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Passo a explicar: em janeiro passado, na posse do novo presidente americano, Joe Biden, a poetisa americana Amanda Gorman leu o poema “The Hill We Climb” (“A Colina que Escalamos”, que deu o título a um livro seu), tornando-se na mais jovem autora a ser escolhida para essa cerimónia. Talentosa, negra, jovem (nasceu em 1988), com uma ascensão meteórica, bem paga – a escolha de Biden foi simbólica e bem acolhida. Tanto assim que as traduções dos seus poemas se sucedem um pouco por toda a parte, como nos Países Baixos, onde a prestigiada editora Meulenhoff se preparava para publicar o seu livro com tradução de Marieke Lucas Rijneveld, poetisa e ficcionista que no ano passado ganhou o prémio Booker. Acontece que, apesar do entusiasmo da própria Amanda Gorman, Marieke (nascida em 1991) é branca, o que gerou uma onda de protestos de “ativistas” na imprensa de Amesterdão: a tradução teria de ser entregue a uma pessoa “assumidamente negra”. A editora pediu desculpa; a tradutora, batendo no peito, pediu desculpa e aceitou não traduzir. Um mundo assim, dividido entre brancos e negros, dá pena.
Da coluna diária do CM.
Ontem, o The Daily Telegraph fazia uma pergunta incómoda e, à primeira vista, ridícula: “Os casos de coronavírus estão a cair globalmente, mas a grande questão é: porquê?” A exceção parecem ser certos países onde houve um ligeiro aumento de casos (Irão, Iraque, Índia e Indonésia). No resto, parece que temos resposta: confinamentos brutais, primeira onda vacinação, uso de máscara (lembrem-se da máscara e do negacionismo da máscara), imunidade de grupo, cuidados pessoais. A maior parte dos cientistas sabe, no entanto, uma coisa perturbadora: que o vírus é “notoriamente imprevisível”. Nos primeiros dias da pandemia fui buscar o Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, e A Peste, de Albert Camus, para ver o que nos esperava; voltei agora a esses romances, apesar do que ainda estamos tragicamente a viver – em ambos aparece uma misteriosa sensação: “E então, subitamente, tudo terminou.” Saramago, severo, reteve a lição da nossa desumanidade durante a “epidemia de cegueira”; Camus, melancólico, aceita a lição da imprevisibilidade, mesmo sabendo que um dia o vírus sairá do esconderijo. Regressámos a essa era, a da imprevisibilidade.
Da coluna diária do CM.
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