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Uma crónica precisa de espaço. Tem princípio, meio – e de vez em quando terá final. Releio, saltitando, as crónicas de António Lobo Antunes (As Crónicas, Dom Quixote) e vejo como aqueles textos precisam de respiração. Ainda bem que estas foram escolhidas e reunidas em novo livro, retiradas de cinco livros anteriores. Há, em quase todas, um vagar que comove; poucas devem ter sido escritas com isto de estar preso à realidade – algumas, as menos pessoais, podem ser parte de um romance, um esboço de personagem, o desenho a lápis de uma casa, o eco de uma conversa, a recordação de um miúdo doente, da filha que acaba o namoro ou de um velho que não aprendeu a calar-se. Lobo Antunes escreve as crónicas e manda-as respirar, “que respirem agora”, e elas respiram. São retratos. São disputas sobre o espaço em redor; às vezes pequenas lições de arquitetura, de outras vezes pautas onde uma música começa a ouvir-se, ou apenas as primeiras gotas de uma chuva de verão. Para lê-las precisamos também de respirar. Nada de pressas, nada de sofreguidão. Uma crónica é um escritor sentado sobre o tempo.
Da coluna diária do CM.
Não sei se conhecem Ryan Tedder; eu também não conhecia. Trata-se do autor de vários hits dos últimos 20 anos, interpretados por Paul McCartney, Beyoncé, Adele, Ed Sheeran ou Taylor Swift e escuso de explicar mais. Ele queixa-se (veio na imprensa britânica) de que todos os dias há cerca de 60 mil novos temas a serem incorporados no Spotify e que isso é uma ameaça aos novos músicos e autores de pop. Este é um mundo que me ultrapassa, mas parece que na lista dos discos mais vendidos em 2021 apenas quatro álbuns são novos e quem ganha são Queen, Abba, Oasis, Elton John ou Fleetwood Mac. A tendência não é de agora: há três anos, os álbuns mais vendidos eram dos Queen e dos Beatles. Isto preocupa muito os produtores musicais, que foram ouvidos no parlamento e se queixaram amargamente de os novos músicos terem de competir nas plataformas de streaming com Frank Sinatra ou Bob Dylan, uns empatas que não saem do ouvido. É um pouco como se nos queixássemos da abundância de livros nas bibliotecas por impedirem o aparecimento de mais autores. Quem diria que Eça e Cervantes ainda se lêem.
Da coluna diária do CM.
Um funeral cabo-verdiano é coisa de nota. E o de Cesária, há dez anos, não podia ser diferente, no meio daquele calor fatal do Mindelo, ilha de São Vicente. Depois de sair da igreja, o desfile teve vários quilómetros, parando aqui e ali, ao longo das ruas, para ouvir alguém cantar – amigos de sempre, cantores de agora, recordações que ficavam. Mas, além de cantar e de tocar, havia quem bebesse (muito), quem chorasse, quem trauteasse apenas, em surdina, uma das suas canções. Não fiquei para a noite, que foi longa, celebrando a memória de Cesária. A “rainha da morna” (com perdão dos outros géneros que Cesária Évora cantou) merecia todas as homenagens – e hoje, que passam 80 anos sobre o seu nascimento, a recordação da sua despedida é agora amável e tranquila. Ao lado de vozes como Bana ou Ildo Lobo compõe uma espécie de trio amoroso de Cabo Verde. Se B. Leza tivesse vivido mais tempo, decerto teria escrito para ela, tal como o próprio Eugénio Tavares – mas a forma como Cesária cantou os poetas e o mar azul de Cabo Verde faz supor que cantou por todas as vozes do arquipélago.
Da coluna diária do CM.
Abre hoje a Feira do Livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII. Durante três semanas será uma espécie de grande livraria a céu aberto, onde podemos ir comprar o que nos escapou ao longo de um ano atribulado – e deixar a nossa homenagem ao livro em si mesmo, ou seja, aos valores que fazem de nós pessoas com uma civilização, um alfabeto, uma língua e uma memória. Podemos pensar nos chineses que inventaram os caracteres móveis, bem como a tinta e o papel (coisas que têm, portanto, mais de mil anos); nos romanos que alimentavam a sua ambição política fundando bibliotecas (imagine-se a diferença em relação a hoje!); nos papiros que foram destruídos em Alexandria; nos antigos livreiros que conheciam cada título que vendiam nas suas lojas; em Cervantes, Eça ou Shakespeare; no velho cheiro de chumbo e tinta que pairava sobre as páginas de um livro acabado de imprimir. Essas imagens, esses nomes e essas memórias fazem-nos humanos. Emprestam-nos o dom da palavra, que é flutuante como a vida. Em certos recantos da Feira, esse dom estará presente durante estas semanas. Flutuando como poeira.
Portanto, segundo creio, levantou-se um sururu. A ideia de que um texto escrito em meados do século I (S. Paulo escreveu na década de 50 ou 60) atravessou 2000 anos transportando uma “verdade literal” é absurda – sobretudo porque Paulo escreveu para o seu tempo e não para o mundo que havia de vir. São seus os primeiros textos do cristianismo, em grego, anteriores aos próprios Evangelhos que narram a vida de Cristo. Nesta matéria há sempre duas decisões absurdas: a de seguir literalmente as “propostas de vida” ou “leis” dos livros da Bíblia, como se a História tivesse sido suspensa até hoje – e a de criticar essas propostas à luz do nosso tempo, como se o passado existisse em função de nós. Pior ainda é quando, no afã de alargar a mensagem cristã, se treslê o texto bíblico (“Que a mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. Não admito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem; mas sim que se mantenha em silêncio.”) para colocar autores de há vinte séculos como “precursores da igualdade de género” – conceito que não existia, porque é uma criação da humanidade que procura melhorar, tal como ao cristianismo coube também fazer, mesmo em relação às mulheres. Este confronto entre dois absurdos não produz um debate mas um combate de surdos, como convém à berraria. Acontece que S. Paulo, que teve uma vida extraordinária, é um autor maravilhoso, apocalíptico, profético, radical, vivendo sobre perguntas tão complexas como o seu tempo. Não pensava como nós; nós não pensamos como ele.
Como o nome indica, o teatro Globe, em Londres, dedica-se a representar a obra de William Shakespeare. A nova produção de Romeu e Julieta não quer não ferir a sensibilidade dos espectadores. Assim, no programa há vários avisos (cito do folheto): “No final, quando Romeu bebe veneno, e o ator vomita e entra em convulsões. Isso não é real – e não, o ator não está ferido.” Ou: “Há uma luta no palco. A violência, no entanto, não é real e não deve ser imitada. Há sangue no palco – mas não é real.” Os responsáveis dizem que as pessoas são facilmente impressionáveis e, como “ativistas” de “saúde mental”, querem acautelar os espectadores mais impressionáveis. Ou seja, dizer-lhes que as tragédias de Shakespeare têm, por exemplo, tragédias – e que há histórias de amor que terminam mal. O mundo está infantilizado com esta gente. Provavelmente, quando representarem Júlio César dirão não querer ofender pessoas que se traumatizem com assassinatos e, com Hamlet, avisarão que a aparição, em sonhos, de um velho rei morto não é real e não deve ofender pessoas com pesadelos. Pobre Shakespeare.
Da coluna diária do CM.
Parece seguro que o poeta Federico Garcia Lorca terá sido fuzilado nas colinas da serra de Alfaguara, Granada, na madrugada de 18 de agosto de 1936 – passam hoje 85 anos – por um bando franquista, ou seja, logo no início da sublevação contra a República. Acusações: homossexualidade, espionagem para a URSS e, naturalmente, estar do outro lado da barricada. Foi uma das primeiras e numerosas vítimas da guerra civil espanhola, e a sua morte mancha para sempre a história do país. Poeta maior do século XX, recordaremos de Lorca (1898-1936) a beleza da sua poesia, sempre em busca de raízes na natureza, de amor e de uma espécie de concordância com a música (está traduzida em português, nomeadamente por José Bento, mas também Eugénio de Andrade e Vasco Graça Moura). Dramaturgo, é autor das Bodas de Sangue, de A Casa de Bernarda Alba, Yerma ou Dona Rosita, a Solteira, ou a Linguagem das Flores, todas de primeira linha. Toda a sua obra é um pilar da sensibilidade e da harmonia espanhola – e a sua morte é um acontecimento trágico de que provavelmente Espanha ainda não recuperou.
Da coluna diária do CM.
A história do Afeganistão repete-se com uma regularidade assustadora. Depois da ocupação britânica (descrita por Eça de Queirós), da soviética (que marcou o fim do império mal os tanques regressaram a casa) ou da americana (que mostra os EUA consagrados aos seus interesses mais próximos), o Afeganistão volta ao ponto de partida: um enorme território controlado pelo fanatismo local e namoriscado pelos inimigos do “Ocidente” (a Rússia e China à cabeça). Como em política externa não há valores, mas interesses – como ensina a História –, o Afeganistão nas mãos dos talibãs é uma espécie de ‘caso perdido'. O problema é que, para a “consciência ocidental”, que julgava arrumadas essas questões depois de encerrados os capítulos do Estado Islâmico e dos atentados terroristas na Europa (a imprensa fecha os olhos ao que acontece em África), e de limitada a pandemia, o mundo vai agora passar por uma nova e inesperada desorganização. Como geralmente não sabemos como vai ser o futuro e somos ignorantes em relação ao passado, o bater de asas de uma borboleta em Cabul vai sentir-se por todo o lado.
Da coluna diária do CM.
Hoje, já ninguém lê Walter Scott (1771-1832) – e, provavelmente, poucos se lembram do seu nome. Talvez se recordem de alguns filmes que povoaram o preto e branco da televisão (Ivanhoe deu para tudo), ou da ópera de Donizetti, Lucia di Lammermoor, inspirada por um dos seus livros. Mas, ao longo do século XIX, foi um dos autores mais populares pela Europa fora. Marx apreciava-o bastante (apesar de Scott ser conservador – mas Balzac também o era) e influenciou obras, personagens e estilos de autores tão diferentes como Júlio Verne, Emilio Salgari ou o nosso Alexandre Herculano. Como uma sombra, é referido por todos – mesmo pelos que nasceram com as suas leituras e depois o desprezaram. Beethoven, Schubert ou Berlioz adaptaram poemas seus – mas Ivanhoe, Rob Roy ou O Espelho da Tia Margarida tiveram uma longa vida nas edições portuguesas. Reavivou o interesse pela história medieval escocesa e pela própria Escócia. Scott foi o emblema do chamado romance histórico. Passando hoje 250 anos sobre o seu nascimento, recordemos o pai do interesse iluminista pelo passado.
Da coluna diária do CM.
Se esta crónica tivesse título, a de hoje seria “elogio do tomate coração-de-boi”, com hífens à antiga portuguesa. Normalmente, há um festival do tomate coração-de-boi na Folgosa, à beira do Douro (foi adiado para 2022) – a última edição foi ganha por uma quinta de Jerusalém do Romeu, na Terra Quente transmontana – os concelhos de Moncorvo, Foz Côa, Armamar, Vila Flor, Mirandela, Macedo, Carrazeda ou São João da Pesqueira têm as melhores prestações. O tomate coração-de-boi não deve ser comprado em supermercados, onde se parece com uma bolsa pastosa e farinhenta produzida em estufa: precisa de calor do sol, de espaço e de água, e tem de ser procurado nos mercados e nas feiras de rua, ou nos produtores sérios. Suculento, ligeiramente sumarento, é uma espécie de “carne da horta”, um dos produtos mais nobres do verão português. Ontem, na minha terra (no Pocinho, na Taberna da Julinha), comi um, magnífico: apenas com azeite e grãos sal, cortado aos gomos, sem mais nenhum tempero, e com bom pão por companhia, é um festival inteiro. É o meu elogio para esta sexta-feira.
O primeiro filme que vi numa sala de cinema (antes, na minha aldeia, os filmes eram projetados numa parede branca do adro da igreja) foi A Ponte do Rio Kwai, de David Lean, para seguir as façanhas heroicas de William Holden e Alec Guinness. O segundo foi Cantinflas, o Professor, com Mario Moreno. Minto; era com Cantinflas, propriamente dito – recordo que era a história de um professor desastrado e apaixonado, que metia dó ouvir dizer barbaridades de que todos ríamos na plateia. Cantinflas foi sempre assim: desastrado, apaixonado, a dizer coisas que faziam rir; uma personagem única do cinema, vinda do México desses anos 40 e 50, representando aqueles a quem o próprio Cantinflas roubou os tiques: os pobres, os que tinham de enganar a fome e de ludibriar os poderosos, os bem falantes (por isso ele é tão trapalhão, rindo-se deles e obrigando-nos a rir). Ganhou um Globo de Ouro com A Volta ao Mundo em 80 Dias, ao lado de David Niven, a incursão de Mario Moreno (1911-1993) em Hollywood. Passam hoje 110 anos sobre o seu nascimento. Ficam aquele bigode, o riso e o ar trapalhão.
Da coluna diária do CM.
O Brasil cansa. Mas devia ser uma lição – é o retrato de um país que, para escolher uma expressão local, podia “dar certo”. Mas, tirando períodos muito raros e especiais (como o da recuperação económica e modernização do Estado, protagonizado por Fernando Henrique Cardoso, 1995-2003), não deu. Produziu um grupo de ricos e poderosos e uma multidão assustadora de pobres, políticos corruptos e imprestáveis, juízes de asilo, regionalistas reacionários e tribais, populistas abjetos – o último deles, Bolsonaro, transformou-se rapidamente numa espécie de asno encartado, obtuso e absurdo (como tudo prometia). O mesmo país onde vivem ou viveram Chico Buarque ou Amado, Érico Veríssimo ou Tarsila do Amaral, Niemeyer e Portinari ou João Gilberto e Jobim, tanto como heróis loucos e trágicos à medida de Getúlio Vargas ou o seu imperador triste, assistiu ontem à ameaça de um desfile militar em Brasília, uma coisa estranha e desusada em democracia. Mas o Brasil conseguiu reunir, sem espanto, uma esquerda anquilosada e uma canalha reacionária e populista. A beleza do país não merece este destino desafinado.
Da coluna diária do CM.
Quando Mao lançou anunciou a revolução cultural proletária em 1966, um dos objetivos era o de destruir as formas e memórias culturais anteriores a 1949 (o nascimento do regime comunista) – bem como os intérpretes desse passado: professores, monumentos e arte sob qualquer forma. Sobrou pouco. Os Guardas Vermelhos vandalizaram o que puderam. A estratégia do ativismo dos dias de hoje não é muito diferente: o passado é todo pecado e é necessário apagá-lo, destruí-lo, combatê-lo e, se tudo falhar, reinterpretá-lo à luz da “verdade única atual” (mas sem ouvi-lo). Vandalizar os monumentos, ou abatê-los e retirá-los, como no Reino Unido e nos EUA, é uma das formas de atuação da nova revolução cultural. Em Portugal, os ativistas limitam-se a fazer grafitis a meio da noite. No caso do Monumento dos Descobrimentos em Belém, optaram por uma frase cheia de erros de inglês, para dar conta do seu cosmopolitismo galipão. Eu, que nem gosto especialmente do monumento, começo a achar-lhe graça depois dos textos jaculatórios do deputado Ascenso Simões ou do ataque anónimo deste fim-de-semana.
Da coluna diária do CM.
O ensino do Latim (já não falo do Grego) tem má reputação entre nós, o que é uma pena – tivemos um governante, em tempos, que lhe atribuiu feições “elitistas”. A verdade é que o seu estudo não beneficia apenas quem quer ler a Eneida, a prosa de Cícero e a poesia de Ovídio – hoje sabemos que os efeitos positivos se estendem ao estudo do Português e da História, naturalmente, mas também à Matemática, às ciências, à filosofia e a nós mesmos e a nossa cultura. Em Inglaterra iniciou-se já uma experiência piloto no ensino primário e, a partir de 2022, será reforçado na faixa entre os 10 e os 16 anos. A ideia, diz o diploma, é estender e democratizar o estudo do Latim por todos, acabando com essa ideia imbecil de que se trata de uma área para “elites”. Em Portugal, onde as “elites” são especialmente ignorantes, a estratégia na educação é a de fazer esquecer os estudos de Latim (ao contrário de Itália, Espanha ou Alemanha e França) e de criar mais analfabetos. Pessoas ignorantes ou limitadas no seu mapa de conhecimentos são muito úteis para os medíocres. Já é altura de discutir isto a sério.
Da coluna diária do CM.
Passam hoje vinte anos sobre a morte de Jorge Amado (1912-2001). É tempo para ter alguma distância – e para reconhecer que foi um dos grandes autores da nossa língua comum. Na verdade, ele é bom – retirando a habitual tralha do “realismo socialista” publicada entre 1931 (data do seu primeiro romance, O País do Carnaval) e o final da década de 50, quando escreveu Gabriela, Cravo e Canela. A última dessas peças é o habitual resumo das suas viagens pelo mundo comunista, um livro sem importância em que festejava a URSS e a Albânia (O Mundo da Paz, de 1951). Depois, Amado desertou do estalinismo e escreveu livros memoráveis (se bem que Mar Morto, de 1936, mereça estar nessa lista), cheios de beleza e sensualidade. Além de Gabriela (1958) há o fantástico Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966, o seu melhor livro, uma pérola), Tenda dos Milagres (1969) e Tereza Batista (1972). Amado era de uma grande leveza e bom humor traquina, de uma simpatia genuína – que hoje seria sovado pelos polícias do espírito. Nesta data segue um abraço (e uma caipirinha com maracujá) para Jorge Amado.
Da coluna diária do CM.
Quando Oscar Wilde foi preso, acusado de indecência e sodomia, circulou uma carta a favor da sua libertação. Um dos que a não assinou (a par de Henry James ou Émile Zola) foi o Jules Renard: “Assinaria de bom grado se ele desse a sua palavra de honra de que não voltaria a pegar numa caneta.” Estávamos em 1895. A frase é cruel (digna de Wilde, aliás), mas o “combate literário” ultrapassava as fronteiras dos mimos obrigatórios de hoje, quando “todos” se sentem ofendidos com quase tudo, incluindo a sua sombra. Por pura gentileza de cavalheiro, Eça nunca chegou a publicar a carta em que chamava burro a Camilo – mas ela existe. Ontem, por curiosidade, li um site que se entretém a compor uma lista de escritores que “nunca mais devem ser lidos” depois de conhecidas as indignidades cometidas por cada um deles; de Victor Hugo a Isaac Asimov, de JK Rowling a Mark Twain ou a Tolstoi, Roth e Flaubert (e Wilde!, que era “cruel”), há “ofensas” para todos os gostos: uma palavra, um rumor, uma ideia. No futuro seremos todos bonzinhos, higienizados, sem polémicas nem atritos. Como uma melancia.
Da coluna diária do CM.
Volto aos Jogos Olímpicos (ontem falei deles a propósito de histórias de beleza e superação) para mencionar os comentários cheios de lágrimas que, por sua vez, festejam as lágrimas dos outros. Ficou moda – e a moda das lágrimas não é agradável, cria uma espécie de “obrigação para a hipersensibilidade”, tal como a recusa em chorar criava a ideia de uma “masculinidade” forçada. Assistimos hoje à valorização da hipersensibilidade e da ideia de que o triunfo só é valorizável se for acompanhado de uma história de “justiça social” que sirva de exemplo. Ora, o exemplo sempre lá esteve. Ao contrário do que peroram os “ativistas sociais” (gente da universidade e da classe média), há trinta, quarenta anos, todas as vitórias continham uma história de superação social e de combate contra o destino. Foi assim com Eusébio e Pelé (heróis do futebol de rua) com Zatopek ou Mark Spitz, Joaquim Agostinho ou Sergei Bubka, Carl Lewis ou Lars Viren, Gebrselassie ou Obikwelu, Fernanda Ribeiro ou Naide Gomes – que nunca tiveram brigadas de profissionais do choro a festejá-los ou a lamuriá-los.
Da coluna diária do CM.
Histórias de superação e de beleza, é assim que resumo algumas prestações dos Jogos Olímpicos. A beleza de Patrícia Mamona, evidentemente (como tinha sido a de Naide Gomes [na foto] – jantei uma vez na sua mesa, e na de Nelson Évora, e não esqueço). A do sorriso de Auriel Dongmo. A do humor de Jorge Fonseca. A da dança permanente de Telma Monteiro. No entanto, Portugal está tão estupidificado que, nas redes sociais, qualquer vitória é aproveitada para discursos de viés moralista e político. Há cerca de dez anos, o diário El Mundo fez uma sondagem sobre os espanhóis mais consensuais e admirados, onde Iker Casillas e o então príncipe Felipe ficaram no topo, destacados. Duvido que se conseguisse qualquer consenso em Portugal. Pelo discurso dos políticos no poder e na oposição, e dos seus apaniguados, incapazes de um gesto de grandeza; pelo discurso dos seus capangas, cheio de ressentimento, incapazes de admirar um atleta, um escritor, um presidente, um humorista – se não for em nome desse mesmo ressentimento de pobres de espírito. Adoramos macaquices, mas estamos incapazes de admirar a grandeza.
Da coluna diária do CM.
Não sei se se lembram do filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog, com Klaus Kinski – que interpreta o papel de um homem que, entre outras coisas vagamente loucas, quer construir um teatro de ópera nos confins da Amazónia. E levar Enrico Caruso a cantar nesse palco – já agora, uma lenda idêntica à que também animou os portugueses que fundaram e geriram o Teatro Amazonas, em Manaus (o filme aponta para Iquitos, no Peru). Seja como for, Caruso (1873-1921) nunca foi à Amazónia (sim, foi apenas ao Rio de Janeiro) mas poderemos considerá-lo “o maior cantor de ópera de todos os tempos”. Nascido em Nápoles, o tenor é uma espécie de ícone da ópera italiana na viragem do século XIX para o XX: são absolutamente famosas as suas interpretações (estão gravadas) de fragmentos de Verdi, Puccini, Donizetti, Gounod, Massenet ou Leoncavallo, mas também Wagner. Na Europa mas sobretudo na América, Caruso entrou como uma espécie de monumento brilhante no estrelato da música e, para todos, o seu nome significa mesmo “ópera”. Morreu cedo, aos 48 anos – passam hoje cem anos sobre o seu desaparecimento.
Da coluna diária do CM.
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