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Passam hoje 100 anos sobre o nascimento do francês Frédéric Dard (1021-2000). Há duas décadas, o nome de Dard ainda seria conhecido dos leitores da coleção Vampiro – mas hoje os seus leitores serão uma espécie de raridade. Mas o mais importante da sua carreira literária é assinado por um pseudónimo (usou cerca de 15), San Antonio. Os livros com o comissário San Antonio (incluindo os que têm o seu adjunto Bérurier como protagonista) totalizam 175 títulos, publicados entre 1949 a 2001, e são uma espécie de excesso na linha de Peter Cheyney ou Mickey Spillane: detetives duros, sordidez, violência, humor, obsessão sexual (existem pelo menos 90 posições sexuais atribuídas ao comissário), vulgaridade, submundo e enredos delirantes. Nos anos 60, os livros de San Antonio atingiam os 200 mil exemplares vendidos, mas em 1981 chegaram aos 600 mil – e a criatura acabou por devorar o criador. Frédéric Dard publicou outros livros (romance, ensaio, teatro), além dos policiais interpretados e narrados por este comissário burlesco, mas não tiveram, nem de longe, sucesso aproximado.
Da coluna diária do CM.
Tentamos, a todo o custo, salvar o planeta, embora não haja paciência para os sermões diários e repetitivos acerca do assunto. De cada vez que aparece uma contribuição generosa para evitar aumentar a “pegada de carbono” e reduzir o aquecimento global, alinhamos com a sensação de estarmos a ser “boas pessoas”. Atrizes e “pessoas famosas” de todo o mundo economizam na água do autoclismo, na higiene menstrual, no papel que consome, na adoção de uma dieta sem carne (0,8 toneladas por ano de redução nas emissões de carbono), na lavagem da sua roupa em água fria (0,3), na recusa em viajar de carro (2,4) ou de avião (2,8) – bom, talvez as “pessoas famosas” não insistam neste último ponto, até porque têm de se mostrar em conferências em defesa do planeta e viajar para lugares exóticos. Investigadores da Universidade de Lund, Suécia, acabam de publicar um estudo sobre esta escala de atitudes “amigas do planeta”; nele demonstram que "não ter bebés” ou, pelo menos, ter famílias muito reduzidas, corresponde a reduzir as emissões de carbono em 58,6 toneladas. Vamos conversar sobre o assunto.
Da coluna diária do CM.
O militantismo radical enche-me de piedade – e, ao mesmo tempo, de um grande tédio. Não há dia em que não apareça alguém na televisão, na rádio, na imprensa, a esclarecer-me sobre como me devo comportar para ter uma vida “mais sustentável”, seja na cozinha, ou na forma como levo o lixo para o contentor de reciclagem, na escolha dos sapatos que uso, dos livros que leio e, suponho, na forma de dormir ou de me sentar num jardim. Eu concordo com tudo, desde que não me venham com sermões e ginástica moral – é uma espécie de pregação que se dirige não tanto à assistência (nós, pobres incautos que atravessamos a rua) mas ao desejo dessas pessoas em mostrarem como são boas, perfeitas, exemplares em moral e isentas dos pecados veniais da civilização. Lembram-me muito o personagem de A Costa de Mosquito, o filme com Harrison Ford (que agora foi adaptado a uma série na Apple-TV) a partir do livro de Paul Theroux, que arrasta a sua pobre família para a floresta hondurenha a fim de viver no “paraíso” – e se transforma num chato inenarrável e suicida. O problema é que as Honduras ficam longe.
Da coluna diária do CM.
Há 30 anos, salvo erro, os estudantes do secundário sabiam quem era Nicolau Tolentino de Almeida (1740-1811, passam hoje 210 anos sobre a sua morte) e sorriam ao ouvir o soneto que começa por “chaves na mão, melena desgrenhada”, em que a mãe quer saber do paradeiro de um colchão e acaba por descobri-lo no toucado da filha (“Arremete-lhe à cara e ao penteado./ Eis senão quando (caso nunca visto!)/ Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...”) – é uma sátira aos enormes penteados da época. 30 anos depois, os estudantes do secundário não sabem quem é Tolentino, um dos grandes génios cómicos e satíricos da nossa língua (mestre de Alexandre O’Neill, por exemplo), nem sabem o que é um toucado. Este empobrecimento não comove ninguém. Os teóricos do Ministério da Educação acham que a vida é como é, e que o conhecimento e a cultura não são “inclusivos”; nem riem do poeta que confessa que sobe “de uma puta a infame escada”, nem choram quando escreve que “ainda ama a quem me mata” – porque o ignoram. Há 250 anos Tolentino ria dos pelintras, dos empertigados, dos enamorados e dos portugueses.
Da coluna diária do CM.
Faço parte de um grupo minoritário e estranho, o de “observadores de árvores”. Sentamo-nos num lugar e olhamos para as árvores – nada mais do que isso e nada menos do que guardar o segredo do que se vê em silêncio: observar árvores como maluquinhos. Há um grupo muito mais numeroso, o dos “observadores de pássaros”, uma atividade que ocupa milhões em todo o mundo e que está a ser atacada pela comunidade “politicamente correta” que acha que a conservação da natureza está dominada por homens, velhos, brancos e com uma “ideia errada” acerca do que é a “vida selvagem”; proteger a “vida selvagem” é um propósito de velhos colonialistas. O Washington Post dedicou ao assunto a capa da sua revista dominical: é preciso “descolonizar” a atividade da observação de pássaros, a começar pela denominação dos pássaros, que não devem levar nomes de ornitólogos ou naturalistas brancos e europeus. Enfim, para concluir, a Sociedade Americana de Ornitologia pede que se torne a observação de pássaros mais inclusiva e equitativa, e com isto tudo não sei se os melros estão lixados. Por mim, vejo árvores.
Da coluna diária do CM.
Se não andasse uma grande estroinice à solta na imprensa, com gente que se embevece com parvoíces escolhidas a dedo, eu passaria à frente como se se tratasse de mais uma bravata pimpona de CR7 – que é bom a marcar golos, Deus o guarde. Mas em dois dias ouvi vários “especialistas em marketing” e “sociólogos” mencionar que os atletas hoje já lutam por muito “causas sociais” e que, por isso, o gesto deselegante e valentaço de CR7 a afastar a garrafa de Coca Cola deve ser lido como uma defesa da “alimentação saudável”. Um dia depois, outro jogador, Pogba, também afastou uma garrafa de cerveja Heineken e outro italiano, imitou CR7 porque a tontice é contagiosa. Ontem, jornalistas empinados da “imprensa séria” (tanto quanto tola), alvitravam que o gesto de CR7 pode ser um repto para sermos “mais saudáveis” e “sustentáveis”. Deve ser, deve: vamos comer mais tofu, andar mais de Bugatti, beber água dos glaciares islandeses, vestir Versace, trocar a Coca Cola pelo botox das namoradas. Pelo sim, pelo não, fui repor a reserva de Heineken e comprar alguma Coca Cola antes que venham mais tolinhos.
Da coluna diária do CM.
Será que os heróis podem envelhecer? Harrison Ford está disposto a comprová-lo regressando para a quarta e última sequela de Indiana Jones, que começou com Os Salteadores da Arca Perdida, de 1981. Miss Marple era uma velhinha, Poirot estava no pórtico da terceira idade e Sherlock Holmes era já um homem maduro quando passaram para a tela ou para o ecrã – mas a generalidade dos heróis de hoje é “jovem”, cheia de ginástica e disponível para manobras de risco (não estou a ver Ethan Hunt, de Missão: Impossível a envelhecer como Indiana Jones). Uma das razões por que não me irritam todas as sequelas de filmes tem a ver com a ilusão adolescente de que é possível repetir os momentos de felicidade (ou de mau cinema) uma e outra vez, e novamente ainda. Muitas vezes queremos ver o mesmo filme, ler o mesmo livro, ouvir a mesma história. A saga de Indiana Jones prolonga a idade da aventura e estou desejoso de ver o quinto filme apesar de já ter achado mau o quarto (O Reino da Caveira de Cristal). Um herói que envelhece é uma coisa totalmente diferente; faz parte da nossa vida.
Da coluna diária do CM.
Para mostrar como antigamente aproveitámos dinheiro que chegava aos cofres da pátria (uma visão benigna da ‘bazuca’, um termo grosseiro e inadequado), o Presidente da República mencionou o tempo em que lidámos “com as especiarias, o ouro, a prata ou os fundos comunitários”. Sobre os fundos comunitários, escuso-me de lembrar que não se trata de um bom exemplo – houve desperdício, corrupção e muitos investimentos pacóvios. Quanto ao resto, recordo que em 1514 o rei D. Manuel enviou uma caríssima, faustosa e aparatosa embaixada ao papa Leão X para lhe jurar lealdade e mostrar o que fazíamos “com as especiarias, o ouro e a prata”; acabámos de pagar essa despesa três séculos depois. Como de costume, desses rios de riqueza não sobrou grande coisa para o futuro, tirando belos monumentos e o produto da vaidade e da idiotice das nossas elites, vaidosas e cheias de cupidez. De qualquer modo, nessa embaixada ao papa, o rei D. Manuel enviou um rinoceronte indiano; porém, o barco em que era transportado naufragou. Pede-se ao presidente que melhore as condições de transporte do novo rinoceronte.
Da coluna diária do CM.
Não sei como será o programa das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (que decorrerão entre 2022 e 2026), mas espero que possa servir para, finalmente, ouvir os portugueses e acabar com a apropriação da data pela esquerda revolucionária. 50 anos depois, ninguém a põe em causa nem lhe regateia a importância histórica e simbólica. O texto que anuncia as comemorações proclama a “fidelidade [da revolução] aos princípios democrático-liberais” e não às avarias folclóricas do PREC, a que o ano de 1976 pôs termo. As comemorações devem servir para que todas as vozes sejam escutadas e para que, finalmente, não sejam o simulacro de uma tristonha e inútil apropriação, à mistura com a celebração contentinha do regime e das suas metáforas mais vazias (como tem sido). 50 anos é uma idade adulta. Pede distância (não distanciamento) e não folclore; exige uma visão da História sem ativismo nem preconceito. E sem o sentimentalismo fácil que esconde sempre a verdade. Este ano, aliás, o regime democrático ultrapassou em idade o salazarismo; já é tempo de não se limitar a ser uma caderneta de cromos.
Da coluna diária do CM.
Quando ouvimos certas canções esquecemo-nos de quem as cantou pela primeira vez; e de quem as escreveu. Mas há algumas que entram na história de todas as nossas recordações. No caso da música americana no tempo das grandes orquestras de jazz, há uma lista de canções eternas, interpretadas por génios e vozes de ouro, de Fred Astaire a Frank Sinatra ou Bing Crosby, de Nat King Cole a Ella Fitzgerald e Peggy Lee aos The Pogues ou Judy Garland, Neil Diamond e Marlene Dietricht – a lista não acaba. Lembram-se de Cole Porter? Lembram-se de “Night and Day”, “Singin’ in the Rain”, “My Heart Belongs to Daddy”, “I’ve Got You Under My Skin”, “Miss Otis Regrets”, “In the Still of the Night”, “Every Time We Say Goodbye” ou “Don't Fence Me In”? Não iam esquecer-se. A música de Cole Porter – que nasceu há exatamente 130 anos – é a música sentimental dessa América que veio no grande cinema, carregada de amores, luzes, felicidade interminável, melancolia que se suporta. Talvez Frank Sinatra e Ella Fitzgerald sejam os seus maiores intérpretes (além dele mesmo) – mas as canções merecem homenagem.
Da coluna diária do CM.
O meu primeiro encontro com a memória de George Sand (1804-1876, passam hoje 145 anos sobre a sua morte) foi em Maiorca, no enorme mosteiro de Valldemossa, onde passou algum tempo com Frédéric Chopin; os amantes (ela 34 anos, ele 28) refugiam-se nas Baleares em 1838, mas o músico sofria de tuberculose e a população local hostilizou-os. Achei o romance tórrido (há um retrato maravilhoso de Delacroix representando George Sand a ouvir Chopin) – nesses anos, a escritora (o nome verdadeiro era Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant) já tinha um lugar garantido nas letras francesas, era amiga de Vítor Hugo, de Musset (com quem teve um caso – e com quem viajou em Itália na companhia de Stendhal), de Flaubert ou Balzac. Vestia à homem, usava um pseudónimo masculino, pioneira do feminismo, escreveu cerca de 130 livros – romances (como A Pequena Fadette, que li primeiro), ensaios, memórias, teatro, livros de viagem – e teve a admiração de Dostoiévski ou Walt Whitman. O seu Diário Íntimo (publicado pela Antígona) é uma leitura surpreendente; dá pena não tê-la conhecido.
Da coluna diária do CM.
Com aquele sentido de oportunidade com que, invariavelmente, acerta em todos os buracos de que seria bom desviar-se, o Dr. Rui Rio veio colocar-se à disposição dos eventuais candidatos a inquisidores – e declarar que é necessário acabar com os insultos na internet, razão por que é um entusiasta da chamada “Carta portuguesa de direitos humanos na era digital”. A “Carta” contém um interessante artigo 6.º leninista e trotsquista que merece tantos reparos que foi furtado à divulgação europeia; é para consumo caseiro. É esse parágrafo que deixa suspiros de comoção nos censores, moralistas, controladores e, no geral, em pessoas que gostam de “praticar o bem”, “proteger a sociedade”, e atribuir selos de qualidade à imprensa amiga. O Dr. Rio acha que é a “Carta” – não a lei geral aplicada pelos tribunais – que vai acabar com os insultos na internet. Já as mentiras, fake news e contradições notórias engatilhadas por responsáveis governamentais e directores-gerais com descaramento e pertinácia, não lhe merecem reparo. Passo a passo, ele consegue. Há um Trump em cada esquina.
Da coluna diária do CM.
O ministro Pedro Nuno Santos quer dinheiro para a TAP mas acha que as regras europeias da concorrência são um obstáculo e não lhe permitem tomar os milhões de que precisa e colocá-los na companhia aérea. Por isso, enervado, escreveu um artigo cheio de intenções, onde diz que esse investimento nas companhias aéreas, entre outras coisas – atenção! – “cria empregos bem pagos, reforça as relações económicas e potencia o diálogo multicultural”. Quem é que não quer empregos bem pagos, reforço das relações económicas e diálogo multicultural? Só um tolo. Haja dinheiro. Uma das formas de resolver o assunto foi dada por um espertalhão italiano, Salvatore Garau, que vendeu por 15 mil euros uma escultura imaterial, ou seja, que não existe – pura e simplesmente não existe, não está lá, nunca esteve lá. É “um conceito”. Pois ontem li um artigo todo cheio de patetices com a habitual trafulhice de “termos filosóficos” que justifica a aldrabice e a apetitosa fraude. Parece-me que Pedro Nuno Santos, que tem um bom trabalho na ferrovia, quer agora que a Europa pague umas esculturas invisíveis.
Da coluna diária do CM.
«Sunny prospects» – perspectivas ensolaradas. Foi assim que o ‘Daily Telegraph’ legendou a fotografia de uma multidão de ingleses enquadrada pelo belíssimo cenário da ponte de D. Luís I sobre o Douro, luminoso e apresentável como uma mancha de luz. A imagem é curiosa, porque aos ingleses se deve o sucesso dos dois principais produtos de exportação do Douro: o vinho do Porto e o turismo. Mas o resto é absolutamente português – só que os portugueses não podem juntar-se daquela maneira diante do rio, no Porto ou em Gaia, de copo na mão ou em passeio ameno, festejando uma tarde de sol. Inveja impura, portanto; e uma natural irritação porque não era isto que estava prometido, mas “uma bolha” que não funcionou, enquanto adeptos do SC Braga foram impedidos de festejar a vitória do clube ou os do Torreense foram carregados pela polícia. Há um elevado sentimento de injustiça – e, com ele, o da ausência de critérios equilibrados na forma como o Estado lida com os cidadãos, aos tropeções, com mentiras, sem juízo e sem sentido de responsabilidade. Desprezados, os portugueses são uns santos, é o que é.
Da coluna diária do CM.
Como é possível que o Presidente de República tivesse promulgado a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital sem fazer qualquer reparo sobre os perigos que ela contém e pode alargar? Porque estão todos contentinhos. Advogados conformados, partidos inebriados, potenciais censores a ajustar os binóculos, instituições inócuas felizes – e os habituais papagaios empertigados. O célebre Art.º 6 do documento propõe-se “proteger a sociedade” de quem propague “narrativa considerada desinformação” – atribuindo “selos de qualidade” emitidos por “entidades fidedignas” (que vergonha). É um princípio caro à mentalidade iliberal, este de “proteger a sociedade” de inimigos e narrativas perigosas, determinando que “a sociedade” (imprensa, tribunais, etc.) não está apta a fazer as suas escolhas. Esta máquina de vigilância e superior controle funcionará às mil maravilhas, carregada ideologicamente com as últimas novidades mais em voga (ah, teremos abundância de parlapié), vigiando com minúcia desvios à linguagem oficial. Mal falam de narrativas contra “políticas públicas”, bem os entendo.
Da coluna diária do CM.
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