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Dei com a série por acaso, na Netflix: Encurralados passa-se na Islândia e a sua primeira temporada merece atenção (a segunda já está disponível, mas é outra história): a tensão, que já se sente nos livros de Yrsa Sigurðardóttir ou Arnaldur Indridason (os dois grandes autores de romance policial islandês), é ampliada: num país sem taxa de homicídios (digamos, um por ano), a literatura e a televisão aumentam o “efeito de realidade”, ainda por cima quando o cenário é uma tranquila cidade costeira onde todos se conhecem bastante bem – aparece um cadáver a boiar, sem cabeça nem membros. A investigação policial é lenta, densa, cheia de fantasmas, e cruza-se com as histórias pessoais dos envolvidos (como geralmente acontece). A certa altura, um habitante local diz ao polícia que vem da capital: “Tu não és daqui, não conheces o abismo.” Nessa frase sintetiza-se todo o espírito fantasmagórico de Encurralados: quando a cidade fica sitiada pela neve e pelos homicídios que vão acontecendo, o abismo fica mais visível, mas só os que mergulham na escuridão sabem que ele devora tudo. Bela série.
Da coluna diária do CM.
Eu teria de falar de Anita Ekberg porque me recordo da Fontana di Trevi e de Dolce Vita, o filme de Fellini – ela na água, Marcello Mastroianni a seguir. Fellini faz o resto; já tinha feito, aliás, desde a primeira sequência. O filme é de 1960 e eu ainda não tinha nascido, mas na agenda da minha primeira viagem a Roma estava uma visita à fonte e à memória de Anita Ekberg, essa sueca deslumbrante por quem, naturalmente, me apaixonei. Mastroianni também, no filme. Se fosse viva, Ekberg (1931-2015) completaria hoje 90 anos e reviveria a sua carreira hoje à noite: desde que conheceu Howard Hughes, desde que substituiu Marilyn Monroe numa digressão, ou de como entrou no Guerra e Paz de King Vidor – até chegar a Dolce Vita. Fez poucos filmes, geralmente comédias e policiais. O seu rosto era tão expressivo e o seu ar tão abandonado que o erotismo que exalava era como um abismo de mágoa e de falsa frieza. Não estive na Fontana di Trevi na primeira vez em Roma; os turistas não deixavam apreciar, em paz, o simbolismo do lugar. Tive de fazer cinco tentativas, mas Ekberg nunca estava lá.
Da coluna diária do CM.
Há cerca de dois anos, um instituto de saúde da Califórnia, esse lugar tão interessante para os costumes ocidentais, propôs que se substituísse a palavra “vagina” por “entrada frontal”, a fim de não ofender a comunidade transsexual. Se a leitora acha isto indigno da história dos direitos da mulher e não concorda que “pessoas transsexuais” possam competir nos desportos femininos, lembre-se do que se disse de JK Rowling, a autora da saga Harry Potter, quando se recusou a considerar “mulher” como “pessoa que menstrua” – os seus livros foram boicotados pela vanguarda progressista, foi acusada de transfóbica (até por seres vagamente existentes, como Emma Watson, que deve tudo aos filmes de Harry Potter). Mas os ativistas da política sexual não se entendem: agora, a revista médica britânica The Lancet, uma referência na divulgação de notícias e estudos de medicina, alinhou na linguagem obtusa e, para não ferir suscetibilidades da comunidade trans e não-binária, regurgitou a linguagem progressista na capa do seu último número, definindo mulheres como “corpos com vagina”. Caia uma bigorna.
Da coluna diária do CM.
O que são coisas relativas? Os números dos “estudos”. Por exemplo, foi ontem divulgado (pelo Banco de Portugal) um estudo que conclui que as mulheres têm um nível de literacia financeira mais baixo do que os homens. Porquê? Porque elas têm menos contas de depósito à ordem do que os homens (89% das mulheres face a 93% dos homens, o que não é muito) e também menos “produtos financeiros” além da conta básica. Há aqui um nível de percepção histórico. Durante séculos, a verdadeira literacia financeira não era compreender como se adquirem fundos que produziram catástrofes e falências, mas gerir sensatamente uma casa, uma família, os orçamentos domésticos ou as despesas “do casal”. Elas foram sempre mais ponderadas e as falências foram orquestradas por homens que tinham boa “literacia financeira” e conhecimento de “investimentos infalíveis”. É como dizer que os homens cozinham melhor do que as mulheres – ignorando que já lá vão 40 séculos (imaginemos, por baixo) em que elas ficaram aprisionadas na cozinha e os machos, grandes ‘gourmets’, de paladar sofisticado, vinham sentar-se à mesa.
Da coluna diária do CM.
Livros que aguardamos há muito – e que se leem numa noite. O de Maria Filomena Mónica sobre Eça e Ramalho (Uma Estranha Amizade, Relógio d’Água) é um desses casos. A dupla é estranha, como diz MFM: são personagens de diferentes mundos cujos destinos, para a maior parte de nós, se cruzaram nas páginas do Mistério da Estrada de Sintra e depois nas Farpas, e daí em diante. Mas não é assim. O assunto inquietou muitos leitores, sobretudo de Eça – de cujo lado estavam o talento, o sofrimento, o sopro literário propriamente dito. Também não é verdadeira a ideia de que, fora isso, se tivesse tratado de uma amizade leal; Ramalho pode ter sido o apoio de Eça em muitos momentos, mas não resistiu a traí-lo aqui e ali. Sim, Ramalho sucumbiu ao ciúme e ao cansaço, e Maria Filomena Mónica persegue-o com aplicação, mas procurando ser justa. Onde Eça é talentoso e vibrante como uma chama inquieta, Ramalho cede: na política, nos hábitos, na independência. Ramalho é extravagante (e um belo autor de literatura de viagens) e tenso como um dândi do Porto, mas não resiste ao despeito e à duplicidade. É uma história imperfeita.
Da coluna diária do CM.
Domingo passado, no CM, João Pereira Coutinho escrevia que “a obediência portuguesa” é um dos nossos defeitos mas pode gerar coisas estimáveis como uma taxa de vacinação mundialmente invejável. Tem toda a razão. É uma sorte para as autoridades, que podem mencionar o sucesso da operação – cujo rumo teve de ser corrigido depois de iniciado com o habitual perfume de catástrofe anunciada. Essa “obediência portuguesa” foi uma qualidade durante a pandemia, quando as diretrizes mudavam da noite para o dia e de uma semana para a outra; habituados a desconfiar do Estado e da sua desordem, os portugueses preferiram o bom senso, percebendo de onde vinha o perigo. Esta é, aliás, uma característica amável do país, retratado como patife manhoso tanto nas peças de Gil Vicente como nos romances de Camilo. Salvos do desastre, os políticos dão-lhe em troca mexericos nos impostos e uma campanha eleitoral bandoleira, enquanto acenam com dinheiro a rodos e a repetição de velhos hábitos da classe possidente – como a ostentação e o festim. Os portugueses acenam que sim. Sábios e malandros, vão aproveitando.
Da coluna diária do CM.
Ao ler as páginas de Na Poeira do Tempo (Editora 4 Estações) vejo como tive a sorte e a felicidade de conhecer Mário Mendes Moura – e como tenho pena de não ter convivido mais com ele. Aventureiro, viajante, homem de todas as profissões (de criador de mobiliário a agente de viagens ou fabricante de perfumes, percorrendo vários países, de Campo de Ourique ao Brasil passando pela Venezuela, pelo Canadá, a lista seria grande), mas fundamentalmente editor, amante de livros e de ideias para os fazer, e homem livre e independente, absolutamente incapaz de não se deixar guiar pelos seus sonhos. Aos 96 anos, neste livro, Mário M. Moura mostra um pouco das suas memórias, desde a juventude, com o país então cercado pela ditadura, até ao seu regresso já na década de 80 para criar editoras aqui. Está lá o essencial: o espírito livre, o nomadismo, o sentido do risco, o gosto em viver, certamente – mas também o retrato de um homem que inventava livros (fundou e dirigiu mais de uma dezena de editoras) e com quem seria uma alegria perigosa e contagiante fazê-los. O Mário é um perigo ambulante.
Da coluna diária do CM.
José-Augusto França tinha a idade do século (nasceu em 1922) mas isso diz pouco sobre o seu e nosso tempo. Quando era estudante, habituei-me a vê-lo no pátio da faculdade, simpático, atento, cordato como um cavalheiro, carregado de livros e pastas – e fui assistir a três aulas do seu mestrado de História de Arte. Na época, a Gulbenkian preparava uma grande exposição de Amadeo, e José-Augusto França parecia um navio flutuando naquele exercício de recordação e homenagem: nunca vi ninguém ser tão claro, tão profundo, tão incisivo e tão sábio sobre a obra de um pintor. Como quando falava de Lisboa (a quem dedicou, além do doutoramento, outras obras luminosas) ou quando escrevia sobre o surrealismo (a cujo movimento esteve ligado). Os seus dois livros sobre a arte portuguesa – nos séculos XIX e XX – são indispensáveis em qualquer biblioteca, como referência, guia, pêndulo que nos permite dar um passo adiante na melhor das companhias: ter lido um sábio. Mas, mais do que isso, um ficcionista cheio de humor, graça, arte, fina observação. O adeus a José-Augusto França vai demorar. É uma presença eterna.
Da coluna diária do CM.
O cerco que uma dúzia de negacionistas da Covid19 e inimigos das vacinas montou a Ferro Rodrigues, enquanto almoçava tranquilamente com a sua mulher, é um ataque abjeto, injustificável e sem escrúpulos. Imaginar um mundo em que os titulares de cargos políticos têm de viver como foragidos porque há sempre loucos à solta não é, porém, um pesadelo recente e não se pode confundir com o direito de protesto. Na década de 60 estes ataques tornaram-se moda como uma forma de ‘contracultura’ e muita gente achava gracinha a espatifar tartes na cara de políticos ou a insultá-los em lugares públicos. Este tipo de agressividade e de violência foi acarinhado aqui e ali (Pedro Passos Coelho foi vilmente atacado com o beneplácito de muitos políticos e era sempre um festim para as tvs) com uma jovialidade hipócrita. Mas o negacionismo, que já entrou na esfera dos problemas de saúde mental (o ataque ao almirante Gouveia e Melo foi um exemplo), produz estes espetáculos em que o pior do género humano (o insulto soez) se junta ao irracional (o desprezo pela ciência). Como um desprezível festim de loucos.
Da coluna diária do CM.
Decorreu anteontem em Nova Iorque o habitual ‘freakshow’ da Met Gala, um desfile de moda que, além de comportar um certo número de extravagâncias, faz salivar e ulular uma larga percentagem de comentadores especializados em palermices e 'ativismos'. A “vida dos famosos” passou a ser à sua imagem: doentia e grotesca. Chego a ter saudades dos bons e velhos tempos em que as candidatas a Miss Mundo se declaravam a favor “da paz e de um mundo melhor” – hoje não só têm pior aspeto como declaram apenas querer salvar as martas, recomendar bagas goji e melhorar o mundo diminuindo a frequência do duche. Alexandria Ocasio Cortez, a mais sonora das representantes esquerdistas no Congresso, compareceu na festa com um vestido onde estava estampado “taxem os ricos”, o que é uma bela ideia para um ajuntamento em que uma entrada custa 35 mil dólares e uma mesa cerca de 100 mil – que os ricos doam para um museu. Junto disto, a nossa bela Joacine Katar Moreira é apenas uma entertainer inofensiva que recita os apontamentos do curso de antropologia depois de retirados os erros ortográficos. Estou a gostar.
Da coluna diária do CM.
Há 700 anos, a 14 de setembro, morria Dante Alighieri (1265-1321), não só o poeta nacional italiano, e emblema de Florença, onde nasceu, mas um dos mais influentes autores na história da literatura ocidental (no pódio com Shakespeare ou Cervantes). A Divina Comédia, escrita ao longo de quase vinte anos, não só inventou a língua italiana vulgar, por não utilizar o latim, mas representa, na sua perfeita geometria e na sua organização rigorosa, uma espécie de cosmovisão mística, alegórica e moral do final da Idade Média, com a sua visão do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Jorge Luis Borges considerava-o o mais perfeito de todos os livros – mas seria uma injustiça esquecer Vida Nova (prosa e poesia, religião e erotismo subtil) ou a generalidade dos poemas recolhidos nas Rimas. O mínimo que se pode dizer sobre a sua vida atribulada – feita de exílios e ambição, de guerra, conspiração e paixões – é que acompanha a violência, a luz e o deslumbramento da época de modo a chegar-nos como uma aventura da própria literatura em busca de um autor. 700 anos depois, Dante parece vivo.
Da coluna diária do CM.
Ontem, no Twitter, Miguel Monjardino escolheu o Adágio de Samuel Barber como a música que devia acompanhar as cerimónias fúnebres do presidente Jorge Sampaio. Não poderia concordar mais – a densidade e a solenidade da música de Barber (1910-1981) seriam uma despedida comovente e acertada para um homem como Sampaio. Muito se disse dele sobre ser um “homem bom” e não vale a pena repetir aqui essa evidência. Sampaio foi talvez um dos últimos representantes dessa burguesia lisboeta (de onde vinham os “homens bons” de Fernão Lopes), culta, humanista, comprometida mas sensível às coisas comuns, liberal nos costumes e valores, cosmopolita, valorizando a leitura e as artes tanto como as tradições e a possibilidade de reunir os contrários. Nas despedidas, devemos valorizar o que nos une, se nada do que nos separou foi tão trágico que torne impossível a memória. Mas Sampaio foi também a prova de que para exercer cargos políticos não é apenas necessária uma competência política – mas que deve ser também convocada uma humanidade cada vez mais rara nestes tempos. É isso que todos recordaremos.
Da coluna diária do CM.
A província do Ontário, no Canadá, é a terra de Alice Munro, Prémio Nobel da Literatura, ou de Margaret Atwood, que podia ter sido. Mas também é a terra onde em 2019 – só se soube agora – foram retirados das bibliotecas cerca de 5000 obras “que perpetuam estereótipos” e são hoje consideradas moral ou politicamente incorretas, incluindo álbuns de Tintin, Astérix ou Lucky Luke, além de muita ficção indiscriminada e enciclopédias. Para assinalar a bela ideia, o Conselho Escolar Católico Providence, que agrupa 30 escolas, organizou mesmo uma “cerimónia de purificação pelas chamas”, queimando alguns livros “que têm imagens negativas de povos indígenas”. O que se obteve em troca? Enterrar “as cinzas do racismo, da discriminação e dos estereótipos” a fim de caminhar “para um país mais inclusivo”. A responsável pelo festim acrescentou, otimista: “As pessoas entram em pânico e ficam chocadas com a queima de livros, mas estamos a falar de milhões de livros que são realmente condenáveis e perigosos.” É uma ideia e tanto. Mas, infelizmente, já não caem picaretas do céu quando precisamos delas.
Da coluna diária do CM.
Por contrato, o futebolista Neymar vai receber cerca de meio milhão de euros mensais para não ser antipático com os adeptos do PSG, a quem deve mostrar “cortesia, pontualidade, amizade e disponibilidade”. Em resumo, Neymar recebe 6 milhões anuais só para não ser antipático nem discordar – em público, pelo menos – da direção do clube. Outro negócio bem menos vistoso está a ser feito em São Francisco, na Califórnia: o município vai passar a pagar 300 dólares por mês a potenciais delinquentes (que se devem inscrever e ser entrevistados) para não cometerem crimes com armas de fogo. John Smith, imaginemos, abster-se-á de atingir a tiro um concidadão, recebendo em troca 300 dólares através de um cartão de compras. Ideias novas e arriscadas são sempre absurdas à primeira vista, mas não parece haver muitos californianos pacíficos a quererem fazer-se passar por pistoleiros só para receberem uns dólares. Já no caso de Neymar, que é um rapaz simpático, ele fingiu ser antipático para que o clube lhe pague seis milhões para fingir ser simpático. Por 300 dólares nem uma perna levanta.
Da coluna diária do CM.
Acredito que dor maior talvez não exista – que a de perder um filho. Revivi, de longe, o luto e a perda de outros pais, mas nunca conseguiria falar do que isso significa. Fazer “literatura” sobre o assunto seria uma tentação poderosa porque pensamos resolver tudo com as palavras – esquecendo que elas perdem o sentido em determinadas circunstâncias. Foi por isso que assinei a petição da Associação Acreditar (e convido todos os leitores a fazê-lo em https://www.
Da coluna diária do CM.
Uma pessoa diz: um dos meus rostos preferidos, o de Belmondo – cómico, sério, patife, vagabundo, melancólico, triste, divertido. Que cara ele tinha. E que filmes (isso explica que estivesse sempre na lista de realizadores como Renoir, Truffaut, Vittorio de Sicca, Resnais, Melville, Godard, Lelouch). Volto ao rosto de O Acossado (À bout de souffle, 1960), de Jean-Luc Godard, onde tem a companhia de Jean Seberg num filme que funciona como um emblema do novo cinema francês dessa grande década; ou a Pierrot, Le Fou (1965, do mesmo Godard). No meio do chamado “cinema comercial” (uma designação muitas vezes injusta), não é possível esquecer Borsalino, onde faz dupla com Alain Delon. Há belezas estranhas e duradouras no cinema, e Jean-Paul Belmondo é por certo uma delas, mas inesperada e contraditória, tanto quanto o seu rosto e tanto quanto a sua voz. Talvez por isso, em Duas Mulheres. La Ciociara (1960), que é um filme amargo, de Vittorio de Sicca, Belmondo quase se escondia atrás de Sophia Loren, que encarna aquela imperdível beleza impura. A sua morte é também o adeus a uma era.
Da coluna diária do CM.
Há coisas que, talvez por causa da idade e da falta de paciência para coisas estapafúrdias, já não discuto – e sobre as quais não tenho opinião senão a de que há no livro da vida um capítulo designado “escolhas individuais”. Entre elas estão as opções sobre religião ou sexo. Tudo o resto é vida em sociedade. Portanto, é-me indiferente, para efeitos práticos, que Paulo Rangel seja gay ou heterossexual. Tão indiferente que nunca necessitaria de explicações – mas as que Rangel entendeu dar são de uma tal elegância e civilidade que podem bem acrescentar ao perfil do homem político uma dimensão humana e inteletual apreciável, exemplar e a respeitar. Não o acham assim os ativistas de esquerda para quem não há nenhuma “opção individual” que não suponha uma “opção política”. Assim, só poderá ser gay quem é de esquerda e alinha na agenda política do ativismo LGBTQI. Este ‘ativismo’ vigilante anda de braço dado com o reacionarismo mais extremo: exercem chantagem, detestam a liberdade e a autonomia individuais, odeiam os espíritos livres. É por isso que Paulo Rangel deu uma lição importante.
Da coluna diária do CM.
Já estou, digamos, a terminar a leitura do livro de memórias de Francisco Pinto Balsemão (Porto Editora). São mil páginas de interesse muito desigual. Teria de ser. De vez em quando, percebe-se a sua sensibilidade para o ínfimo detalhe (sobretudo quando quer dar uma alfinetada, recorda-se de um pequeno pormenor que nos faz sorrir); de vez em quando, abusa desses pormenores; de outras vezes, sobrevoa os acontecimentos e não se detém em momentos cruciais – mas esta é a sua memória do seu tempo, a forma como leu a passagem dos anos e das mudanças, como se recorda dos outros (e quem recorda ou quem esquece), como ajusta contas (porque há sempre contas a ajustar), como corrige um episódio ou como pretende ser recordado por nós, seus leitores. Mas isso é outro tema. Precisamos de mais livros de memórias portuguesas; pessoas que desempenharam papéis de destaque na vida pública devem-nos esse testemunho; não é sinal de vaidade ou egocentrismo; pelo contrário, é uma espécie de “prestação de contas”, um legado para a nossa memória comum – ou, até, a continuação do debate por outros meios.
Da coluna diária do CM.
A alteração do interior do Museu Romântico do Porto, instalado na Quinta da Macieirinha, foi anunciada como um dia de glória: “O espaço despiu-se dos adereços de casa burguesa oitocentista e vestiu-se de contemporaneidade.” Esta é uma tendência geral de alguma da nova museologia – ou centrar-se na “contemporaneidade”, ou associar-lha como uma espécie de “relação indispensável”. Basicamente, é como se não pudéssemos ver Rembrandt sem lhe estabelecer uma relação com o nosso tempo, como se não pudéssemos ver Soares dos Reis sem o confrontar com a escultura de hoje, ou como se não pudéssemos visitar um Museu Romântico oitocentista sem o povoar de arte contemporânea. Este horror à História e à contemplação do passado é uma marca das “burguesias cosmopolitas”, muito dadas às artes “decorativas” e “contemporâneas”. Julgando-se o centro do mundo, despovoam-no da passagem do tempo. Justamente, o que caracteriza o tão “fora de moda” Museu Romântico é ser uma “casa burguesa oitocentista”, longe da contemporaneidade e da sua lógica. Os protestos contra esta mudança têm toda a razão de ser.
Da coluna diária do CM.
Muito mais do que “alhear-se da realidade”, “indiferença” é ter a nítida impressão de que tudo vai ser igual. Recomendo que se leiam três dos números que sobressaem dos barómetros CM/Intercampus da semana. Há cerca de 60% de portugueses que, independentemente da inclinação do seu voto, acham que as eleições deste mês têm um vencedor antecipado. Serão os mesmos 64,5% de portugueses que duvidam da eficácia transformadora da “bazuca europeia” (uma designação desprezível)? Ou os mesmos 60% que consideram que o dinheiro dos novíssimos fundos europeus vai beneficiar sobretudo quem tem boas ligações ao poder político? Poderíamos pensar que esta maioria absoluta da opinião pública mostra a enorme resignação a que se chegou, bem como a natureza da própria indiferença nacional, que diz até que ponto se pode capitular por falta de fé nos homens e nas instituições. Mas convém apreciar o cinismo da amostra: recapitulando a história do último século, os portugueses mantêm-se na sua – não se deixam levar facilmente e acham que as coisas são como são, duvidando da bondade humana e das suas promessas.
Da coluna diária do CM.
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