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Passaram na semana passada (a 27 de maio) 150 anos sobre a célebre conferência de Antero de Quental intitulada “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”. O resumo é simples – o peso da Contra-Reforma religiosa e do poder das instituições religiosas em geral, a centralização política e a política económica resultante dos Descobrimentos, são os três pilares da nossa decadência para quem a olhava a partir do século XIX. O que se seguiu – a proibição das Conferências do Casino Lisbonense e o processo “político-literário” por que passou à história – é contado como se vivêssemos, na época, sob uma ditadura tenebrosa, o que não era verdade. Seja como for, século e meio depois a decadência acentua-se: não prezamos a liberdade, não produzimos riqueza nem independência económica ou inteletual, dependemos fortemente de um Estado clientelar (entregue às mesmas castas da época), menosprezamos o rigor e a exigência. Mais do que isso, até: gostamos mesmo da dependência e da malandragem – e aceitamos a perda de liberdade. As causas mudam; mas as coisas permanecem.
Da coluna diária do CM.
A história da esquerda foi marcada pelo fracionismo. Ainda hoje, leninistas (e ex-leninistas), trotsquistas, estalinistas (e ex-estalinistas), rosa-luxemburguistas e maoistas (aqui, todos ex) tanto dão as mãos como se apunhalaram com regularidade. A direita tem menos tradição de “desperdício” (tinha a contabilidade, o Excel, o mundo dos negócios) – mas também menos tradição de debate. A convenção do MEL (a que motivos familiares me impediram de estar presente) é uma das formas de criar esse debate, apesar de discursos pobres como os de Rui Rio, que se apresentou como mestre-escola de contabilidade sem uma única imagem de futuro, ou do líder do Chega, uma excrescência que me recuso a considerar “de direita” – um epifenómeno folclórico útil ao PS. A direita sempre considerou “desperdício” este tipo de debates; desprezou a cultura, a ideologia, a educação – achou que os valores eram eternos; não são. Com a esquerda transformada num novelo de interesses, instalada no coração do sistema, ou a direita estuda além da economia e diz o que pretende para o país, ou está condenada a suportar o dr. Rio.
Da coluna diária do CM.
Às vezes tenho saudades, à esquerda, de um bom marxista encartado – com quem se podia discutir e de quem não começávamos por rir. A “nova esquerda” (um conjunto de teorias geralmente incompreensíveis, geradas nos departamentos de “ciências humanas” a partir de uma Bimby que funciona em alta velocidade). Em Inglaterra, um dos debates que tomou conta da nova temporada teatral pós-pandemia é a reabertura do Globe Theatre com um programa para “descolonizar” Shakespeare. Pobre homem de quem sabemos tão pouco (a pequena biografia de Bill Bryson é uma delícia acerca de coisas “que não sabemos”). O projeto é analisar cada linha das geniais peças de Shakespeare em busca de sinais (por exemplo, a palavra ‘fair’, que pode significar ‘clara’ ou ‘branca’) de racismo e colonialismo – não porque o autor tivesse sido racista mas porque não foi anti-racista. A ideia não é estudar Shakespeare; é servir-se dele para menorizá-lo. Os cacos que daí resultam são deprimentes. Quando não restar nada, nem teatro, nem poesia, nem alma, nem sombra de beleza, mas apenas cinismo – a tarefa estará completa.
Da coluna diária do CM.
O que leva um dirigente do Chega a, num debate televisivo durante a campanha das presidenciais, chamar “bandidos” aos habitantes do Bairro da Jamaica que se tinham feito fotografar com o Presidente da República? Precisamente o que o fez repetir a alarvidade uns meses depois (ontem), garantindo que o que disse era “justo” e “correto”: repetir um mantra de obscenidade política e moral, desenhar um país dividido entre “bandidos” e “pessoas de bem”, chamar a si os holofotes, não temer a barbaridade. Há quem, à direita, esteja disposto a suportar a barbaridade em nome dos presuntivos cinco ou seis por cento de votos representados pelo líder do Chega — como se se tratasse de um partido de direita e não de uma mistura iconoclasta de barbaridade, coisas apanhadas no ar, histórias que não batem certo e um conjunto difuso de slogans que até podem merecer discussão. A barbaridade, em política como em matéria de costumes, é contagiante, tóxica e o seu preço é altíssimo. Hostilizar o seu megafone não é hostilizar os seus eleitores; é dizer onde se está e onde não queremos estar. Isso não tem preço.
Da coluna diária do CM.
Por curiosidade, descobri que – na depois dos “estudos coloniais”, “estudos de género”, “estudos de raça”, “estudos queer” – existe em muitas universidades anglo-saxónicas um plano intitulado “estudos de gordura” (‘fat studies’). E o que nos diz este interessante ramo do saber da área da justiça social, das ciências humanas e da teoria de género e raça? Que existe uma “opressão de pessoas gordas” (também designadas como “pessoas de grande porte”). O papel dos “estudos de gordura” (com grau de doutoramento) explica-nos que a opressão exercida sobre as “pessoas de grande porte” é uma discriminação social e política, especialmente em comunidades já oprimidas por outras razões (raça e género, por exemplo). Se todos estamos de acordo em que o modelo de corpo esbelto e estilizado é uma imposição abusiva e obsessiva por gente escanzelada e sem gosto pela comida – já nos esclarece a área dos estudos feministas sobre alimentação que também tem implicações políticas e que visa introduzir soluções neoliberais que só os estudos sobre género e globalização podem resolver. Não é brilhante?
Da coluna diária do CM.
Robert Allen Zimmerman, aliás, Bob Dylan, nasceu há 80 anos – emprestou-nos um pouco de música a quase todos. Canções imortais (“Blowing in the Wind”, naturalmente, mas também “Like a Rolling Stone”) e canções que marcaram décadas que passaram, além de discos inteiros que nos obrigam a nunca mais regressar ao tempo antes de Bob Dylan (Highway 61 Revisited, Blonde on Blonde, Desire, Blood on the Tracks). Lenda viva, portanto; voz inconfundível; heranças cruzadas (folk, blues, country, rock), poemas que perduram, versões que prolongam a primeira vez. E um distanciamento que o fez, ainda hoje, ser único. O Nobel da literatura que lhe foi atribuído consagra a sua ligação à literatura; talvez só um cantor, Leonard Cohen, o merecesse mais do que ele – mas o discurso de aceitação (fez-se representar por Patti Smith para o receber em Estocolmo), recordando a importância de Moby Dick (Melville), da Odisseia (de Homero) ou A Oeste Nada de Novo (de Remarque) é muito bom, e evoca Shakespeare: as canções são vivas na terra dos vivos. Hoje é dia de ouvi-lo como a um monumento vivo.
Da coluna diária do CM.
Joaquim Figueiredo Magalhães, grande editor português, fundador da Ulisseia, dizia (por graça) que para a boa fortuna de um livro “o que é necessário é que falem dele, ainda que seja bem”. Tudo mudou – e por isso volto ao tema da coluna de ontem, que falava do caso da biografia de Philip Roth, que editora Norton retirou do mercado depois de o seu autor ser acusado de conduta sexual imprópria. Antigamente, estes casos julgavam-se em tribunais – agora julgam-se na rua, na gritaria das redes sociais e na pressão muitas vezes intolerável para que determinado livro seja “cancelado” e retirado das livrarias. O PEN Club americano fala de “um ambiente de juízo moral e puritano”. As “boas causas” transformam-se em obsessões morais e os editores impõem aos autores cláusulas que lhes permitem rescindir contratos se houver “danos reputacionais” decorrentes do comportamento do autor ou da publicação das suas ideias. Dostoiévski, Cervantes, Camilo Castelo Branco, Luiz Pacheco, para não irmos mais longe, estariam hoje impedidos de publicar. Na Europa devemos erguer fronteiras contra esta barbárie.
Da coluna diária do CM.
Philip Roth (1933-2018) é um dos grandes autores do século XX e aguardava-se há muito a sua biografia. Publicada há um mês, um colosso, foi retirada das livrarias pela editora Norton, depois de o seu autor, Blake Baley, ter sido acusado de agressão sexual (ainda não julgada). A Norton podia ter mantido o livro nos escaparates mas preferiu não arriscar – e o livro será agora publicado pela Skyhorse, que lançou as memórias de Woody Allen depois de a editora Hachette ter desistido de publicá-las na sequência das acusações ao realizador. Folhetins morais, portanto. Mas não só. A partir de agora, as editoras – acobardadas com este cerco vigilante, só assinarão contratos com autores de confirmadíssimo perfil moral e sem registo de polémicas na sua vida. O resultado disto é, fatalmente, a censura, o empobrecimento e banalização das suas artes, controladas por multidões de inquisidores e zelotas a quem auguro grande prosperidade e uma alta taxa de contágio. Imagino que em breve virão os campos de reeducação e os apedrejamentos públicos. Triste, cómica e ridícula América. Bom proveito.
Da coluna diária do CM.
Anteontem, começou finalmente o ano de 2021. Não por erro de calendário ou dos movimentos de rotação e translação do planeta – mas porque entrámos, finalmente, naquele glorioso período em que as nossas frotas podem pescar sardinha, em que os mercados podem exibi-la nos seus tons de prata azulada, e em que os restaurantes podem servi-la com orgulho. Película cutânea aquosa e transparente, pupilas negras e córnea brilhante, guelras de cor viva, sem muco, e odor intenso a algas marinhas – o tamanho não interessa, digo-lhes eu. Temperam-se de sal, assam em grelha a dez centímetros da brasa, viram-se rapidamente para não perder gordura nem pele, e servem-se na companhia de batata nova cozida com pele, ou apenas pão em bom forno, salada de pimentos, um vinho tinto refrescado – e uma respiração de felicidade. A partir de agora, o ano começou. Na lota são vendidas a 90 cêntimos o quilo e nos supermercados a 6 euros; é uma injustiça para os pescadores. Mas para nós, fanáticos, começou o ano depois de meses de penúria e interdição. É a guerra. É a nossa identidade nacional que está em jogo.
Da coluna diária do CM.
Independentemente do anúncio de uma grande exposição sobre egiptologia em 2022 ou a reabertura da sala com as joias de René Lalique, a excelente novidade é que o Museu Gulbenkian, propriamente dito (agora com direção de António Filipe Pimentel, depois do magnífico trabalho no Museu de Arte Antiga), e o Centro de Arte Moderna, CAM, terão vidas paralelas mas não misturadas. A expressão que uso pode não ser a mais correta, mas traduz a reposição de uma visão e de um sentido – em que o Museu Gulbenkian se centra na História e nas grandes peças do passado, e o CAM persegue, naturalmente, e como deve, os caminhos da contemporaneidade. Essa visão tinha sido roubada durante algum tempo (de 2016 para cá) e teve como efeito, para boa parte dos visitantes, a criação de uma espécie de ‘terra vazia’ na qual girava um carrossel que devorava quase tudo. Durante os meus tempos de faculdade, havia uma tarde em que não tinha aulas; passava-a no Museu antes de me sentar a ler nos jardins. Hoje, que é o Dia Internacional dos Museus, deve dizer-se que a Gulbenkian regressa a essa imagem de felicidade.
Da coluna diária do CM.
Maria João Abreu era uma atriz popular e isso era justo: na televisão, brilhava como uma figura inconfundível; no teatro, teve papéis importantes. Nos tempos em que a popularidade supõe quase sempre um talento histriónico ou a busca insistente na fama a todo o custo, ela desempenhava com naturalidade amistosa a sua maneira de representar, que era a sua vida. Teve, por isso, o favor das multidões e, mais, o favor das pessoas, o que é diferente. Não é pouco. Ser uma “figura de televisão” é correr sobre um abismo que devora quase toda a gente – ganham-se adversários inesperados e ressentimentos públicos e privados; Maria João escapou a ambos. Aos 57 anos é-se novo ainda e a morte é um castigo que não se merece; por ela e pelos que a amaram. Morre-se tão inesperadamente porque a vida é frágil e o dia de amanhã é mais do que uma fronteira desconhecida. Pensamos muito nisso à medida que os mais próximos são levados ou sentimos a ameaça da idade, da doença ou da tragédia. Somos pouco, somos o que somos. O adeus de Maria João é só um sinal dessa tristeza para a qual nunca estamos preparados.
Da coluna diária do CM.
Imagino que o livro de Mikhail Bulgákov (1891-1940), pode decorrer ao som de suites de Dimitri Shostakovich; no final da década de 30 ambos são vítimas da perseguição estalinista – mas a música é essa. Bulgákov, no entanto, morre em 1940 e nunca verá O Mestre e Margarita impresso. O comunismo só deixou que aparecesse em livro em 1973, numa versão que foi concluída pela mulher do escritor em 1941. O que assustava tanto os comunistas? O Diabo, naturalmente, que visita Moscovo nos anos 30 e semeia a discórdia entre a canalha literária, pondo a nu a burocracia do regime, crédula, covarde e medíocre – dotando Margarita de poderes sobrenaturais. Pelo meio, a narrativa da condenação e crucificação de Jesus, o debate sobre a tirania e a traição, a liberdade, a natureza da história humana e a superficialidade da “vida moderna”, naquele cenário moscovita, entre o real e o impossível, sempre motivo de sátira e delírio. O Mestre e Margarita (traduzido por Nina e Filipe Guerra, numa edição da Presença) é a obra-prima de Bulgákov, de quem amanhã se assinalam os 130 anos do seu nascimento, em Kiev.
Da coluna diária do CM.
Já vão longe os tempos em que o futebol era um desporto de cavalheiros ou de operários em fim de semana, de rapazes de bairro ou de vizinhos desavindos. Transformado em negócio de milhões, em vício de investidores, ou em altíssima especialização, as suas engenharias deixaram de contar com palavras como “imprevisibilidade”, “risco” ou “inesperado”. Por exemplo, no início da época futebolística, quase ninguém dava nada pelo Sporting e pela sua equipa de miúdos – que podiam ser excelentes mas que não tinham as primeiras páginas dos jornais. Além do mais, o treinador do Sporting era até vituperado por não ter o curso de treinador, uma especialização tão útil como a de tratador de pintassilgos – desde que não se conheça o futebol, evidentemente. Com duas ou três peças mais séniores e um bando de rapazes atrevidos e com nomes de alunos de liceu, o treinador sem curso completo de treinador conseguiu o essencial: ganhou o campeonato e envergonhou as corporações e os que investiram milhões e milhões. A vitória da imprevisibilidade é sempre agradável. É a vitória do barroco sobre o épico.
Da coluna diária do CM.
Calhou ver, pela televisão, dois ou três episódios da comissão parlamentar de inquérito ao Novo Banco e aos estropícios cometidos. O espectáculo dos últimos dias é tão sabujo como o da Comédia Humana (Balzac conhece os fígados de um escroque): velhos companheiros, comparsas de mesa e pucarinho, amigos desolados (o tempo passa depressa, afinal), serviçais que agora se vingam de humilhações, oligarcas que já não acham graça à picardia, rivais que desembainham a navalha, surrobecos que se mostram esquecidos. Estão lá todos: os que eram surdos, os que eram mudos ou nunca tinham visto nada, os que juraram fidelidade aos banqueiros. Depois dos banqueiros e dos endividados chegarão os ordenanças, os intriguistas que passam de um dono a outro, os distraídos que nunca deram por nada, os que lucraram com o derriço e passaram bem, passam sempre bem e são intocáveis, por mais que tenham as contas lacradas – ou escondidas. Todos querem salvar a pele, se possível aparentando escândalo e invocando a honra. Mas não há outra forma de designar este desfile de bandoleiros: uma pouca vergonha.
Da coluna diária do CM.
Gosto muito de O Baile (Le Bal, 1983), de Ettore Scola: num velho salão de baile, o tempo passa, tal como a música, a política, o amor, a história de França. Não há uma palavra, apenas dança – e nostalgia. Às vezes, beleza. O método foi repetido em La Famiglia (1987): um apartamento que sobrevive à passagem do tempo e das gerações (imagine-se: Vittorio Gassman, Fanny Ardant, Stefania Sandrelli e Philippe Noiret, que elenco). Era o mundo de Ettore Scola, o realizador de Feios, Porcos e Maus (1976), com o brutal Nino Manfredi, ou de Tão Amigos Que Nós Éramos (1974), cujo argumento é retomado em O Terraço (1980), com Gassman, Ugo Tognazzi, Trintignant e Mastroianni. Reunir um elenco desta qualidade foi um desafio aceite por Ettore antes de se despedir do cinema, em A Noite de Varennes, uma demanda por Casanova e pela revolução francesa. O olhar magoado de Marcello Mastroianni ao lado de Sophia Loren em Um Dia Inesquecível – o da visita de Hitler à Itália fascista – é uma obra de arte. É por isso que vale a pena recordar Ettore Scola (1931-2016), que hoje completaria 90 anos.
Da coluna diária do CM.
Ainda alguém se lembra de O Comboio Apitou Três Vezes? O xerife Will Kane (casado com Amy, aliás Grace Kelly) enfrenta todos os malvados do Oeste. Só podia ser Gary Cooper, que recebeu um Óscar pelo papel. Tal como só podia ser Gary Cooper em Vera Cruz, de Raoul Walsh (contracenando com Burt Lancaster e Sarita Montiel, lembram-se?), ou em Vontade Indómita, polémico já em 1949 – e até ao lado de Marlene Dietricht numa coisa tão romântica como Desejo. Ernest Hemingway tinha uma grande admiração por Gary Cooper, e é ele o herói masculino das adaptações dos seus romances Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram (ao lado de Ingrid Bergman). Fica-lhe bem o papel de “cavalheiro até ao fim”, como em Beau Geste, ou de espião em O Grande Segredo (de Fritz Lang) – mas, na verdade, nada lhe assentava melhor do que a figura de cowboy. É assim que Tony Soprano o recorda várias vezes, lembram-se? No divã da psicanalista de Os Sopranos, Tony pergunta-se acerca do sentido da vida: “E Gary Cooper, hein? Um tipo tão forte e discreto.” Passam hoje 120 anos sobre o seu nascimento.
Da coluna diária do CM.
Ainda bem que, a avaliar pelas cerimónias oficiais, ficámos todos contentes com a celebração do Dia da Língua Portuguesa. De que serviu? Para que soubéssemos que (quase) todos a falamos e destruímos paulatinamente. Alguns, ainda mais felizes, insistiram no “valor económico da língua portuguesa”, aferido pelo volume de negócios e transações; outros, na necessidade de torná-la “mais inclusiva”, seja lá o que isso for; e outros houve, ainda, que mencionaram a pluralidade e a diversidade dos nossos dicionários. Tudo coisas importantes e sonoras. Mas, amanhã, tudo esquecido – as bibliotecas da nossa língua continuarão em risco, os apoios aos autores continuarão a ser comedidos, a edição continuará a lutar solitariamente contra todas as adversidades, os índices de leitura serão fabricados à medida, as leis para as livrarias serão tão deslocadas e hipócritas como antes, leremos cada vez menos jornais e haverá cada vez menos obras clássicas ou modernas a serem adaptadas à televisão, a escola continuará a hostilizar o bom Português (em maiúscula). Ficam a efeméride e o foguetório.
Da coluna diária do CM.
Autenticidade. Não é um grande valor, uma explicação por aí além, mas é a palavra que me surge quando penso na obra de Julião Sarmento (1948-2021), que ontem nos deixou e que, a partir dos anos 80, se tornou um nome central na história da arte portuguesa – sem nunca pôr de parte aquilo que fez do seu trabalho um admirável montagem em torno dos seus temas de sempre: o erotismo, bem como a delicadeza e a transgressão em torno de todas as fronteiras e formas de representação do desejo. Conservador como sou, prefiro a sua pintura, que ficará como um dom excecional e duradouro, mas há nos outros objetos de Julião Sarmento (escultura, montagem, fotografia, encenação) essa permanência de uma gramática das figuras que transitam do seu traço enquanto pintor, como personagens abandonadas, imperfeitas como nós, sempre a caminho de um lugar inoportuno. Foi nessa condição que abriu portas para as nossas artes plásticas, não apenas limitado a Portugal e ao seu pequeno mundo – mas com um bravo reconhecimento internacional. Criar, dizia Julião Sarmento, é também traduzir. Estar lá de outra maneira.
Da coluna diária do CM.
Uma marca de Vinho do Porto, a Taylor’s, lançou no mercado uma nova bebida, Porto Tónico. Festejo-a com sinceridade, embora não a tenha provado. O Porto tónico é uma invenção contra a modorra e a morte do Porto Branco Seco, uma gama de vinho do Porto (pessoalmente, o melhor vinho do mundo, mas eu sou um nacionalista do Douro) sempre maltratada e desconsiderada – bebia-a pela primeira vez nos anos 90 como uma promessa de verão, de beleza e de criatividade. No fundo, bebíamos gin tónico, vodca tónico, água tónica – por que não um Porto tónico, juntando o melhor dos nossos vinhos à mais inocente das águas perfumadas com quinino, açúcar e limão? Os puristas começaram por achar mal, como de costume – não tanto como do bolinho de bacalhau com queijo da Serra (que já vi servido em Itália), ou do pastel de nata fabricado no Canadá ou na China, se bem que mantendo a designação portuguesa. Agora, que começa a primavera, o Porto tónico pode ser preparado com Porto, água tónica, gelo e limão. Podemos beber Porto Branco Seco, como uma homenagem – mas a natureza e o paladar são máquinas poderosas.
Da coluna diária do CM.
Naquele país que construía estádios para o Euro2004, a revista Grande Reportagem, que me lembre, foi a primeira a chamar a atenção para a imigração no sudoeste alentejano – não se tratava da tradicional mão de obra barata das antigas colónias, mas de geografias a que então se fechava os olhos e se negava proteção adequada, nomeadamente dos países do antigo bloco soviético, no leste europeu, do Paquistão ou do Bangladesh. Com o tempo, essa imigração lançou raízes e passou a fazer parte da paisagem – mas não a dos subúrbios de Lisboa, a norte ou a sul do Tejo, visível na imprensa e na televisão, e sim da das explorações agrícolas batidas pelo vento atlântico e misturada com o plástico das estufas e a areia do litoral. Periodicamente, o país vem ter connosco e reagimos como se fosse surpresa absoluta; não é e não devia ser. Parece que as autoridades e as estatísticas contornavam o assunto; parte dessa imigração aguenta na região até ter passaporte europeu, conforme me disseram no ano passado. A sua invisibilidade era uma falta grave; a sua visibilidade é também um desleixo do país.
Da coluna diária do CM.
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