é um livro para adultos que não perderam nem a inocência nem a capacidade de serem desafiados. Carrol é absolutamente genial. O ‘politicamente correto’ e os tolinhos suspeitam muito dele, o que confirma a ideia de que se trata mesmo de um génio. Passam hoje 190 anos sobre o seu nascimento.
Da coluna diária do CM.
Em novembro passado escrevi aqui que estas seriam as eleições mais imprevisíveis depois das legislativas de 1976 e das constituintes de 1975. Não porque o seu resultado seja inesperado para quem julgava que a manobra de provocar eleições resultasse no reforço de uma maioria governamental – mas porque, além disso, não se esperava o estouvamento e desatino desta campanha. Nela, prometeu-se todo o género de sandices e coisas impossíveis; a mentira propagandística atingiu níveis interessantes de demência política e de improbidade moral. Sim, a história há de explicar como António Costa foi responsável pela descortesia de dividir o país em malandros e justos (uma máxima bloquista), recusando-se a dialogar, moderar ou aplainar as diferenças para que nos aproximássemos do essencial; se o faz agora, é por absoluto e desmazelado desespero, depois de o país estar de pantanas. E sim, a história há de igualmente explicar como um sobrevivente da natureza de Rui Rio se transformou num hipotético vencedor. Esta soma de mal entendidos é cómica vista de fora. Mas, cá dentro, tem um perfume de agonia.
Da coluna diária do CM.
No meio da vasta lista de Dias Mundiais, alguns deles consagrados a coisas mirabolantes ou a causas atoleimadas, ontem foi a vez da Escrita à Mão. Escrever à mão é cada vez mais uma velharia a que poucas pessoas se dedicam. Não sabem o que perdem. Uma letra agradável, desenhada e refletida obriga-nos a pensar melhor no que escrevemos, a ter amor pela escrita e pelas palavras que se escolhem de entre todas as possíveis na nossa memória. A escolher o papel (os redesenhados e deliciosos cadernos Emílio Braga ou Firmo), a usar um belo lápis Viarco ou uma caneta que se guarda e se preserva. E também a sermos mais delicados e mais cuidadosos. Nada disto são coisas desprezíveis. Inclinadas ou direitas, as nossas letras transcrevem uma personalidade, um desejo de recordar uma palavra ou uma ideia, uma experiência que vai do corpo à letra, do cérebro ao papel passando pela mão, que é instrumento do espírito. A prática da caligrafia devia ser reabilitada como uma forma de terapia e de consolação diante da excessiva velocidade das coisas. E uma aprendizagem espirituosa da beleza das palavras.
Da coluna diária do CM.
Estávamos em 1950 quando o editor Joaquim Figueiredo de Magalhães (1916-2008) decidiu lançar uma coleção de romances policiais, para a qual escolheu o nome “Escaravelho de Ouro”, título de um pequeno livro de Edgar Allan Poe. Foi nessa coleção fundadora – a primeira a publicar livros com capa plastificada e verniz, já agora – que se divulgaram alguns dos principais nomes do policial, de Raymond Chandler a Erle Stanley Gardner ou Dashiell Hammett e Agatha Christie. As capas eram concebidas como obras de arte, as traduções eram muito cuidadas e entregues a escritores de renome, a distribuição era de primeira ordem. Para quem vive no meio de livros e das suas histórias (a história que contam e a história da sua publicação), o caso da Escaravelho d’Ouro mostra como o nosso mundo mesmo e há motivos para termos saudades de algum tempo que ficou lá atrás.
Para começar, cada título da série teve uma tiragem quatro vezes superior à que teria hoje. E veja-se o que inventou Figueiredo de Magalhães (que mais tarde casaria com Rosa Lobato de Faria): cada livro publicado levava três senhas, destacáveis por picotado – uma para o livreiro ou dono do quiosque ou tabacaria, que registava o nome do comprador; as outras duas para o leitor: a primeira dava acesso ao sorteio mensal de uma viagem aos locais onde se passavam as histórias; a outra permitia participar no sorteio de uma volta ao mundo com a duração de dois meses. E assim aconteceu, com leitores a viajar para Paris, Madrid, Rio de Janeiro, Zurique, Barcelona, Frankfurt, Nice, Roma ou Monte Carlo. Estávamos em 1950, repare bem – e cada livro tinha uma tiragem de 15 mil exemplares. O primeiro título foi Três Igual a Um, do belga Stanislas Andre Steeman – e quem ganhou a viagem a Londres (onde se passava o livro) foi nada mais menos do que o dono do Fontória, afamado estabelecimento noturno e cabaré lisboeta. Era em 1950.
Nem o grande George Orwell, o autor do romance 1984, nem Winston Smith, o personagem do livro, imaginariam que – em pleno século XXI – os estudantes universitários seriam alertados sobre “episódios” de violência e problemas de género ou sexualidade, classe, raça, abuso sexual, ideias políticas criticáveis e “linguagem ofensiva” usados pelo autor em 1949. Aconteceu agora na universidade de Northampton, como noutras já se avisaram os estudantes acerca de opiniões menos próprias que povoam as páginas de Shakespeare, Charlotte Brontë ou Dickens, para não irmos mais longe. Este mundo das universidades anglo-saxónicas envergonha a espécie humana, contrariando aquilo que sempre julgámos positivo e desejável: que a universidade não deve ser um lugar de pacificação e de concórdia, de subjugação ao pensamento político da moda (que despede professores, queima livros e proíbe ideias), mas um lugar desafiador e livre. Já faltou mais para que as escolas comecem a alertar os alunos, transformados em criancinhas, para a cenas de violência e abuso familiar em Camilo ou de perfídia sexual em Eça.
Da coluna diária do CM.
Sei que já contei a história desta cena, mas peço licença para voltar lá, àquele momento em que Joan Crawford está ao piano, e se ouve a voz desolada de Peggy Lee – é o filme Johnny Guitar, de Nicholas Ray e, se me perguntassem que canções da história do cinema eu mais recordo, certamente que “Johnny Guitar” estaria entre as cinco primeiras na voz de Peggy Lee (que nasceu em 1920), tal como “Fever”, “For Every Man there’s a Wooman” (de Benny Goodman, com cuja banda trabalhou), “Golden Earrings”, “It’s All Over Now” ou ‘You Don’t Know’, que às vezes oiço em modo de repetição. Não se limitou a cantar – essas canções (que ampliaram a vida do jazz) escreveu-as mesmo. Casou quatro vezes e divorciou-se outras tantas, nunca desistiu da sua imensa graça e vontade de viver (chegou a atuar em cadeira de rodas) nem de uma sensualidade raríssima que ecoava pela sua voz, bem humorada apesar dos dramas que viveu e dissimulou. Morreu há vinte anos, em 2002, como uma grande, poderosa e melancólica voz da América que ainda é bom conhecer. A voz de Peggy a cantar “Johnny Guitar” é eterna.
Da coluna diária do CM.
Não, não gosto particularmente de “Arrastão”, a canção (de Vinicius e Edu Lobo) que, é unânime, parece ter lançado Elis Regina em 1965 e foi citada por Bob Dylan – mas sou fã dos seus primeiros discos, rock da época, inocente e dançável, de entre 1961 e 1964. E da voz nasalada, constipada, sensual, que transporta duas das canções de sempre, “Águas de Março” e “Uma Casa no Campo”. É essa doçura que está na sua versão de “Por Toda Minha Vida” (podem dizer que é “Só Tinha de Ser com Você”), uma das canções desse disco imortal que é ‘Elis e Tom’, de 1974. Musa brava da música brasileira, Elis emprestou uma energia rara à melancolia carioca da bossa nova – deu-lhe a força gaúcha, decisiva e combativa. Elis Regina (1945-1982) morreu há quarenta anos, assinalados hoje, e continua a ser extraordinário ouvi-la cantar “O Bêbado e a Equilibrista” (1979) ou “Se Eu Quiser Falar com Deus” (de 1980). Morreu trágica e inutilmente aos 36 anos. Quando a oiço na rádio, 40 anos depois da sua morte, penso sempre nessa canção, “Uma Casa no Campo”, como um amor que nunca ficou completo nem escrito.
Da coluna diária do CM.
Os nossos “comentadores culturais” andam ocupados em traduzir as obsessões americanas e inglesas numa novilíngua exótica e mal articulada, a paranoia atual das burguesias urbanas. Por isso, a recente recolha de textos de Michel Houellebecq, Intervenções (Alfaguara) passou quase despercebida, tirando uma boa cobertura do Expresso – e, do que se disse, ressalto a ligeira vergonha por Houellebecq existir e ser publicado. Foi assim com livros como Submissão (sobre o islamismo radical francês, foi publicado no dia dos ataques ao Charlie) ou Serotonina, e acredita-se que será assim com o seu novo romance, Anéantir (Aniquilar), em que se imagina a campanha das eleições presidenciais francesas de 2027. São 740 páginas de caricaturas brutais da Europa e da França, em que as glórias da democracia hão de inventar manobras dignas de Putin para se perpetuarem no poder. O livro será publicado no final da primavera em Portugal – e é um colosso de ironia, mas nunca de ligeireza e de banalidade. As reações serão espalhafatosas e preconceituosas, como se espera. Mas o retrato do perigo está lá, mesmo sem a desculpa da pandemia.
Da coluna diária do CM.
Há uma história deliciosa que me enche as medidas, e creio que todos nos recordamos do princípio dela – quando Harry e Meghan Markle conversam, diante das câmaras de televisão, com Oprah Winfrey no jardim de uma mansão em Montecito, Califórnia. A casa, que compraram por 15 milhões de dólares, é o pequeno arranjo do casal; ela, que veste um casaquinho primaveril, queixa-se de uma palavra que pode passar por comentário racista feita pelo sogro; ele, aos 36 anos, queixa-se do corte na mesada. O parlapié é delicioso: falam de “viver autenticamente”, e o cenário ajuda, porque a mim me parece o de um jardim de uma vivenda na Malveira, com galinhas a vaguear entre os canteiros e restos de comida num prato. De repente, ela recorda-se do tempo em que era uma atriz medíocre, e deixa rolar duas lágrimas diante de Oprah – uma lágrima na televisão vale ouro e pode compensar o corte na mesada e o cacarejo dos animais, que até podem ser substituídos com vantagem por patos de plástico. Está consumado o corte com a família que ficou em Windsor, rodeada de retratos e garrafas vazias: não mais serão duque e duquesa – não mais, ai de nós – mas apenas um jovem casal em busca de fortuna e que arrecadam uns cobres a vender segredos de alcova. Na América, o “ativismo” local, as atrizes da Califórnia e o partido democrata, acharam a coisa absolutamente divina.
Na semana passada, no entanto, Harry e Meghan queixaram-se de o príncipe não receber proteção policial quando estiver no Reino Unido. Estavam ofendidos, como acontece geralmente com as pessoas da sua geração, porque tudo as ofende: um corte na mesada, um comentário pateta, um vestido fora de moda, a falta de proteção policial, a deferência, coisas que os impedem de “viver autenticamente” e lhes rouba o apetite. Republicanos entre as galinhas gordas da Califórnia, mas duque e duquesa para outros efeitos.
Da coluna semanal do CM.
Camilo José Cela (1916-2002) morreu há vinte anos e foi um dos maiores escritores espanhóis do século XX. Não teria lugar na Espanha de hoje, porque ele era de outro mundo – truculento e pícaro, valdevinos, meio vadio, desafiador, tão vanguardista como conservador. Este foi também o seu trajeto político: censor do regime, as suas obras foram censuradas e impedidas de serem publicadas. Um personagem como este, tonitruante e meio ator, não podia ser verdadeiramente amado – eu acho brilhante o autor de A Colmeia (1951) ou de A Família de Pascual Duarte (1942), e gosto especialmente de Mazurca para Dois Mortos (1983), que tem um arranque maravilhoso. Viajante por Espanha em Viaje a la Alcarria (1948) e Del Miño al Bidasoa (1952), imagino-o de botas e de mochila às costas, muito antes de ter sido marquês e senador, imaginando como ia escrever o absolutamente notável e barroco Rol de Cornudos (1976). Prémio Príncipe das Astúrias em 1987 e Cervantes em 1995, foi Nobel em 1989. Dá-me sempre gozo vê-lo criticado por motivos políticos – porque ele foi, de facto, um grande escritor.
Da coluna diária do CM.
Tirando Shakespeare, nenhum autor me dá tanto prazer representado no palco como Molière. Peças como A Escola de Mulheres, O Misantropo e O Avarento (maravilhosas), Médico à Força, O Doente Imaginário (sua derradeira e dramática interpretação, durante cuja interpretação viria a morrer), Tartufo, Don Juan, Casado à Força, O Burguês Fidalgo, O Cornudo Imaginário, a lista completa é infindável – mas dá conta do génio de Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673), seu nome verdadeiro. Contemporâneo de Racine, La Fontaine ou Corneille (e de Luís XIV), Molière contrariou a corrente mais clássica da dramaturgia anterior e emprestou à língua francesa o favor do seu génio. Fez rir. Era um sátiro em palco (porque foi um grande ator). Era um sátiro como autor; um colecionador de vícios, tiques, medos, horrores, traumas e hipocrisias da época – e de todas as épocas. Isso não retirava um pingo de generosidade às suas personagens (até ao ponto de ficarmos a amar as mais ridículas), um tom de beleza às suas críticas. Passam amanhã, sábado, 400 anos sobre o nascimento deste génio.
Da coluna diária do CM.
Há algum tempo, para avaliar a riqueza de um país, algumas organizações internacionais admitiram considerar uma estimativa, já não sobre a chamada “economia informal” ou “paralela”, mas também sobre a “economia ilegal”, ou seja, negócios do tráfico de droga, prostituição e falsificação de bens. Com frieza e sem critérios morais, a verdade é que se trata de dinheiro que “anda por aí”. Cercada por relapsos que se recusam a vacinar-se, a província do Quebeque, no Canadá, achou que valia a pena fazer uma transposição desse critério. Como em Montreal (onde há recolher obrigatório noturno) o consumo de marijuana é legal para “fins recreativos” e o comércio do álcool está rigorosamente licenciado pelo Estado, os nossos amigos canadianos anunciaram que ambos os produtos – álcool e marijuana – não iriam ser vendidos a cidadãos não vacinados. A medida entra em vigor na próxima terça-feira mas, poucas horas depois do anúncio, já se tinha registado um aumento de cerca de 300% na marcação de vacinas. Não advogo a medida. Mas imagino as formas de chantagem que se poderiam usar em Portugal.
Da coluna diária do CM.
A série Seinfeld termina numa pacata cidade do Massachusetts onde foi aprovada a lei do Bom Samaritano – quem vê um crime e, na medida das suas possibilidades, não intervém, pode ir parar à prisão. Em Matosinhos, um miúdo de 12 anos foi triturado por um colega mais velho por causa de desavenças nas “redes sociais”. Não é a primeira vez que isto acontece, mas os seus colegas ficaram a assistir às agressões, que foram graves e levaram o miúdo ao hospital (segundo testemunhas, uma funcionária que tentou acabar com aquilo, já no final, também foi agredida). Mas não apenas se limitaram a assistir como filmaram o episódio e colocaram o vídeo na internet (é a regra imposta pelos rufias nos recreios das escolas). Nada disto nos esclarece mais sobre a natureza humana e o nível de violência praticado pelos adolescentes – que é cada vez mais elevado e não tem a contrapartida de um castigo à altura para os pequenos delinquentes. O miúdo agredido foi, como disse, parar ao hospital; ficou em casa no dia seguinte; irá mudar de escola, provavelmente. A injustiça da violência começa cedo demais.
Da coluna diária do CM.
Durante a pandemia, talvez por estarmos fechados, prestámos mais atenção à forma como a nossa língua é usada – e à forma como certas palavras foram sendo repetidas abusivamente. O termo “novo coronavírus” foi usado até o vírus ser velho. Depois, apareceu a malfadada “resiliência”, usada por tudo e por nada, até perder o sentido (que já não tinha, nem tem). “Achatar a curva” – nem me falem. “Mitigar”, outro veneno. Pelo meio, o uso e abuso de “robusto”, associado geralmente a “bazuca”, e já não refiro as expressões vertidas para Português a partir do inglês, apesar de termos tradução apropriada (“empoderamento” tira-me do sério). Mas, depois do “novo normal”, temos agora “a normalidade” e o “regresso à normalidade”. Embora a ideia me assuste (o Dr. Salazar, que escrevia bem, dizia que o seu objetivo era “levar os portugueses a viver habitualmente”), saúdo o desejo de “normalidade” – uma vida civilizada, discreta, harmoniosa, com certa disciplina, valorizando as coisas simples. Não sei se somos capazes. Oxalá tivéssemos aprendido a valorizar a fragilidade das coisas que temos.
Da coluna diária do CM.
Portanto, no meio disto – um país amável onde os pivôs de televisão nos aconselham a ficar em casa nos confinamentos –, interessam-me os crimes. Há tempos, o CM publicava na net uma atualização periódica dos homicídios cometidos pelas províncias fora. (Ainda lá está, um mapa dos crimes de violência doméstica, vergonha da pátria.) A maior parte deles não caberia num romance policial. O crime “de Rosa Grilo, do triatleta e do amante”, como ficou conhecido, é um retrato dessa contradição do país a dois tempos. Não tem a brutalidade dos assassinos do Meia Culpa, de Amarante, que chocou aquele país que se julgava uma espécie de horta de legumes biológicos e ervas aromáticas rodeada de melros a cutucar nos ramos das oliveiras e a ler epopeias de Saramago. Não tem essa violência; é mal desenhado – um crime de segunda categoria com as costuras à mostra.
Visitei o cemitério onde está o triatleta, perto de Vila Franca de Xira, e o lugar solitário, no Alentejo, onde o corpo foi abandonado com alívio. Tamanha incompetência merecia castigo. Ele corria dez quilómetros diários, aumentando aos fins de semana, duplicando a solidão de Rosa Grilo com mais umas léguas. A casa de família, que passou trezentas vezes na televisão, não dá ideia desse contraste: também há melros e oliveiras em redor, campos verdes e estradas onde só se aventuram ciclistas destemidos (há demasiados declives) – uma família é uma família é uma família. O que me apaixonou verdadeiramente no crime, mais do que as mentiras inábeis, foram as pontas soltas: a pequena aldeia onde eu passaria parte da reforma a beber mazagrãs no pico do verão; um homem apaixonado pelo esforço físico; uma mulher que, no tempo de Balzac, teria a sede e os apetites da sua “mulher de trinta anos”; um espírito salafrário, a falta de dinheiro e os maus negócios de subúrbio. Todos compreendem o cenário – e o enredo. Uma coisa puxava a outra, incluindo a incompetência natural dos homicidas portugueses.
Da coluna semanal do CM.
Francisco Augusto Silva – era assim que devia chamar-se Francis Augustus Silva, nascido em Nova Iorque em 1835, que conheci depois de ver em Madrid (Museu Thyssen) uma das suas paisagens luminosas, amenas, crepusculares, inocentes, quase todas enquadradas pela geografia permanente das suas obras: o rio Hudson, Coney Island, as baías de Rhode Island, as praias do Massachussets, os estuários da Virgínia e de Maryland. Foi uma surpresa. Filho de um barbeiro madeirense que emigrou para a América em 1930, Francis Silva era autodidata; começou por pintar sinalização pública e carruagens atreladas a cavalos; foi soldado mal-comportado na guerra civil americana (1961-1865) e, finalmente, arriscou o amor da sua vida. Paisagens dessas, com baías onde fundeavam pequenos veleiros, arvoredos que inspirariam autores como Ralph Waldo Emerson e Thoreau para o seu ambientalismo inicial. Silva, cujo nome esteve ligado ao movimento do Luminismo Americano, morreu aos 50 anos, em 1886. Na Madeira nunca teria pintado, mas as suas paisagens são de tal maneira belas que merecem ser vistas um dia em Portugal.
Da coluna diária do CM.
Nos comentários televisivos ao debate entre Rui Tavares e André Ventura, ninguém pareceu ligar ao choque com que o líder do Chega anunciou “o caso da arte”, meu Deus, da arte que teremos “de devolver” aos países africanos caso o Livre ganhe um lugar no governo? Naturalmente, com esse tom de escândalo entre o rufião e a sacristia, imaginámos que, embaladas em contentores, seguiriam para Angola ou São Tomé as telas dos Painéis de São Vicente, as de Grão Vasco guardadas em Viseu ou de Josefa d’Óbidos resgatadas algures. Não são, como se sabe. Nisto, a culpa é também dos militantes tolinhos, e dos falsos progressistas de algibeira muito desejosos de serem heróis do anticolonialismo de última geração, que acham que estamos em França ou Inglaterra, que Mouzinho em África era um general de Napoleão a surripiar arte, e que temos de devolver frisos do Pártenon, papiros egípcios, colunas de Creta ou painéis de Xian. Para responder a meias tolices, Ventura achou que valia a pena ser tolo por inteiro. África não se moveu um milímetros; o Museu de Etnologia, coitado, treme de pavor.
Da coluna diária do CM.
É natural que tanto o seu agente como o seu editor de sempre neguem que seja um “cancelamento” – mas a verdade é que não será a Random House a publicar um volume reunindo uma série de escritos de Norman Mailer (1923-2007), entre os quais um em especial, que leva o título The White Negro. Em 1957, quando o texto foi publicado, tornou-se uma referência, pelos bons e pelos maus motivos, nos debates culturais americanos; nele, Mailer associava rebelião, violência e sexualidade à cultura negra (antecipando a cultura rap), mas James Baldwin, por exemplo, escritor negro, não criticou asperamente Mailer por ser um texto racista (não era, pelo contrário), mas por considerá-lo “uma distração” inferior na carreira de um bom escritor. Parece que a expressão “negro” (que em inglês é pejorativa) chocou alguém na editora habitual de Mailer – e o livro será publicado pela Skyhorse, que se especializou em livros cancelados pelo higienismo cultural fascistóide que decorre nos EUA, como as memórias de Woody Allen ou a biografia de Philip Roth, de Blake Bailey. Os palermas juntam-se na censura.
Da coluna diária do CM.
Depois de Emmanuel Macron ter declarado 2021 como “o ano da gastronomia francesa”, o departamento de Ciências Políticas da universidade de Lille lançou um mestrado em BMV. Esclareço: são as iniciais de “boire, manger, vivre”, ou seja, “beber, comer, viver”, trilogia sagrada da cultura francesa. A notícia vem no Le Monde e diz o essencial: os alunos do curso estudarão matérias essenciais da gastronomia e dos vinhos como instrumentos diplomáticos da França (a “gastro-diplomacia”), mas também as novas tendências da cozinha, o ‘umami’ (o quinto sabor), assédio sexual entre os fogões, alimentação bio, vegetarianismo, turismo, agricultura e aquicultura, cafés, etc – e, naturalmente, a superioridade da cozinha francesa (património mundial da Unesco), dos seus magníficos vinhos, queijos e disponibilidade para comer. Sei que estamos no início do ano, e precisamos de boas ideias – esta parece-me não só inteligente como apetecível. Há anos que os franceses conhecem esse trilho, tirando proveito do Michelin. Ensinar as pessoas a ter maneiras à mesa é um primeiro passo para haver ordem no mundo.
Da coluna diária do CM.
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