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Fossem de outro lugar no mapa os habitantes de Pemba, ou de Quionga, Palma, Maganja, Olombe, Calomba ou Assumane – e já haveria indignação portuguesa e resposta internacional aos alertas que desde há dois anos têm sido dados (e repetidamente) sobre a violência jihadista na província de Cabo Delgado, em Moçambique. Fossem, em vez de Moçambique, do Médio Oriente ou do Levante, ou da América Latina, para não mencionarmos a Europa, claro está – e as “entidades internacionais” já teriam respondido ao horror perpetrado na região. É claro que também seria importante que a União Europeia (sobretudo quando a presidência calhasse a Portugal, por exemplo) reagisse, como lhe compete, ou que as Nações Unidas (talvez se fosse um português na presidência) chamassem a atenção da opinião pública mundial sobre as matanças de centenas de inocentes abandonados e desprotegidos, que têm decorrido em Cabo Delgado perante a passividade mais ou menos geral. Finalmente, como um europeu foi atingido pela violência, a imprensa falou do assunto. São todos muito anti-racistas – mas ignoram África, naturalmente.
Da coluna diária do CM.
O responsável da associação de hotéis e turismo do Algarve (e que a esta hora já deve ter deixado o cargo) cometeu o deslize de, pela primeira vez, falar em público daquilo que todos sabemos em privado – que boa parte dos prémios atribuídos ao turismo português (a hotéis, praias, programas de viagem, etc.) é, afinal, combinada e paga, como acontece em todo o lado. Estes prémios da treta são muito populares na nossa imprensa e anunciados com toda a pompa daquele orgulho nacional que se põe em bicos dos pés. É compreensível. Esses prémios valorizam o principal produto português, o turismo – e quem vai agora discutir se uma certa praia é considerada “a melhor do mundo” ou se certo hotel é “o melhor da Europa”? Nós, aqui em casa, sabemos que não são – mas não desmentimos, porque se trata da vidinha, da política e do negócio, além da vaidade de província, que tão bem resulta. São boas coisas, sim; algumas até são excelentes; mas sabemos que o paraíso não nasceu na faixa de terreno mais ocidental da Península e que deve ter havido alguma marosca. Onde fica a melhor coisinha do mundo, onde é?
Da coluna diária do CM.
Devemos ter vergonha do nosso país. Em Inglaterra, as pessoas de 70 anos terão vacinas de reforço (a terceira dose) a partir de setembro a fim de os proteger das novas variantes; em Portugal, a faixa 65-79 é menos vacinada (com uma ou duas doses) do que a de 25-49 e 50-64. Ou seja, este país não é para velhos – nem para quem não rende um bom alforge de votos. Pais e avós à beira dos 80 (entre eles, doentes oncológicos), aguardam a chamada enquanto a TV passa imagens de gente com 20 e 30 anos que repousa depois da vacina e as autoridades assinalam o sucesso da operação, que este fim de semana aumentou o fosso e a injustiça. Um país deve ser avaliado pela forma como trata os seus velhos – e Portugal não só os tratou mal durante a primeira fase da pandemia como, depois de juras hipócritas e desculpas nunca apresentadas (sublinhemos o “nunca”), os relegou para uma terceira linha de proteção contra o vírus e a ameaça da morte, com a cumplicidade de todos os partidos. É pena que, diante disto, o Presidente da República não tenha uma palavra de reparação e de conforto para os nossos pais e avós.
Da coluna diária do CM.
Aos 12 anos, com o apoio de um médico e ativista transgénero, uma jovem canadiana iniciou tratamento de testosterona e, um ano mais tarde, a escola mudou-lhe o nome – para masculino. O pai não sabia. Aliás, a lei não exige que os progenitores sejam informados da decisão de adolescentes que queiram iniciar o processo de mudança de sexo. Isso acontece em alguns estados americanos e no Reino Unido com o argumento de que deve prevalecer “o superior interesse da criança”. O assunto ultrapassa-me largamente porque penso que, até se atingir a maioridade, as autoridades devem informar os familiares responsáveis, até para averiguarem se estamos em presença de eventuais dramas de violência ou maus tratos domésticos. Não assim neste caso. No início deste mês, quando a criança já tinha 14 anos, o tribunal de Vancouver ordenou que o pai não podia tentar persuadir a criança a abandonar o tratamento de mudança de sexo, nem dirigir-se-lhe pelo seu nome original ou referir-se-lhe como sendo rapariga ou do “género feminino”. Ele desobedeceu, ou seja, chamou-lhe “ela”. O tribunal meteu-o na prisão. Pronto.
Da coluna diária do CM.
Simone, Yves e Marilyn. Uma história de glória, paixão e humilhação. Yves Montand traiu Simone depois de ter contracenado com Marilyn em Let’s Make Love.
Simone Signoret: não é fácil esquecer o seu rosto, que tinha tanto de melancólico quanto de patife – o cinema colocou-o em tela, a literatura fixou-o para sempre na sua autobiografia A Nostalgia Já Não É o Que Era, publicada em 1975, dez anos antes da sua morte, o mesmo ano em que saiu Adeus, Volodia, um romance. Também não é fácil esquecer a sua presença ao lado de Yves Montand, num casamento de três décadas, que sobreviveu à traição com Marilyn Monroe, com quem Yves contracenou em Let’s Make Love. Esse olhar patife sobreviveu também a todas os homens (e mulheres, como Vivien Leigh) que estiveram a seu lado na tela, de James Mason a Lino Ventura, Jean-Pierre Cassel, Lawrence Olivier, Terence Stamp e o próprio Yves (em A Confissão, o filme de Costa Gravas). O seu olhar em Aquela Loira ou em A Ronda, de Max Ophüls, filmes onde faz de prostituta, ou em Thérèse Raquin (adaptação do romance de Zola), onde é uma esposa triste, é inesquecível e contrasta com o de Um Lugar na Alta Roda, papel pelo qual recebeu o Óscar de Melhor Atriz. Simone Signoret (1921-1985), a bela e teimosa, nasceu há 100 anos.
Da coluna diária do CM.
Há exatamente 300 anos, a 24 de março de 1721, Johann Sebastian Bach enviava ao marquês de Brandenburgo-Schwedt, o manuscrito do que na altura intitulou Seis Concertos com Vários Instrumentos. Diz-se que, em 1719, os dois homens se teriam encontrado em Berlim – o marquês (e tio do rei da Prússia), que nem era propriamente um melómano, ficou impressionado com o “virtuosismo” de Bach. Também se diz que, em 1721, o ano em que se casou com Maria Magdalena, Bach estaria a ficar sem mecenas e quis, com isto, garantir um protetor (se bem que, no ano seguinte, se mudasse para Leipzig, onde se fixou ao final, 1750). De qualquer modo, os seis concertos foram esquecidos na biblioteca do marquês até à sua morte, em 1732; as partituras foram então vendidas por uma quantia que rondam, em dinheiro de hoje, os 25 euros – e só seriam descobertos um século mais tarde. Salvos do esquecimento por um acaso, são uma das grandes peças da história da música – e não os conhecer é um pecado capital; não têm ligação aparente entre eles senão o génio assombroso de Bach. Neles, a música flutua sobre nós.
Da coluna diária do CM.
Os alunos da Universidade de Columbia, Nova Iorque, podem considerar-se felizes. Daqui a um mês terão lugar os cerimónias multiculturais das formaturas, e a universidade, além de convidar os estudantes a “refletir sobre o crescimento pessoal e as suas experiências”, organiza os festejos em ambiente devidamente compartimentado para preservar a identidade de cada grupo. Assim, no dia 25 há uma cerimónia só para nativos americanos; no dia 26, reúne-se a “comunidade alfazema” (“lavender”, é como está designada a comunidade LGBTQIA+); asiáticos e asiáticas, é no dia seguinte; a 27, juntam-se os primeiros da sua família na faculdade ou com rendimentos mais baixos; a 29, são recebidos os “latinxs” (ou seja, latinas e latinos); finalmente, a 30, a sessão é reservada à comunidade negra. Os alunos devem identificar-se com estola, pin ou outro símbolo, para não serem confundidos. Claro que nos poderíamos perguntar se não seria melhor reunir todas as comunidades, para assim “partilharem as suas experiências em comum”, mas parece-me que a ideia é fabricar guetos e não aboli-los. Parabéns a todos.
Da coluna diária do CM.
Hoje, comédia italiana – ou seja, parte da minha adolescência em televisão e cinemas de província – para vos recordar Nino Manfredi, que nasceu há exatos 100 anos. Para parte dos meus leitores é uma velharia; para outros, uma viagem ao passado, a um mundo de ; para a maioria, creio, é como se falasse de um desconhecido. Seja – mas Manfredi merece evocação ao fazer o papel do marginal, velhaco e risível Giacinto de Feios, Porcos e Maus, de Ettore Scola (1976), um marco de comédia amarga. Dois anos antes entrara em Tão Amigos que Nós Éramos, do mesmo Scola, com Vittorio Gassman ou a provocante Stefania Sandrelli – a história de Itália no meio século, de antes e de depois da guerra (com momentos cómicos de um esquerdista, um ‘vendido’ ao sistema e um inteletual pobretanas), mas na década anterior entrara em duas comédias sobre papéis e identidades sexuais que me fazem sempre sorrir, Alta Infidelidade (de Mario Monicelli, com Monica Vitti, Ugo Tognazzi, ou Aznavour) e Desta Vez Falamos de Homens (de Lina Wertmüller). Era um grande ator, de primeira linha, um ícone do nosso riso.
Da coluna diária do CM.
Um dia, para vermos obras de Lucian Freud, teremos de ir à secção de velharias de um museu.
Por que razão têm as pessoas cada vez mais medo do passado? Porque não o compreendem, porque vê-lo dá trabalho e é necessário um pequeno esforço. Museus em todo o mundo estão cada vez mais interessados em “arte contemporânea” e em “desconstruir” a arte – do que mostrar as glórias do passado, cheias de sombras, destinos, pecados sociais e sexuais. Por isso, alguns museus parecem-se cada vez mais com galerias de decoração de interiores, onde as burguesias ricas e de “gosto cosmopolita”, ou oligarcas moderninhos, visitam oficinas de serralharia e de trabalhos manuais, com peças boas para colocar nos corredores dos seus apartamentos. O Museu Rainha Sofia, de Madrid, também vai rever toda a sua coleção (deixa apenas ‘Guernica’ de Picasso), para se centrar na arquitetura, América Latina, ecofeminismo, exílio, Trump e pandemia. Um dia, para vermos obras, já não digo de Gauguin, Rembrandt, Vermeer ou Dalí, mas de Lucian Freud, Júlio Pomar, David Hockney, Bacon, Georgia O’Keeffe, Cindy Sherman ou Paula Rego, teremos de ir à secção de velharias desprezadas. É tão fácil desprezar o tempo.
Da coluna diária do CM.
Diz a imprensa que o novo Capitão América – uma criação original de 1941 destinada a empolgar os americanos durante a II Guerra como um herói nacional, e depois desenvolvida pela Marvel – é gay. Vi de relance os novos filmes e lembro-me dos originais, além de o ter espreitado nos Vingadores. Dou-me por satisfeito e acho normal que saia do armário. No entanto interrogo-me sobre se não seria melhor criar outra personagem e novas genealogias que impedissem uma guerra infinita em torno da sua identidade. Compreendo que a Marvel (e olha quem) não queira abdicar do seu mealheiro, sobre o qual está sentada – inclusive com a questão da autoria original ainda mal resolvida –, mas o que nos impede de ter um Major América gay, uma Mulher Aranha negra, ou uma rival feminista que bata o pateta do Super-Homem? Serei o primeiro a aplaudir, feliz da vida por haver mais “diversidade” (vejam como é fácil utilizar lugares-comuns) sem ter sido necessário lavar o passado, fabricar clones, ou criar um conflito de gerações e sensibilidades, todos a lutar por brandir o martelo de Thor, salvo seja.
Da coluna diária do CM.
Anteontem à noite – e ontem de manhã – a comédia triste e repelente da reação europeia e portuguesa à vacina AstraZeneca lembra-nos que, daqui a não sei quantos anos, a pandemia terá sido um desastre na sombra do tempo. Não sei se vale a pena citar Franz Kafka e a célèbre entrada nos seus diários (a 2 de Agosto de 1914, a data marcante para o início da I Guerra Mundial): “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, natação.” O brasileiro Alexandre Soares Silva, um prodígio de humor e talento pouco conhecido aqui, escreveu há um ano uma passagem certamente inspirada nessa passagem de Kafka: “Meu sonho, meu sonho mesmo, era encontrar alguém que tivesse sobrevivido a um furacão e não dissesse uma palavra sobre o furacão no diário. Voando pela sala, estendendo os braços para pegar o diário flutuante, o telhado subindo em espiral ao céu, ele escreveria: ‘Me sentindo meio deprimido hoje. Vou jogar pif-paf’ [jogo de cartas].” Sei que, daqui a uns meses, quando recordarmos esta comédia político-comercial, vamos ter vergonha e ter querido reagir como Kafka o fez: “À tarde, natação.”
Da coluna diária do CM.
A linguagem deve ser, não direi “inclusiva” (a palavra é tão irritante como desprovida de sentido), mas sempre que possível melhorada. O Conselho Económico e Social (CES) procederá a uma lavagem e a um revisionismo sistemático a fim de a tornar “inclusiva”; deixará de haver “desempregados” e passará a haver “população desempregada”, deixaremos de dizer “amblíopes” e passaremos a dizer “pessoas com baixa visão”, tal como os “gestores” passarão a ser “população em cargos de gestão”. Caiam bigornas do céu – mas creio que não será suficiente e que uma enorme multidão de ignorantes, revisionistas, lavadeiras e especialistas em vigilância e punição, irá fazer figurinhas de depurador da língua. Na altura em que, em França, um grupo de sociólogos e políticos ignorantes procedeu à coisa, vozes como Claude Lévi-Strauss ou Georges Dumézil (lamento, não são sociólogos da treta) explicaram, com jeitinho, que o género gramatical não tem a ver com o género natural. A novilíngua veio para ficar, como arsénico que tudo empobrece, desejosa de regenerar a espécie humana e de fomentar a ignorância.
Da coluna diária do CM.
Passam hoje 20 anos sobre a morte de Robert Ludlum (1927-2001), que foi um best-seller nos anos 70 e 80, sobretudo depois de O Caminho para Gandolfo, A Agenda Ícaro e especialmente da série de três livros protagonizados por Jason Bourne (Identidade, Supremacia e Ultimato, publicados entre 1980 e 1990) – e que o cinema adaptou com felicidade e liberdade (com Matt Damon a representar Bourne). A Herança Scarlatti (1971) foi o caminho de uma longa metragem escrita página a página. Vasco Pulido Valente dizia que um dos seus sonhos era passar parte do verão a ler Robert Ludlum, e percebo bem a tentação: Ludlum era um profissional desses livros de espionagem & ação – não um escritor vocacionado para a alta literatura. Era meticuloso na descrição, visitava todos os sítios sobre que escrevia, documentava-se como um bom repórter e não fingia ser quem não era. Li parte dos seus livros como um suplemento de preguiça para muitos verões tranquilos apenas moderados pelo seu suspense. A fórmula era sempre a mesma: um herói solitário contra a conspiração do poder. Funcionava em pleno.
Da coluna diária do CM.
Oiço os acordes de “Adiós Nonino”, que Astor Piazzolla compôs em 1959 (na sequência da morte do seu pai, que tinha essa alcunha): baixo, violoncelo, violino, um harmonia de cordas – e ‘bandoneón’ (o acordeão do tango, para simplificar). Oiço a cadência, lenta e melancólica de “Vuelvo al Sur “ (“Regresso ao Sul/ como se regressa sempre ao amor,/ de regresso a ti/ com o meu desejo, o meu medo./ Eu carrego o Sul/ Como um destino do coração...”) – se puderem, procurem a versão com a maravilhosa voz de Roberto Goyeneche. Oiço também “Otoño porteño”, sublime homenagem a Buenos Aires, ou “Milonga del Angel”, ou a euforia de “Libertango”. Podia continuar por muito tempo, mas nada me retira da memória a primeira noite, a primeira manhã e a primeira tarde em Buenos Aires, com uma espécie de música de Astor Piazzolla (1921-1992), que reinventou não diria o tango – mas a melancolia argentina e, por extensão, a nossa própria melancolia, de Bach a Gershwin, passando por Stravinsky. Passam hoje cem anos sobre o seu nascimento. Ouçamos Astor Piazzolla por causa de tudo o que teve uma melodia.
Da coluna diária do CM.
Tive de ir ao site da agência Reuters para confirmar que a Unilever (o conglomerado de produtos de beleza e higiene pessoal) vai retirar das suas marcas a designação “normal” – cabelo normal, por exemplo, ou pele normal. Julgava que se tratava de uma notícia falsa mas, por outro lado, rejubilei. As marcas da casa já tinham prometido deixar de retocar a cor, a textura ou a forma dos seus modelos publicitários – o que não deixa de ser suspeito; mas retirar a expressão “normal” de um champô porque uma certa percentagem de pessoas se sente “marginalizada” e “humilhada” é, também, uma boa oportunidade de negócio num mundo em que as grandes marcas do capitalismo e dos negócios entram na guerra das políticas identitárias, apropriando-se dos seus símbolos e das suas bandeiras. Depois de tentar normalizar a maior parte dos consumidores, produzindo em massa e sem qualidade, o capitalismo industrial descobriu um novo negócio: criminalizar, de certa maneira, as pessoas aparentemente “normais” (um estigma, daqui em diante) ou que sempre julgaram que não tinham, pelo menos, cabelo seco o oleoso.
Da coluna diária do CM.
Sabem quem são Harry e Meghan? Eu sabia por alto, mas a a entrevista que deram a Oprah Winfrey (naquele cenário de jardim da Malveira a que só faltava um par de patos) encheu-me as medidas. Meghan Markle, que era uma atriz medíocre, desceu de categoria – e Harry é o típico millenial, a queixar-se do corte na mesada aos 36 anos. Gostei da parte em que os dois falam de “viver autenticamente”, ou seja, num jardim da Malveira rodeados de patos e galinhas, representando os papéis de atriz milionária zangada com a sogra, casada com um príncipe milionário, parlapiando com apresentadoras milionárias de televisão, fingindo que toda a gente acredita nas mentiras piedosas, nas queixas de racismo chique e nas lágrimas de plástico. Não, não me tornei um especialista da “vida da realeza”; apenas me surpreende a forma como um casal de tolinhos (que queriam fazer parte da coroa mas não tinham visto The Crown) é apaparicado pelo moderno ativismo americano, pela Casa Branca e pelos trabalhistas ingleses. Ou seja, queria dar-vos conta de que, como republicano, estou do lado da Rainha de Inglaterra.
Da coluna diária do CM.
Quem, no seu estado mais ou menos saudável, não alertou já (nem que seja para si mesmo) “para o perigo das redes sociais”? Tornou-se uma ocupação a tempo inteiro. Aliás, creio que não há figura pública que não alerte “para o perigo das redes sociais”, esse mundo em que tudo anda à solta e grande parte em anonimato, distribuindo ressentimento e imbecilidade em roda livre. Ameaças, perseguição e maledicência, violência verbal, maldade pura, mentiras a rodos – há de tudo, como no género humano. No meu caso, quando alguém me diz “vi no Facebook” (não tenho) não ligo importância ao que vem a seguir; não por preconceito – só por sanidade; é um albergue de loucos. Acontece que boa parte dos alertas “para o perigo das redes sociais” são, no entanto, duvidosos. Muita gente ganhou “nome e fama” nesse albergue – e estava tudo bem enquanto eram só beijinhos e retratos com gatinhos. Mas o género humano não engana; o que sobe, há de descer; o que é bom, há de ser atacado com inveja e despeito; por isso, quando alguém alerta “para o perigo das redes sociais”, limito-me a sorrir. É tão bom – não foi?
Da coluna diária do CM.
A imprensa lusitana despertou da sua letargia cultural e transcreveu ontem os respingos de um texto da agência Lusa sobre um “trabalho de investigação” realizado por uma aluna de doutoramento EUA – acerca da “linguagem racista” de Os Maias. Melhor, como os jornais decretaram ontem, “passagens racistas” do romance. Trata-se, claro, de uma imbecilidade, tomar diálogos irónicos e facetos de João da Ega ou fragmentos e referências igualmente irónicas como exemplos do “racismo” de Eça. Que uma aluna de doutoramento de uma universidade de americana mostre a sua ignorância acerca do que são a literatura ou a ironia e fale de “instrução culturalmente responsável” (só isto já merece gargalhada), não é escândalo num mundo de tolinhos. Mas é notável que um representante da Associação de Professores de Português, escutado a propósito, diga serem evidentes “os preconceitos raciais presentes em Os Maias e em outros textos de Eça”. Além de ser falso (basta procurar nas suas cartas), é mau que um professor de português não distinga ironia, literatura, antonomásia ou catacrese. Caiam do céu as bigornas.
P.S. - João Pereira Coutinho escreveu sobre o assunto um belo artigo na Folha de S. Paulo; nele, diz que a única raça que Eça desprezou era “a sua”. Algumas pessoas não entendem a ironia, de novo. Vem no João da Ega, precisamente, quando no (ia a escrever “célebre”, mas tudo em Os Maias é célebre) jantar em honra do Cohen ele se põe aos gritos: “A pior raça da Europa!” Não conhecia, ainda, a nova vaga de investigadores de literatura.
Da coluna diária do CM.
Passam amanhã, 6 de março, 100 anos sobre a fundação do Partido Comunista Português. Desde aquele objetivo inicial de “transformação radical da sociedade capitalista em sociedade comunista” até aos dias de hoje, o PCP mudou como tudo mudou; Porém, ao longo de um século, nem adormeceu nem conseguiu ser uma força maioritária na vida portuguesa – mas já teve o seu papel decisivo e influente durante os anos 70, quando tentou apropriar-se do país. Tenho uma secreta admiração pela sua história; não por aquilo que o PCP é, ou defende e defendeu, mas pela sua dimensão de “personagem de romance”, marcado pela obstinação, capacidade de resistência, disciplina, espírito de sacrifício pessoal, sentido messiânico e episódios de heroísmo. Essa epopeia, em que Cunhal é o semideus e o grande arquiteto, só pode ser literária e marcada pelo sentimento de culpa, porque não é possível alguém defender os crimes do comunismo (ou absolvê-los) e ficar incólume. O messianismo comunista está hoje vivo em poucos lugares do mundo, mas permanece com Jerónimo de Sousa – na sua idade, no modo de falar, na cadência evangélica herdada de Cunhal, outra figura de romance.
Da coluna diária do CM.
De quem sentimos falta desde há 30 anos? De Serge Gainsbourg (1928-1991). Ainda se recordam daquele dueto maravilhoso com Catherine Deneuve, “Dieu est un fumeur de havanes”? Sinto falta dele. Hoje, Gainsbourg seria de novo perseguido por sexismo, má conduta, incorreção política, alcoolismo, seja o que for. Todos nos lembramos de “Je t’aime, moi non plus”, que ele compôs para Brigitte Bardot, uma das suas famosas namoradas, mas popularizada com Jane Birkin, com quem casou (só em 1986 se conheceu a gravação com Bardot, a quem dedicou várias canções). Já agora, as que compôs para Birkin – a eterna, “Ex-fan des sixties” –, minha musa de adolescência; as que compôs para Françoise Hardy (“Comment te dire adieu”), France Gall, Juliette Gréco, Marianne Faithfull, Dalida ou Petula Clark. Judeu (errante e sedentário) que foi obrigado a usar a estrela amarela durante a ocupação nazi da França (a família fugiu da URSS depois da revolução), pintor, ator e autor, cineasta, Gainsbourg não era fácil, mas faz-nos falta. “Je suis venu te dire que je m’en vais”, ainda o oiço. Morreu há 30 anos.
Da coluna diária do CM.
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