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Demora a desaparecer a impressão causada pela leitura de O Túnel (1948), o pequeno (140 páginas) romance do argentino Ernesto Sabato onde se trata do estranho assassinato de Maria às mãos do pintor Juan Pablo Castel, seu amante, um argumento que apaixonou Albert Camus – o que ditou a feliz sorte do livro (em Portugal, na Relógio d’Água). Sabato, que nasceu em 1911, atravessou os anos trinta como militante e agitador comunista, condição que foi abandonando em favor de posições muito mais libertárias e pessimistas. Só isso explica a heterodoxia de Sobre Heróes y Tumbas, o seu romance argentino, propriamente dito (de 1961), e que depois conclui com Abaddón, el Exterminador (1974). Tudo o resto é ensaio, crónica, filosofia (sobre existencialismo, Borges, o seu país, o tango, a leitura, etc.), e uma procura dessa terra de ninguém que foi o seu não-alinhamento com a esquerda ortodoxa. Mas o que mais comove, para quem lê espanhol, é a riqueza da sua língua – que lhe valeu o Prémio Cervantes, por exemplo. Morreu há dez anos, assinalados hoje no livro dos justos e dos grandes criadores.
Da coluna diária do CM.
Há vários caminhos no chamado “panorama do romance português” – eu escolho um, o meu. Escrevo o que escrevo porque escolhi livremente esse caminho, nem pior nem melhor, e não dependo de favores. Há outros, que respeito muito; e outros ainda, pelos quais tenho menos amizade. Mas de entre aqueles que admiro, mesmo não sendo próximo das minhas escolhas, está o de Patrícia Portela, uma escritora que vem de outras artes, como o teatro ou a dança, e que vale a pena acompanhar (tal como Joana Bértholo e Rodrigo Magalhães). ‘A Coleção Privada de Acácio Nobre’, de Patrícia Portela (2016), convenceu-me definitivamente do seu trabalho – é a construção prodigiosa e amável de uma personagem. ‘-Hífen-’ é o seu novo romance, uma interrogação sobre “os tempos do algoritmo”, uma montagem de materiais apócrifos (cadernos, doenças, notícias, alfabetos, personagens, receitas de cozinha, trabalhos de mãe) num território chamado Flandia. Esse trabalho de montagem aproxima o livro de uma espécie de documentário ou recolha de materiais para herbário – e é precioso. Não é um romance; é uma alegoria sobre o mundo.
Da coluna diária do CM.
Que sejam provadas pelo menos uma ínfima parte das acusações no abjeto processo da Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, em Requião, Famalicão, o julgamento que hoje se inicia em Guimarães é mais do que uma peça de filme de horror. Basicamente, um grupo de jovens raparigas, oriundas de meios humildes, pobres e desprotegidos, foi mantido em condições sub-humanas, perversas, sádicas e inferiores à condição de escravatura. A descrição das torturas, humilhações, castigos e enormidades de toda a espécie infligidas durante vinte anos de clausura (de 1985 a 2015, quando a PJ desmantelou o “convento”) não cabem nesta coluna – e exigem não apenas uma reparação mas, também, um estudo sobre as condições em que uma “instituição religiosa” (dependente de uma seita católica milenarista que pretendia salvar-nos de Satanás afixando cruzes por todo o país) albergou e escondeu tamanha galeria de horrores praticados por um padre e três freiras – além das suspeitas sobre uma morte ocorrida em 2004. Já agora, importa dizer que foram precisos seis longos anos para que o julgamento se iniciasse – hoje.
Da coluna diária do CM.
Vem muito a propósito o discurso do Presidente da República no último domingo (uma das suas melhores intervenções – mostrando que é um Presidente do nosso tempo e preparado para interpretar os problemas de hoje) sobre a leitura atual da História e do passado, que não deve ser usado acriticamente nem demolido como uma inutilidade. Hoje, por exemplo, assinalam-se os 500 anos sobre a morte do português Fernão de Magalhães (c. 1480-1521), nas longínquas Filipinas. Como seria o mundo sem Fernão de Magalhães e as suas viagens? Seria muito provavelmente o mesmo (Francis Drake completou a sua viagem sessenta anos depois) – mas sem o relato da sua experiência, das suas descobertas, intuições e legados. Figura trágica e desamada durante muito tempo (em Portugal, onde nascera e por quem navegara, por trabalhar para Espanha; em Espanha, injustiçado pela má fé sobre a sua liderança e intenções), Magalhães faz parte daquela estranha e sempre desarrumada galeria de heróis necessários ao mundo. 500 anos depois da sua morte, devíamos assinalar a sua aventura e estudá-lo sem medo como um homem decisivo.
Da coluna diária do CM.
Da coluna diária do CM.
A universidade de Sheffield, no Reino Unido, lançou um programa para “descolonizar” o currículo de matemática e engenharia – e descobriu que Isaac Newton (1643-1727), um dos cientistas mais importantes da humanidade, é um “potencial beneficiário do colonialismo”. Juntamente com o homem que construiu as bases da mecânica clássica, também entram na lista os matemáticos Leibniz ou Laplace. A ideia é a de contrariar o conhecimento “branco” e “eurocêntrico”, purificando o passado até ele ser como gostávamos que ele fosse. Geoffrey Chaucer (1343-1400), por exemplo, autor dessa preciosidade que são os Contos de Cantuária tem o seu futuro ameaçado porque o manuscrito da sua obra esteve, no século XVIII, na posse de uma família ligada ao comércio de escravos. Do pecado ninguém o livra. Esta ideia de um mundo higienizado e puro explica, entretanto, por que razão um dos principais sindicatos britânicos de atores, o Equity, exige que os críticos e jornalistas não mencionem idade, etnia, género e aparência quando comentam uma peça em palco – seremos, doravante, pessoas sem rosto e sem passado.
Da coluna diária do CM.
Todos os dias há notícias sobre o “regresso da cultura” depois do isolamento; no entanto, mencionam sobretudo as chamadas “artes do espetáculo”, o que se compreende porque envolvem dramas humanos graves e uma área profissional sitiada ao longo deste ano – com as salas de teatro, de música e de cinema, o lado mais visível da pequena indústria cultural sofreu danos que se espera que não sejam irreparáveis. No entanto, chamo a atenção para a notícia do CM de ontem sobre a consagração de mais de metade do Plano de Resiliência destinado “à cultura” a obras de restauro e conservação do património (cerca de 150 milhões). Independentemente de medidas de apoio imediato “à cultura” (sobretudo a pessoas que trabalham nessa área) trata-se de uma injustiça. O património gera uma receita incalculável na indústria turística portuguesa (a principal atividade portuguesa, no fundo), ou seja, viagens, energia, obras, restauração e hotelaria; “a cultura”, ou seja, a área do património, empresta sempre parte do seu orçamento a indústrias que a olham com sobranceria. Não deviam. 150 milhões é uma ninharia.
Da coluna diária do CM.
A editora Dom Quixote lança esta semana Chamada para o Morto, o primeiro livro onde aparece a grande personagem criada por John Le Carré, o espião George Smiley. Ao longo de quase 60 anos, Smiley (que aparece pela última vez em Um Legado de Espiões, de 2017) acompanhou os nossos sonhos de espionagem e os nossos pesadelos sobre a boa consciência do Ocidente durante a Guerra Fria – em livros como A Toupeira, O Ilustre Colegial, A Gente de Smiley ou O Espião Que Saiu do Frio ou O Peregrino Secreto). De certo modo, é um anti-herói: ao contrário das grandes personagens da literatura de espionagem, os seus passatempos são os livros e a poesia barroca; é traído pela mulher; é suficientemente discreto e desajeitado, sem o glamour dos vencedores. Gostamos mais dele por isso mesmo. Chamada para o Morto, de 1961, inicia a caminhada de Smiley e está lá tudo. Mas sobretudo o génio de John Le Carré, que nunca se permitiu facilitar a qualidade da sua escrita por se tratar “apenas” de literatura policial ou de espionagem. Lê-lo, a esta distância, é um prémio para a nostalgia.
Da coluna diária do CM.
Todos os anos, inexplicavelmente, há uma polémica sobre as comemorações do 25 de Abril, a data mais consensual da nossa história política contemporânea. A um ano apenas de igualar o período da ditadura salazarista imposta em 1926 (e que durou 48 anos), não se compreendem as polémicas, a não ser pelo facto de a data ser ainda, erradamente, considerada propriedade de apenas uma parte das trincheiras ideológicas. Provincianismo português é assim mesmo – sem grandeza nem inteligência, sempre em circuito fechado, feliz por excluir e dividir o mundo em bons e maus. Este ano, as comemorações excluirão a Iniciativa Liberal, partido que, desde a sua fundação, tinha desfilado pela Avenida da Liberdade. O motivo invocado fala das “limitações relacionadas com a saúde pública” – a razão, no entanto, é outra: o risco de a data ser verdadeiramente nacional, alargada a portugueses de várias ideologias e gerações. Os proprietários do 25 de Abril gostam de, todos os anos, repetir as mesmas histórias, os mesmos argumentos, sempre da mesma maneira, como amáveis mordomos de festa. Simpáticos, mas mordomos.
Da coluna diária do CM.
O problema não é o da “igualdade de género” (o princípio da igualdade salarial deve ser aplicado e não sabemos por que não é), coisa em que estamos todos de acordo salvo os cavernícolas do costume e a militância de rua. Já os casos de abuso sexual, violação, violência doméstica e homicídio de mulheres têm de ser rapidamente resolvidos. Não é um problema “das mulheres”; é também “dos homens” e “da sociedade”. Todas as semanas há casos de libertação de abusadores, violadores ou agressores que regressam à prática do mesmo crime, ou o agravam; muitas vezes as penas são leves demais e proporcionam a libertação ou suspensão num prazo que todos sabemos imoral. Como impedir isso? Como mostrar “à sociedade” (e aos eventuais abusadores) que se trata de um crime grave, abjecto e indesculpável? Em primeiro lugar, agravamento das penas e impedir que possam ser abreviadas; depois, que a reincidência seja ainda mais penalizada. Enquanto isto não for claro, não houver terapias exigentes e os exemplos não forem públicos, tudo ficará na mesma. Apenas ruído de rua que não chega senão a um beco.
Da coluna diária do CM.
É verdade que Artur Garcia (1937-2021) não tinha nem o talento romântico de Tony de Matos nem a fortuna dos compositores que serviram outros artistas da época (como António Calvário, para não repetir o nome de Tony de Matos, por quem tenho uma admiração excessiva, confesso, com Francisco José a seguir) – mas anteontem, dia da sua morte, achei estranho que nem as rádios nem as televisões passassem as gravações que o fizeram famoso. Fui procurar. Entrei canções muito apresentáveis. “Corpo e Alma” tem a minha idade (e é provavelmente a sua melhor voz, juntamente com “Ingratidão”) e “Porta Secreta” (de 1967) merecia melhor destino. Teve pouca sorte com as canções de Nóbrega e Sousa, com orquestrações abaixo da média, mas o país da época não podia acompanhá-lo em “Olhos de Veludo”, de 1968, muito latina (graças a Ferrer Trindade, que era o produtor) quando já havia outras ambições mais elevadas na chamada música ligeira. Um pouco mais de chama (e menos conotações políticas) e “O Homem do Leme” poderia ser uma canção. Teve pouca sorte – e a magnífica figura não o ajudou naqueles tempos.
Da coluna diária do CM.
Há trinta anos o Douro, que foi sempre pobre e desprezado, era um segredo escondido. Só lá se aventuravam iniciados que tinham nascido à beira do rio, amantes de vinhos densos e cheios de originalidade, viajantes meio despropositados, colecionadores de excentricidades, amantes de comboios e pessoas que procuravam uma tranquilidade que não existia em nenhum outro lugar. Não havia quem arriscasse; o Algarve estava mais à mão, o Alentejo estava na moda – o Douro era, digamos, extravagante e enigmático. Tudo mudou nestes trinta anos, e infelizmente nem tudo para melhor (é preciso arrasar monstros que defraudam a paisagem), mas noto que o comboio que acompanha o curso do rio acima da Régua e até ao Pocinho, o ‘Miradouro’, é cada vez mais famoso e procurado – quem conhece aquela geografia sabe que só de comboio (muito melhor do que de barco) se aprecia a beleza do rio e das suas margens. Enquanto espero que o comboio regresse ao trajeto Pocinho-Barca d’Alva, sonho com o calor, o silêncio, os vinhos e o céu do grande rio onde nasci. E aquela grandeza amável, poderosa e invencível.
Da coluna diária do CM.
A londrina Universidade de Artes pediu encarecidamente aos seus professores para aceitarem “ativamente” erros de ortografia, gramática ou quejandos, desde que eles não “impeçam significativamente a comunicação”. Além disso, deixa um alerta: não se ponham pedir que se escreva com correção nos trabalhos dos alunos; isso não existe. O Daily Telegraph de domingo menciona decisões idênticas noutras universidades que consideram o “inglês correto” uma expressão “branca, masculina e elitista”. Em Portugal, o caso escandalizou algumas pobres almas que ainda não se deram conta de que o vírus já está cá há muito (no Brasil, por exemplo, é uma espécie de doutrina quase oficial, muito em voga) e será uma das batalhas que se avizinham: o português será a “língua do colonialismo” e “o que conta é a diversidade de expressão” – aliás, já em tempos tivemos indicações ministeriais para desculpar erros ortográficos em exame escolar. Bons tempos em que o autor do Quixote, Miguel de Cervantes, escrevia (em Os trabalhos de Persiles e Sigismunda) ser a língua portuguesa “doce e agradável”. Tomem nota.
Da coluna diária do CM.
Durante os últimos anos, o «caso José Sócrates» – que é muito mais vasto – transformou-se num trauma português que ultrapassou em muito o duelo entre o juiz Ivo Rosa e os responsáveis pela acusação. Esse é um espetáculo pouco mais do que provisório; o trauma é mais vasto e tem a ver com o conjunto difuso de factos dados que o juiz já deu como provados ou se limitou a declarar proscritos. A partir daí, o antigo primeiro-ministro passa a ser uma figura de ficção; não de romance, porque não tem solenidade nem marca de grandeza, mas de pura ficção, onde quase tudo pode inclinar-se ou para uma sequência burlesca, à maneira de Balzac, ou para um final trágico. O trauma é o de um país pequeno, limitado ao seu vandalismo que se percebe à légua; as personagens são igualmente pequenas – vêm do quase nada, destinadas a perpetuar todos os vícios que viram nos outros como meios para coroar a sua ambição. Nada as desmobiliza: nem a verdade, nem a sensatez, nem o sentido das proporções. Só isso explica que, quando acusada de indignidades, a personagem declare ser isso uma enorme vitória.
Da coluna diária do CM.
Os poetas da modernidade tentaram mudar a história da literatura e da vida de todos dias – através de uma nova linguagem. Na poesia francesa quase ninguém o fez como Valéry, Arthur Rimbaud ou Charles Baudelaire. Passam hoje 200 anos sobre o nascimento deste último e a data merece evocação; Baudelaire, o autor de As Flores do Mal, é provavelmente o poeta que mais profundamente tentou essa mudança (até pelo seu ressentimento contra o omnipresente Victor Hugo). Visionário, ambivalente, flagelado pelo ceticismo e pela natureza breve e veloz da sua própria vida (1821-1867, morreu aos 46 anos), Baudelaire sabia que “não teria tempo”: por isso a sua poesia é uma visita aos infernos, e toda a sua obra nos mostra que o ‘tempo moderno’ não podia repetir a solenidade do passado romântico. As Flores do Mal é de 1857 – o livro e autor foram condenados em tribunal por ofensa “à moral pública, à religião e aos bons costumes” (três anos depois publica Paraísos Artificiais, sobre ópio, vinho e haxixe). A busca da beleza, em Baudelaire, é esta sombra que nos legou e que ainda não compreendemos.
Da coluna diária do CM.
É muito bom que tenha sido o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Antóno Piçarra, a dizê-lo com as letras todas e com uma clareza importante – mas muito decisiva: que é inadmissível que a chamada “fase de instrução criminal” demore dois anos ou mais. Durante aqueles dois anos, os vários aparelhos judiciais aparecem periodicamente em público brandindo conceitos como “segredo de justiça”, “presunção de inocência”, “fuga de informação”, a lista é longa – e há uma correria de arguidos, testemunhas e primeiras páginas desatualizadas às primeiras horas. Ou seja: durante aqueles dois ou três anos um arguido deixa de ser arguido e passa a ser ou uma figura insuportável e odiada, ou um cidadão limitado, ou uma suspeita ambulante, sendo que pode de um dia para o outro deixar de sê-lo, mas já como meio cidadão. Porque, durante três anos foi, afinal, julgado por um juiz de instrução – e por mim e por si, leitor, que assistimos ao espetáculo lamentável da tentativa de influenciar, pressionar e tirar vantagem dos prazos judiciais. Ou seja, tirar vantagem de todos nós, o que não devia acontecer.
Da coluna diária do CM.
Evidentemente que estamos frágeis e que nos sentimos frágeis; alguns dos nossos amigos, familiares e conhecidos perderam a vida durante este ano de pandemia; confinamentos, limitações ferozes à liberdade, manobras e ameaças de propaganda e propagação de medo fizeram o resto. Não sei se muitos dos que chamavam “gripezinha” à Covid mudaram ou não de opinião, mas a verdade é que estamos frágeis ao fim de um ano – e sermos bombardeados com vinte reportagens diárias sobre o mesmíssimo tema também não ajuda. Seja como for, a pequena guerra portuguesa não pode ser a de vigiar os que passeiam pelo bairro ou à beira mar e se reúnem com amigos a uma mesa de esplanada. Era natural que tudo explodisse ao fim de dois meses de isolamento – nas escolas, na vida das lojas de rua, na ida às praias, na procura de um contacto com os outros. O que nestes dois dias foi essa explosão natural, temperada de receio, vigilância policial e a tentação portuguesa de procurar o pecado no vizinho do lado. Estamos todos frágeis, estamos todos indefesos diante da propaganda e da mentira e, isso sim, é assustador.
Da coluna diária do CM.
Há uns anos convidaram-me para falar no salão dos Leões da Lapa, associação desportiva e etnográfica da Póvoa de Varzim. Foi uma conversa de duas horas, a princípio tímida – depois retomada noutras circunstâncias. Nunca esqueci os Leões da Lapa. Na sessão, os homens trajavam de camisa aos quadrados, meia branca de lã, boina – e havia senhoras de saia de merino, blusa de renda e avental de risca. Era farda solene, de que eu conhecia só as camisolas poveiras. Mas estavam em desuso. Usei uma (em miúdos, passávamos férias na Póvoa) e, durante a adolescência e até hoje, as pessoas riam-se da ousadia. Que era piroso. Isto, claro, até Tory Burch ter copiado uma delas e anunciar que eram mexicanas. Escândalo nacional – e o governo, ridiculamente, a ameaçar processos judiciais. Quando alguém se escandaliza, desconfio. Durante anos, usar camisolas poveiras era sinónimo de provincianismo e piroseira. Parte dos que se escandalizaram agora também se escandalizaram quando o ministro Álvaro Santos Pereira propôs a internacionalização do pastel de nata. Em vez de se escandalizarem, mexam-se como deve ser.
Da coluna diária do CM.
Perguntamo-nos muitas vezes sobre o que vale, verdadeiramente, a nossa vida quando morre um amigo nosso, praticamente da nossa idade. António Almeida Henriques, que morreu de Covid, foi um dos melhores amigos que tive na minha, por assim dizer, curta “vida política”, mas que ultrapassou esse pequeno alcance. Era jovial, otimista, encontrava soluções onde se multiplicavam dificuldades; foi sempre tolerante e cordial mesmo quando cercado de hostilidade e de maledicência. Amava a sua cidade, Viseu. Mais do que isso, gostava do futuro da sua cidade; e reinventou-a, tornou-a cosmopolita, organizada, verde, cheia de música (a alegria com que falava disso) e boa para viver. Amava a sua família. Era um homem livre a quem os aparelhos políticos nunca aprisionaram. De certa maneira, compreendeu a tempo o significado das palavras “elegância” e “disponibilidade” – que transportou para a vida pública. E, portanto, o que vale verdadeiramente a nossa vida quando um amigo da nossa idade desaparece? Só isto: aproveitar cada dia que passa, também em seu nome – e da nossa família, dos que nos acompanham.
Da coluna diária do CM.
George Friedrich Häendel morreu em Abril de 1759, um pouco depois da Páscoa, quando era costume ouvir-se a sua oratória Messias, de que todos conhecemos o coral “Halleluiah”. As duas Paixões de J.S. Bach (Mateus e João) ou a sua Oratória de Páscoa (de 1725) eram outra das presenças permanentes nesta época. Outros tempos. Explicar que o simbolismo da palavra Páscoa (‘passagem’, ‘Pessach’, do hebraico) está ligado à travessia do deserto em busca da libertação (preferível à original – a passagem do anjo da morte no Egito), e também de redenção e dignidade, é hoje em dia um trabalho inglório e destinado ao fracasso. Mencionar também o sentido da Páscoa cristã (o triunfo sobre a morte), é mais tempo perdido. Basta dizer que num caso estamos a recordar o deserto e a fuga à escravidão, e que no outro lembramos a barreira da morte e a alegoria da ressurreição. O Ocidente tornou-se laico, primeiro – mas cínico e ateu depois. Falar disto é uma espécie de despropósito num mundo que reduz a Páscoa a confeitaria e chocolate. Mas, como aqui já disse, alguma coisa deve restar no nosso coração.
Da coluna diária do CM.
A conversa daria pano para mangas, mas ficamos por aqui: o gozo que dão as estatísticas. Anteontem, o governo congratulou-se pela diminuição da criminalidade de rua e pela queda acentuada de violência doméstica; os números ajudam em tempo de pandemia. Como durante algum tempo ninguém andava pela rua, compreendemos que haja menos criminalidade de rua – e como não houve tantas queixas sobre violência doméstica, também se compreende. Mas, tirando a anedota, todos os dias vemos números e percentagens que vitoriam o nosso senso comum – e sentimo-nos cientistas sociais. 76% de queda nos hotéis, 30% de diminuição dos acidentes rodoviários, menos 30% de pneus consumidos, menos 30% de lixo urbano, mais gastos com eletricidade. Estes dados não podem ser notícia, mas fazem títulos gordos e explosivos. Vejam-se os da criminalidade, que nos alegraram; tal baixa de 11% na “generalidade dos crimes” deve-se, no entender de um sociólogo de Marte, à baixa de turistas estrangeiros. Logo, a culpa, pode bem ser deles. Vão ver que, mal haja turistas, o crime aumenta. A culpa só pode ser deles.
Da coluna diária do CM.
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