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Não sei o que os deputados do BE e os do PS (à exceção de Sérgio Sousa Pinto, Marcos Perestrello, Jorge Lacão e Ascenso Simões, que votaram honradamente) viram de maravilhoso no célebre artigo 6.° da chamada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Bom, talvez veja. À esquerda, incluindo a Dra. Joacine e o Dr. Louçã, há uma grande vontade de controlar a imprensa e as redes sociais (já o têm escrito, pedindo vigilância e mordaça), ungidos na sua missão de melhorar o mundo à força e decidindo como ele vai ser quando apanharem os cacos. O PS, é inexplicável — tirando aproveitar o serviço de antigos estalinistas e bolcheviques da moda, e irem colaborando com os bulldozers deste tempo, atribuindo “selos de qualidade” e vigiando jornalistas relapsos. Já o Dr. Rio, coitado, ai dele, quer é acabar com a pouca vergonha e os insultos na internet, essa desgraçada. Que tudo isso seja censura e o reconhecimento de que “a lei não basta” (é preciso mais, sempre mais), não lhes importa. Têm à sua disposição um país servil que nunca deixou de apreciar os magarefes. Estão bem uns para os outros.
Da coluna diária do CM.
Gosto muito de despachos onde aparece a palavra “concomitantemente” – ainda por cima quando têm origem naquilo que outrora se chamava “Ministério da Educação”. Depois da coluna de ontem, alertado por professores e algumas boas almas que continuam a insistir em que é possível um bom sistema de ensino público em Portugal, fui ver melhor o que era o Despacho n.º 6605-A/2021 de 6 de julho passado, onde aquilo que noutro tempo se chamava “Ministério da Educação” decide que deixam de existir metas curriculares, programas educativos, planos de estudo no Básico e no Secundário – e tudo se reduz às Aprendizagens Essenciais e à assim chamada "estratégia nacional de Educação para a Cidadania”. Vexame e embaraço. Que aquilo que antes se chamava “Ministério da Educação” despache isto, não me espanta: a ideia é destruir o sistema educativo e fazer a escola à sua pequena medida. Mas ouvindo ontem o debate do Estado da Nação percebi que estamos sozinhos; nenhuma das abéculas falantes se ergueu para denunciar este enxovalho a professores, educadores, famílias – e estudantes. Que belo salazarismo.
Da coluna diária do CM.
Há uns tempos, o PETA, aquele grupo radical de “defesa dos animais” incitou-nos a, quando quiséssemos insultar alguém, não usar nomes de animais – como “porco”, “galinha”, “escorpião”, etc. Por exemplo, um antipático “tubarão” dos negócios não devia ser chamado tubarão porque isso ofende os tubarões. Ao ler a imprensa australiana reparo que há uma campanha para acabar com o uso da palavra “ataque” em referência aos tubarões (uma espécie com 450 milhões de anos), como se ele fosse um assassino, optando por “interação” (um dos mais aguerridos militantes da campanha, aliás, não é biólogo mas linguista). Um dos “ativistas” diz que é importante mudar a linguagem porque isso “ajuda a melhorar a compreensão das pessoas acerca dos tubarões” – e num congresso local defendeu-se o uso do termo mais suave “mordida” (“bite”) em vez de “ataque” para falar de “encontros prejudiciais com tubarões”. Ou seja, quando não conseguimos mudar o curso da natureza, mudamos a linguagem. Ficamos felizes. Se o leitor tiver uma “interação com um tubarão” sempre pode dizer que tudo não passou de um desentendimento.
Da coluna diária do CM.
Finalmente. De entre os novos emojis para os telemóveis, haverá um para homens grávidos – o símbolo agora divulgado é o de um homem de bigode com uma barriga proeminente, como se tivesse consumido demasiada cerveja. Mas não: trata-se de um ser humano transgénero (pregnant person), não-binário, que tem a possibilidade de engravidar e de deixar crescer o bigode, tal como já existia o emoji inclusivo de uma mulher com barba – um avanço civilizacional. A lista de novos emojis inclui 15 apertos de mão com tonalidades diferentes de pele para que ninguém se sinta ofendido ou excluído. Não se pense que isto é novo; no século XIV, autores eminentes falavam da necessidade de inventar pequenos símbolos desenhados nas páginas dos manuscritos para exprimir emoções que a escrita complicava. Claro que na altura não havia homens grávidos, o que diz bem do horror dos tempos em que a gravidez estava vedada a pessoas de bigode que, para terem barriga devidamente dilatada, tinham de beber a má cerveja daquela época de trevas em vez de se dedicarem à procriação. Nada que uma tolice não resolva.
Da coluna diária do CM.
Lucky Luke deixou de fumar em 1983, e trocou o cigarro enrolado por uma palhinha inútil e sem graça. Tirando isso, é o mesmo personagem, desenhado e imaginado por Morris (1923-2001), aliás Maurice de Bevere, o belga a quem devemos cerca de 70 histórias de Lucky Luke, o cowboy mais solitário do faroeste. O ‘Maurice’ francês pronuncia-se aproximadamente como o ‘Morris’ angloamericano. É certo que, no mundo das personagens de ficção, só o detetive Hercule Poirot, de Agatha Christie, teve direito a um apontamento necrológico na primeira página do The New York Times – mas Lucky Luke merecia; toda a vida de Morris foi consagrada às histórias desta figura magra, de poucas palavras mas de muita confiança, que se consagrou também a perseguir os irmãos Dalton e a escapar aos desastre do cão Rantanplan. Para ajudá-lo teve René Goscinny (que também escreveu as aventuras de Astérix). A nossa memória da banda desenhada de adolescência passa por muitas das histórias de Lucky Luke, o cowboy que disparava mais rápido do que a sua sombra. Morris morreu há exatamente 20 anos, assinalados hoje.
Da coluna diária do CM.
Em junho, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução sobre “o direito do povo cubano de exigir a democratização do seu país através de um diálogo com a sociedade civil e a oposição política”. Os eurodeputados do PS votaram contra. Não me espanta a “radicalização” das burguesias que apreciam as revoluções da América Latina – desde que estas lixem a vida dos pobres e não lhes entrem porta dentro. Saber isso enche-me de horror e penso em escritores cubanos no exílio, presos e perseguidos, como Zoé Valdés, Cabrera Infante ou Reinaldo Arenas, vigiados e ostracizados como Virgílio Piñeira ou Lezama Lima, ou declaradamente contrários ao regime, como Leonardo Padura – que não contariam com a solidariedade destes apaniguados da ditadura, para quem o sofrimento do povo cubano não conta, desde que a sua traição à liberdade lhes permita assobiar o folclore da Bodeguita del Medio, do “Che”, do mambo e da vulgaridade. Retomo as palavras de Arturo Pérez-Reverte, escritas anteontem: apoiar o regime cubano revela “muitos interesses turvos, muito ranço político e muito pouca vergonha”; há gente assim.
Da coluna diária do CM.
Talvez falando de séries de televisão eu tenha mais sorte. Não sei se viram – mas podem recuar na HBO e assistir a uma das séries mais esquizofrénicas sobre a relação entre a justiça e o crime financeiro, Billions, com o sempre brilhante Paul Giamatti, o neurótico Damian Lewis ou a enigmática Maggie Siff. Mas isso nem é o mais importante destas cinco temporadas (60 episódios exibidos originalmente entre 2016 e 2020 – e vêm aí mais 12). O resumo é este: há uma luta fatal e permanente entre um procurador (Chuck Roades) e um investidor bolsista (Bob Axelrod). O tom neurótico é dado pela proliferação de dinheiro (um pouco como em O Lobo de Wall Street, mas sem os excessos barrocos de Martin Scorsese), pela acumulação de milhões (fala-se de dinheiro como qualquer coisa que só admite multiplicação) e pela existência de um bem e de um mal cujas fronteiras se esbatem e confundem com o tempo. Num país pobretanas ou remediado, como o nosso, as primeiras páginas de ontem eram uma soma de milhões desaparecidos. Sem a classe da série Billions, é certo – mas com idêntica fúria criminosa.
Da coluna diária do CM.
A pátria gosta de canalhas e cafajestes, de malandretes e jogadas para lá dos abismos da moral. Só isso explica a impunidade com que muitos maraus chegam ao topo na política, no atrevido “mundo dos negócios” mas, sobretudo, no da popularidade – “que esperto que ele foi”. Num país dominado por velhas elites que se reproduzem nos picadeiros familiares, quase em incesto, os patifes – para subirem – aprendem depressa a lição. Safam-se, mas quase sempre acabam mal. Ler Camilo, por exemplo, é muito útil. O país cabe nas Novelas do Minho ou no Eusébio Macário, dois livros que funcionam como catálogo de personagens que encontramos todos os dias nesse universo: na política, no “mundo dos negócios” – e “na bola”, um universo que durante décadas se alimentou de ilegalidades e ardis abjetos, mas que sempre foi desculpado. Uma rede de poderes tentaculares aliada à impunidade de gente que não se recomenda – lamentavelmente, foi esse o quadro durante as várias décadas democráticas. A linguagem dos cafajestes muda, sim – tal como as suas alianças. Mas tudo continua lá, como um veneno sem antídoto.
Da coluna diária do CM.
Eu vi Barbara Cartland (1901-2000) – passou à minha frente, a cerca de metro e meio, vestida de cor de rosa, com um enorme chapéu que não escondia o cabelo prateado, olhando para um ponto indefinido lá à frente. Ela era, para a vida editorial da época (estávamos no final dos anos 80), “a rainha do romance” – não tinha rival para histórias de amor e cavalheirismo, ligeiramente picantes mas cheias de moral (e vice-versa), antigos militares (murmurava-se sobre a sua relação com Lord Mountbatten), mulheres corajosas e cheias de passado pecaminoso tanto quanto de bons sentimentos, corridas de cavalos, duquesas, infidelidade e divórcios, castelos, famílias cheias de segredos e o que entra na lista do género. Apenas em 1976, aos 75 anos, escreveu 23 livros – um recorde para juntar à lista dos 720 títulos da sua bibliografia onde, além de romances populares cor-de-rosa, há também biografias, auto-ajuda, cozinha e poesia, e de que vendeu cerca de mil milhões de exemplares. Morreu aos 99 anos; hoje, por sua vontade, completaria 120 e daria uma bela festa com champanhe e muita má-língua.
Da coluna diária do CM.
Não bastou a Mark Twain ter denunciado atrocidades do racismo e do colonialismo (está publicado em Portugal o seu Solilóquio do Rei do Congo, imperdível) – era preciso tê-lo feito com o linguajar de hoje. Por isso, os seus Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn foram retirados de escolas americanas por usarem “linguagem racista”. Não bastou a Harper Lee ter escrito o maravilhoso Não Matem a Cotovia, um dos grandes livros da literatura americana (de que se fez o filme com Gregory Peck), denúncia brava do racismo – foi agora retirado de uma escola escocesa que pretendia “descolonizar” a sua biblioteca: o livro apresenta o racismo do ponto de vista “dos brancos”, e isso não é suficiente, além de usar “linguagem racista”. A facilidade com que se usam palavras como “racista” ou “racismo” e “colonialismo” nas chamadas “guerras culturais” levará a que um dia ninguém lhe ligue. Chegou o tempo de ripostar contra esta febre fascista e revisionista com que a esquerda radical ameaça inquinar e aniquilar a relação com elementos decisivos da nossa cultura, memória e sensibilidade.
Da coluna diária do CM.
Tendo, como tenho, muitas dúvidas sobre a instituição de quotas e de discriminação positiva de comunidades por raça ou género, pergunto-me (depois de passar uma tarde inteira em salas de espera de hospitais) onde estão estas pessoas representadas: asiáticos vindos da Índia ou da China, gente do Médio Oriente ou de África, brasileiros ou europeus do Leste — não no futebol ou na música, mas na política, por exemplo. Ao passar uma vista de olhos pelas listas de candidatos às autárquicas, qualquer um vê que esse défice de representação se deve sobretudo aos partidos políticos — não como “bandeiras da moda” (repetindo banalidades da bolha académica), mas em nome de pessoas reais que fazem os nossos bairros urbanos e suburbanos, as nossas escolas e empregos de gente invisível que paga os seus impostos e se integra, mal ou bem (mas sobretudo bem) no país onde vive. A lengalenga sobre migrantes não pode fazer esquecer essas pessoas reais, de várias origens, batalhadoras, que os partidos deviam também ouvir. Não, não é preciso mais uma lei — só mais inteligência e uma visão deste país.
Da coluna diária do CM.
É uma das canções da minha vida: «Parlami d’amore, Mariú», em napolitano, cantada por Vittorio De Sica (1901-1974). Estamos nos anos 30, e De Sica é então ator – e canta maravilhosamente. Canções de amor e comédias italianas sobretudo. Até que uma década depois começa a realizar os seus próprios filmes; em 1948 faz Ladrões de Bicicletas, ícone do chamado «realismo italiano» e Óscar de melhor filme estrangeiro; Duas Mulheres adapta o romance La Ciocciara, de Alberto Moravia, com Sophia Loren e John Paul Belmondo; Ontem, Hoje e Amanhã’ reúne Sophia Loren e Marcello Mastroianni (novo Óscar para melhor filme estrangeiro em 1964), e é com essa mesma dupla que no ano seguinte faz o igualmente divertido Casamento à Italiana e depois O Último Adeus, com argumento de Tonino Guerra; coroa glória, é ele o realizador de O Jardim Onde Vivemos em 1970, que adapta o belíssimo romance O Jardim dos Finzi Contini, de Giorgio Bassani – com um elenco inesquecível: Dominique Sanda, Helmut Berger ou Fabio Testi. Passam hoje 120 anos sobre o nascimento de Vittorio De Sica; é um grande dia.
Da coluna diária do CM.
Com o seu talento e capacidade de trabalho, Balzac escreveria uma comédia sobre o “caso Berardo”, com um final de farsa. Tem tudo para cumprir as exigências de um enredo dessa natureza: personagens, que vão do mais chique ao mais ‘rastaquouère’ (o que significa pessoas de riqueza e luxo suspeitos e de mau gosto manifesto), e dinheiro, que havia a rodos e distribuído com magnanimidade e canalhice. O que Berardo fez, fez à vista de todos, com o beneplácito de todos, o aplauso de todos (a começar pela banca e pelos políticos, e a terminar na elite das artes contemporâneas) – aqui entre nós, não enganou ninguém que não quisesse ser enganado. A “arte” lavava tudo, tal como uma história mal contada sobre sucesso, smokings e relações duvidosas. O país apreciava uma pessoa destas (e das que foram a sua guarda pretoriana na arena política), com um rasto de glamour cheio de sotaque e impertinência, que tratava as ministras por baby. O país tem um gosto marialva pelos pequenos patifes, que exalta com gosto. Sabe que vão cair – quando isso acontece, todos são moralistas e dão vontade de rir.
Da coluna diária do CM.
Nascido sob o signo do neo-realismo, e sendo um dos seus estandartes, Carlos Oliveira ultrapassa as limitações e a ortodoxia daquela escola; aliás, não há autor cuja obra tenha chegado aos nossos dias que não tenha saltado o muro para outras referências (Urbano Tavares Rodrigues fê-lo de forma muito acentuada entre nós, tal como Jorge Amado no Brasil). A partir dos anos 60 seria impossível manter a lógica do “realismo socialista”, e a derradeira obra de ficção de Carlos Oliveira, Finisterra (de 1978), é uma desconstrução do espírito do próprio romance tradicional, talvez porque fosse essa a única forma de escapar à quadratura ideológica. Infelizmente, à inevitável desatualização do neo-realismo seguiu-se uma espécie de “limpeza” dos seus autores, o que é uma pena para nomes como Manuel da Fonseca, por exemplo, e mesmo para esse romance quase arqueológico, Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. Seja como for, Carlos Oliveira, que escreveu Casa na Duna (1943) ou Uma Abelha na Chuva (1953), além de uma poesia hoje esquecida, morreu há 40 anos – assinalados hoje. Devemos lê-lo.
Da coluna diária do CM.
Ninguém consegue ter uma “relação fácil” com José Berardo – nem mesmo o Estado que, pela mão dos mesmos protagonistas de sempre, lhe abriu as portas e valorizou o património. Protocolo sobre protocolo, acordo sobre acordo, Berardo viu o Estado ao seu alcance quando percebeu que a coleção de arte contemporânea, que formara como um bom investimento pessoal, lhe permitia (com dinheiros públicos) valorizar uma marca com o seu nome. Por isso, durante muito tempo, fazer perguntas ou colocar em questão a forma como se estabeleceu essa teia de cumplicidades, trânsitos e favores ou privilégios, era “atacar a cultura portuguesa”. Berardo ria das suas próprias malandrices – e com gosto. Sabia o que tinha feito e como estavam feitos “os protocolos”; tudo estaria a salvo, desde que o Estado mantivesse o desejo de ter uma coleção de arte como a sua, que era única, e que ele não largaria. A cultura, que lava mais branco, serviu durante muito tempo para esconder as manobras em torno da guerra pelo BCP com dinheiro fornecido pela CGD e pelo BES – e todos os folhetins adjacentes. E vai continuar.
Da coluna diária do CM.
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