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Gilberto, herói da novela.

por FJV, em 28.10.21

A série Escrava Isaura foi uma das telenovelas mais conhecidas de Gilberto Braga, e antecedeu histórias como Dona Xepa, Dancin’ Days, Água Viva ou Vale Tudo. Um dos seus sucessos foi a adaptação de O Primo Basílio, de Eça, inesquecível. Muita gente aprendeu a contar histórias com Gilberto – e também com outros génios dessa arte, como Aguinaldo Silva (o de Tieta), Dias Gomes (o de O Bem Amado ou Roque Santeiro) – por sua vez casado com Janete Clair (uma pioneira do género, que criou O Astro) – Walter Dürst (o criador de Gabriela, adaptação de Jorge Amado que inaugurou a nossa vida de telenovela), Walter Avancini, Glória Pérez ou o pioneiro Walter Forster. Não vejo telenovelas desde o início dos anos 90, quando elas se transformaram em pura indústria enlatada e a minha paciência, com a idade, diminuiu. Mas nada disso retira o mérito à escola brasileira de guionismo de telenovela. Gilberto Braga (1945-2021), que morreu na noite de anteontem, não foi apenas um dos autores mais populares – foi também um inovador no género e merece que nos recordemos do seu talento.

Da coluna diária do CM.

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Ópera inclusiva.

por FJV, em 26.10.21

Quando, depois da independência, Samora Machel visitou pela primeira a Ilha de Moçambique, quis ir ao museu local – um belo edifício diante do mar e do antigo molhe – onde deparou com as salas e as paredes vazias. Quis saber o motivo; disseram-lhe que tinham retirado quase tudo porque eram coisas do passado e do colonialismo. Furioso, Machel explicou que um museu era um repositório do passado (entre outras coisas) e exigiu que recuperassem o que ainda se podia reaver. Ultimamente lembro-me dessa história quase todos os dias. A Royal Opera House, de Londres, decidiu submeter o seu repertório a uma cuidadosa análise para verificar até que ponto ele é “inclusivo”, ao mesmo tempo que garante a diversidade, respeita as “sensibilidades culturais” e satisfaz as exigências dos novos públicos. A historiadora e feminista Camille Paglia contava a história de um aluno indignado que interrompeu a aula daquele curso onde estudavam apenas “autores brancos, velhos, heterossexuais e europeus”. Na altura, deu algum trabalho explicar que se tratava de uma aula de estudos clássicos gregos e latinos.

Da coluna diária do CM.

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Picasso.

por FJV, em 25.10.21

Pablo Picasso: 13 obras essenciais para compreender o gênio - Cultura Genial

Gertude Stein

 

O nosso mundo seria muito diferente sem Pablo Picasso (1881-1973). Sem As Meninas de Avignon, sem os seus retratos de Gertrude Stein ou Dora Maar (tão opostos), sem Guernica, naturalmente, sem o Rapaz com Cachimbo, Duas Mulheres Correndo na Praia, As Banhistas, sem a sua representação dos Miseráveis à Beira-Mar, da Família de Saltimbancos ou de Mãe e Filho. Poderíamos fazer uma lista dos nossos quadros preferidos de Picasso (e até das irritações provocadas pela sua sobrevalorização), mas a verdade é que, durante muito tempo, Picasso era sinónimo de “arte moderna”, de “arte contemporânea” – e daquela ousadia de quem assistira ao nascer do mundo, mas também às suas crises de representação, de autoridade e de imaginação. É também por isso que tentou reinterpretar os grandes mestres, desconstruindo-os e reconstruindo-os com uma nova geometria. A partir de 1940, a obra de Picasso abandona radicalmente o figurativo como se “a pintura ainda estivesse para ser feita”, uma frase de 1969. Creio que estava enganado. Por isso é que neste dia assinalamos os 140 anos do seu nascimento.

Da coluna diária do CM.

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John Le Carré em Silverview.

por FJV, em 19.10.21

Continuo a irritar-me de cada vez que, a propósito de Silverview, o romance que deixou para ser publicado depois da morte (e que acaba de ser lançado pela Dom Quixote), se limita John Le Carré à "literatura de espionagem”. Desde o seu primeiro livro, Chamada para o Morto, de 1961 (e também o primeiro onde aparece a sua personagem George Smiley), até Um Legado de Espiões e Agente em Campo, de 2017 e 2019, que a espionagem é o cenário, o motivo e a encruzilhada dos seus livros – ultrapassando as contingências do género e relegando todos os seus rivais e imitadores para posições para lá de secundárias. John Le Carré, que morreu em dezembro passado, completaria hoje 90 anos de idade; a sua obra é pura literatura. génio, talento, invenção, poder absoluto da palavra e das personagens que desenhou com um raríssimo entendimento da arte de contar histórias. Mas não se limitou a contar histórias: inventou um mundo paralelo, cheio de traição, culpa, arrependimento, conflito, amor, perdão. Como poucos, soube ultrapassar a condição das suas histórias e colocar-se a um nível de pura poesia.

Da coluna diária do CM.

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Carmen Mola.

por FJV, em 18.10.21

Em Espanha, o prémio Planeta, 600 mil euros, foi atribuído a um romance de Carmen Mola, best-seller e estrela da ficção policial; os seus livros são populares, a intriga é sempre excelente, as críticas são boas. Nada a dizer. Porém, na cerimónia da entrega do galardão, sexta-feira à noite, soube-se que Carmen era, afinal, um trio de homens – e não, como vem na sua ficha biográfica, a discreta professora que vivia em Madrid com o marido e três filhos, criadora da fantástica personagem da inspetora Elena Blanco, chefe da brigada que investiga os casos mais complicados da polícia espanhola (um sucesso extraordinário com vendas superiores a 250 mil exemplares dos seus três livros). Espanto quase unânime, indignação da militância feminista mais radical (em 2020, o Instituto da Mulher escolhera Carmen Mola para a sua lista de autoras adequadas para “leitura feminista e com perspetiva de género”) e uma livraria que retirou os livros com espavento desnecessário. A lição a retirar da história talvez seja a de que escrever bem não esteja nos genes do género. Se calhar os livros nem são maus.

Da coluna diária do CM.

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Corrigir, corrigir. Bissexual & activista.

por FJV, em 14.10.21

O CM de ontem esclarecia que o Super Homem não só vai ser «ativista» como, além disso, vai ser «bissexual». Nada contra. Estava na cara. Hoje em dia toda a gente é ativista. Do mais anónimo humorista de Montalegre ao mais famoso dentista de Londres, conclui-se o currículo sempre com um «além de ativista». Acontece que o Super Homem já era ativista antes de ser tão insuportável como banal ouvir a palavra «ativista» – basta ver os filmes da série; é um herói comprometido. Quanto à bissexualidade do Super Homem, não me espanta – é uma espécie de condição da sua natureza, tão terreno como extraterrestre, nem jornalista nem inocente. O que me espanta é que, para dar conta de «novas realidades», de «novos desejos» e de «novos comportamentos» (nenhum deles especialmente novo, como se sabe), os criadores da banda desenhada não sejam capazes de criar novas personagens e seja preciso reescrever passado e os seus intérpretes. A verdade é que, geralmente, só no futuro gostamos do passado. Até lá, o que nos chega do passado é sempre uma história para corrigir; não há nada de novo sob a luz do céu.

Da coluna diária do CM.

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Yves Montand.

por FJV, em 13.10.21

Signoret, Montand, Monroe, Miller : France 3 revient sur le 1er scandale  people mondial

Sabendo que vai ser transformado em personagem de uma peça cómica e satírica da Broadway, o francês Jean-Marc Clément, que é rico, milionário e bem parecido, vai ver os ensaios e apaixona-se por uma atriz, Amanda Dell. Podia contar o resto, mas é o essencial de Let’s Make Love (Vamo-nos Amar), de George Cukor; ele é Yves Montand, ela é Marilyn Monroe. Sobre Marilyn não direi mais; sobre Yves Montand (1921-1991), era casado com Simone Signoret, mas teve uma aventura com a americana (e outras, fora do casamento). Aos dois anos, a família fugiu do fascismo italiano e fixou-se em França, na Marselha pobre e descuidada. Aos 17 é já cantor; aos 23 conhece Piaff (com quem tem um romance, à medida dos dois), aos 30 casa com Signoret. A sua voz de ouro é conhecida. Passeia com o partido comunista até visitar a URSS – é já ator, com carreira internacional. Companhia de Sartre, Beauvoir, mas também de Marilyn ou Buñuel. E de Costa Gravas, com quem faz Z, Estado de Sítio e A Confissão. Passam hoje 100 anos sobre o nascimento desta beleza francesa, imortal como um bom patife.

Da coluna diária do CM.

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A moral pública.

por FJV, em 12.10.21

Apanhar uma bebedeira não é bonito, sobretudo pelas coisas que se fazem (e dizem) durante a bebedice. Suponho que quase toda a gente apanhou uma filoxera destas, com a mortificação tripla da ressaca, cheia de arrependimento. Antigamente, descia sobre a bebedeira um manto de silêncio discreto e sem muitas críticas (a não ser que se tratasse de piteira crónica, que merece medicina e tratamento); hoje, há a vigilância moral e a vingança pública. Na semana passada, por exemplo, circularam na net vídeos do ex-presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, e também de um ator, José Carlos Pereira – um em Lisboa, outro em Coimbra. As imagens tinham em comum o facto de os protagonistas estarem alcoolizados. A patrulha de energúmenos que as pôs a circular deve ter sentido um grande regozijo, expondo como um vírus aquilo que pertencia a um foro vagamente privado (as imagens foram captadas em público, distração fatal). O moralismo enche-me de tédio; a vingança moral é um homicídio premeditado; e tudo me parece inveja. É como bebedor ultra-moderado que quase me apetecia mandar um abraço aos dois.

Da coluna diária do CM.

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O festim de loucos.

por FJV, em 11.10.21

Boa parte dos ‘ativistas’ acham que o planeta se salvaria se passarmos a gastar menos água no autoclismo ou se, em vez de frango no forno, passarmos a comer escalopes de tofu. Este é o resumo. A pobreza não os incomoda. Criados na abundância, nunca viveram a penúria, não tiveram de poupar – e consumiram sem limites. Depois de serem ungidos “com a verdade” não conhecem meio termo; a sua religião não admite salvação senão depois da catástrofe. O Presidente da República fez um dos seus discursos mais dramáticos e pessimistas (o do 5 de Outubro) onde assume, oficialmente, existirem 2 milhões de pobres em Portugal. Enquanto isso, o governo anuncia promoção das “classes médias”, que situa acima dos dois euros de salário – a partir desse nível, trata-se de “ricos”. No país que está a vender-se ao metro quadrado e onde a “reabertura da economia” depois da pandemia se traduziu na reabertura dos restaurantes e do turismo, os portugueses ganham cada vez menos e têm cada vez menos voz real. Enquanto se prepara o festim dos loucos do PRR, há muito tempo que não vivíamos rodeados deste silêncio.

Da coluna diária do CM.

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Saudações portuguesas.

por FJV, em 08.10.21

Há uma coisa deliciosa no português informal — as diferentes formas de nos cumprimentarmos. Hoje em dia mantemos as saudações habituais e até nos cumprimentamos com frequência e certa habilidade, tendo mesmo abandonado o péssimo hábito de entrar mudos e calados numa loja, num restaurante – ou numa conversa. Pior do que isso só o mesmo o abuso de cumprimentos com que às vezes somos recebidos numa loja, por exemplo. Uma das coisas que me interessa é a forma como muitas vezes ignoramos as perguntas que nos fazem num cumprimento: perguntamos “olá, como está?” ao mesmo tempo que a outra pessoa nos pergunta “então está bom?” ou, na fórmula mais abrasileirada, “então, tudo bem?” Só que não respondemos à pergunta – é mera retórica e serve como um “bom dia” simpático – e seguimos em frente depois de fazermos idêntica pergunta. O meu avô João, que usava chapéu e o erguia para cumprimentar toda a gente, tinha um método infalível; quando não tinha grande paciência perguntava e respondia ao mesmo tempo: “Muito boa tarde, como está?, bem, muito obrigado, cumprimentos lá em casa, serão entregues.”

Da coluna diária do CM.

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A batalha de Lepanto e a mão esquerda de Cervantes.

por FJV, em 07.10.21

Há uma razão para que Miguel de Cervantes, o autor do Quixote, tenha ficado privado da mão esquerda há 450 anos: “Lá me deram três tiros de arcabuz, dois no peito e um na mão esquerda, para glória futura da mão direita.” Lá, ou seja, na batalha de Lepanto (designação italiana para a grega Nafpaktos), que impôs um travão ao domínio otomano do Mediterrâneo a 7 de outubro de 1751, depois de os turcos terem tomado Chipre aos venezianos em agosto. Nos capítulos derradeiros de Corsários de Levante, a série do capitão Alatriste, de Arturo Pérez-Reverte, há uma descrição da batalha e dos combates que deixaram a água do mar tingida de sangue. Seja como for, a aliança dos exércitos católicos (em Espanha reinava já Filipe II; o sultão turco era Selim II, filho de Solimão, o Magnífico) saiu vitoriosa; a memória de Cervantes não é amarga e o escritor não entra em queixumes: quando compara as armas e das letras, valoriza o heroísmo verdadeiro e não pede subsídios – sobrava-lhe a mão direita, com que escreveu o que tinha a escrever. Passam hoje 450 sobre esse momento de sorte.

Da coluna diária do CM.

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O pessimismo, finalmente.

por FJV, em 06.10.21

Neste início de outubro, Marcelo teve duas intervenções públicas e um discurso à beira da depressão. É claro que a forma mais fácil de ler os discursos do Presidente é relacioná-los com a “política imediata” – para isso serviram as duas intervenções iniciais; uma, respondendo a jornalistas acerca da trapalhada vivida na área da Defesa; a outra, uma entrevista onde castigou duramente a tentação eleitoralista do governo e lançou avisos sobre os seus poderes. Mas, para quem quer cair na armadilha do “otimismo presidencial”, o discurso do 5 Outubro é um modelo de elegância: saudando, a abrir; e falando sobre a sua desilusão, em tudo o resto. Em França, por exemplo, os discursos de Estado (De Gaulle e Mitterrand alguns, mas Malraux em quase todos) têm um peso literário e humano fortíssimo; Marcelo é mais direto (conhece os seus intérpretes, que são simplórios) mas serve-se de ironias – onde fala da necessidade de cumprir sonhos, assinala sobretudo o receio de os falhar. Todo o discurso de ontem, no fio da navalha, é um exercício de combate à erosão. Não se iludam com o otimismo.

Da coluna diária do CM.

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O apagão.

por FJV, em 05.10.21

De repente, Whatsapp, Instagram e Facebook deixaram de funcionar – um descanso durante horas e horas. Como uso frequentemente o Whatsapp, deixei de enviar mensagens mas também pude trabalhar com mais vagar, servindo-me do tradicionalíssimo correio eletrónico. Porém, as “redes sociais” mais populares, o FB e o IG, se me deixaram a mim exatamente na mesma, já colocaram metade do mundo em suspenso: nem fotografias de gatinhos, nem retratos de familiares ou de pratinhos encenados no último restaurante, nem desabafos que – afinal – podem ser guardados durante um certo tempo sem que daí venha grande prejuízo para a humanidade. Como seria a nossa vida sem essas “redes sociais”? Há religiões que ainda decretam e vivem intensamente o seu período de repouso; durante esse tempo, o mundo suspende-se, interrompe-se, descansa – e a natureza humana (já não falamos da outra) parece melhorar substancialmente: nem mensagens de amor falsificado, nem exibicionismo doentio, nem pequenos ou grandes ódios. E, durante este período de silêncio, tudo pareceu mais perfeito, a aguardar as notícias no tempo certo.

Da coluna diária do CM.

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A República.

por FJV, em 04.10.21

Primeiro, a noite das eleições, que torpedeou a política pensada a partir de Lisboa; depois, uma semana de horrores. Pela primeira vez estou curioso sobre os discursos do 5 de Outubro, que todos os anos – juntamente com as outras solenidades, o 25 de Abril e o 10 de Junho – servem para que os líderes mencionem as grandes virtudes cívicas e as sempre renovadas promessas de redenção da pátria. Espero que não falhem, a começar pela defesa de uma justiça (republicana) que trata todos por igual, de cidadãos honestos a ex-banqueiros apanhados nas teias do crime. Também era bom que se mencionasse a exigência (republicana) do cumprimento de promessas feitas durante as campanhas eleitorais, ou a boa (e republicana) administração de empresas públicas (da TAP à pobre CP) que não podem aumentar absurdamente a má fama do Estado. Ou, já agora (invertendo a tradição daquilo que foi a I República), a necessidade de entendimentos para além dos combates políticos. A menos que se siga o exemplo da presidente de Vila do Conde que, como foi derrotada nas urnas, cancelou as comemorações do 5 de Outubro.

Da coluna diária do CM.

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