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Em Espanha, a esquerda (ou, pelo menos, um dos partidos do governo) defende que a imprensa precisa de “controle democrático”, de escrutínio político. Em Portugal não é preciso que o poder se candidate a moralizar a imprensa. Cidadãos bem intencionados e na plena posse das suas faculdades declaram “não poder admitir” o “estilo acusatório com que vários jornalistas se insurgem contra governantes”, o tom das entrevistas (é preciso respeitinho) ou “os libelos acusatórios contra responsáveis do Governo e da DGS", ignorando que — em todo o lado, como escreveu Amartya Sen, são as perguntas da imprensa que impedem situações de maior risco. Sim, era preferível não haver imagens dos hospitais, das filas de ambulâncias, dos erros de planeamento, do silêncio dos que partem. Há pontos em que não é difícil concordar (e sobre eles o senso comum já nos alerta há muito) com esta Carta Aberta publicada anteontem (nomeadamente: o excesso de repetições, abuso de imagens dramáticas, a banalização da morte, longos telejornais) – mas, atrás de uma boa ideia, a tentação está lá, misturada com a defesa dos amigos (o que se compreende, devemos defendê-los). As “autoridades”, quando confrontadas, já criaram o rótulo de “anti-patriótico”; é sempre bom sabermos que gente tão bem intencionada também pode cair na armadilha de preferir a imprensa bem comportada, a aplaudir quando convém e a aconselhar moderação. Salvo quando lhes não convém.
Da coluna diária do CM.
Sei pouco de José Atalaya, que morreu no final da semana passada (1927-2021), como compositor – mas recordo-o bem em mangas de camisa, de colarinho e cabeleira à solta, a dirigir uma orquestra no Coliseu de Lisboa. E a conversar com o público, “maioritariamente jovem”. Sempre sonhei com a ideia dos Concertos Promenade (os Proms, que a RTP2 transmite todos os anos), criados em Inglaterra no final do século passado, reabilitando a ideia de concertos de “música clássica” em jardins e lugares amenos – os concertos para jovens de Atalaya, e o modo como nos divertia, eram um pouco isso. Tive a sorte de ter sido aluno do maestro José Ferreira Lobo, que fazia das nossas aulas de Educação Musical (e Canto Coral, se se lembram) autênticos Proms, manejando discos de vinil com trechos de sinfonias, quartetos, concertos e óperas, mostrando-nos como a música era um acontecimento disponível para ser festejado. Os programas de divulgação de Atalya (como a série A Música e o Silêncio de António Victorino de Almeida), eram um extraordinário acepipe para o amor pela música. Merece a nossa homenagem.
Da coluna diária do CM.
A revolução será transmitida pela televisão porque, como de costume, é sempre melhor longe de casa. A Europa revolucionária sempre gostou da América Latina por isso – era do outro lado do mar; os maoistas dos anos 70 eram sobretudo “maoistas de Paris”, e não esperava vê-los a limpar os destroços do Agosto Vermelho de Pequim, o início da revolução cutural. Espanha é mais perto e colocar o acento tónico na liberdade de expressão é um avanço. Acontece que o rapper Hasell, em nome de quem os vândalos destroem todas as noites o pedaço de uma cidade diante das câmaras de televisão, não é propriamente uma vítima inocente. Nem é detido por ter “insultado a a Coroa”, um direito seu – e ninguém se importa – mas por ter acumulado acusações sucessivas por mitificar os terroristas da ETA ou dos GRAPO (muito maoistas também), por defender que se vá “mais além” das palavras, por ameaçar testemunhas e incitar à violência (e à morte) sobre políticos, jornalistas ou polícias – é um chique tremendo. Em resumo, Hasell declara-se um “preso antifascista” e, de máscara, os seus fãs assaltam o que podem. A imprensa portuguesa nem pestaneja a fazer-lhe a biografia de herói.
Da coluna diária do CM.
Em Itália há uma ONG que quer banir a Divina Comédia, de Dante (este ano comemoram-se os seus 700 anos), das escolas italianas, porque a obra – um dos livros essenciais da cultura ocidental –, “ofende homossexuais, muçulmanos e judeus”. Sejam bem vindos. Nada disto é novo. Em 1983, a esquerda francesa, através do jornal Libération, pedia que o governo de Mitterrand colocasse no índex (por “provocação pública e ódio sexista”) obras de Hemingway, Thomas Hardy, Rabelais, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, todo o Kafka e a poesia de Baudelaire. Avancemos: ontem, 18, numa universidade americana, Darmouth (Mass.), uma investigadora fez uma conferência intitulada “É Os Maias um romance racista?” Pobre Eça, que tanto se preocupou com o racismo, a injustiça e a segregação. Nada disto é novo. Como não entendem nada de literatura, os ativistas dos cursos de letras preocupam-se com a “misoginia”, o “racismo” ou o “machismo” de Eça. Para os mais otimistas, aviso que nas nossas universidades vamos ainda ouvir falar do Pessoa racista & colonialista, do Camilo protofascista e misógino, do Camões e do Vieira imperialistas. Os tolinhos estão em todo o lado, e vão continuar.
Da coluna diária do CM.
Diz-se que o escritor Robert Browning (1812-1889) tratava a sua mulher Elizabeth Barret Browning (1806-1861), que escreveu a mais bela poesia inglesa da época vitoriana, por “minha pequena portuguesa”. É certo que os antepassados de Elizabeth viveram na Jamaica, para onde se registou uma elevada imigração de judeus portugueses – mas o marido escolheu “portuguesa” por causa da tez morena da autora de “How Do I Love Thee?”, um poema maravilhoso, publicado justamente no livro Sonetos Portugueses (Sonnets from the Portuguese), que terminou por volta de 1845, altura em que o casal viajou para Roma, primeiro, e Florença, depois, onde se fixaram para o resto da vida – trabalhando “a partir de casa”, como diz a sua biógrafa Fiona Sampson no livro Two Way Mirror, biografia que é publicada hoje em Inglaterra. Os Browning criaram, pois, uma espécie primitiva de teletrabalho – e a cura contra os males de saúde de Elizabeth (que estava em confinamento perpétuo devido a dificuldades respiratórias), graças a comida fresca, sol, vinho e caminhadas noturnas. Não sei se estão a ver onde quero chegar.
Da coluna diária do CM.
Nada pode justificar as imagens de violência policial captadas ontem, no Barreiro. Caçar desobedientes ao “confinamento” tornou-se um desporto por parte das entidades policiais; não que não estejam em cumprimento da lei e das suas obrigações, mas porque se trata, muitas vezes, de um dispositivo desproporcionado e invulgar, com vistosas operações de auto-stop, controle discricionário, apoio das televisões e, por vezes, uso e abuso da posição de autoridade junto de pessoas que se limitam a ir trabalhar e não podem limitar-se a “ficar em casa” para cumprir um retiro espiritual. O “confinamento” tornou-se um pesadelo para muitos portugueses – e tanto o Estado em geral como as autoridades de proximidade parecem ter-se habituado ao controle que exercem e ao seu papel de mestres-escola quando o pano de fundo é a incompetência para passar mensagens não contraditórias. Não se podem desculpar a violência nem a insensatez dos que desobedecem às medidas mais elementares. Mas o “confinamento” está a tornar-se além das injustiças e situações de desespero que provoca – caso de anedota e de inabilidade.
Da coluna diária do CM.
Regresso por vezes à leitura de Mau Tempo no Canal (de que coleciono várias edições, de 1944 até hoje), de Vitorino Nemésio, para espairecer e recordar como era a Língua Portuguesa quando a escrevíamos com maiúsculas. Não porque um escritor deva ser um repositório do Dicionário da Academia (que, aliás, não temos) ou da gramática escolar (que tem pouco interesse) – mas porque os transcende. A história de um desamor (entre Margarida Dulmo, João Garcia e Roberto Clark) e de uma guerra de famílias passa-se entre quatro ilhas: Faial em primeiro lugar, depois o Pico, depois São Jorge e, finalmente, em epílogo de passagem, a Terceira. Almanaque de famílias, manual de botânica e geologia, estudo de meteorologia e de arquitetura, recolha de dialeto, apontamentos de humor ocasional, notas sobre endividamento e isolamento, Mau Tempo no Canal é trágico e como na literatura portuguesa do século passado talvez só conseguiram ser Aquilino e Agustina, nossa última voz clássica; a sua melancolia, iluminada pelo clima das ilhas, produz personagens que não podem esconder nada. É uma obra-prima.
Da coluna diária do CM.
De excepção em excepção, e sem um pingo de bom senso, a novela das proibições de venda de livros ameaça não ser apenas uma tolice, mas entrar no anedotário português. Daqui a uns anos havemos de recordar este tempo em que se podiam vender livros em quase todos os lugares, excepto em livrarias – e em que o primeiro-ministro anuncia que só não proibiu a venda de livros porque o Presidente da República o proibiu. Se Portugal fosse um país de leitores impenitentes, vorazes e entusiastas, as autoridades sanitárias bem podiam temer ajuntamentos de cidadãos diante das livrarias – mas a realidade é que estamos nos últimos lugares das estatísticas europeias de leitores. Primeiro, proibiu-se a venda de livros nos supermercados invocando normas de concorrência; agora, permite-se o negócio em supermercados e certos espaços comerciais que também tenham livros nas prateleiras, agudizando as questões de concorrência, mas mantendo a proibição de as livrarias abrirem para vender a única coisa que podem: livros. Como os livros não choramingam nem se empoleiram em protestos, não são escutados.
Da coluna diária do CM.
Ao contrário do que acontecia com a tradição universitária que mandava discutir, arriscar e contrariar, as novas gerações “protegem-se do perigo” – nos EUA criaram “zonas seguras” onde os estudantes não podem ser “agredidos” com discursos que os contrariem ou contenham ideias maléficas. No Reino Unido vigiam-se bem as audiências, proibindo-se conferencistas importantes mas discutíveis e cujos livros possam ser “problemáticos”. Basta sair um pouco do cânone, pressentir-se o mais pequeno risco de polémica. Veja-se a universidade de Durham (RU), onde a associação de estudantes exige ser informada do tema das conferências com duas semanas de antecedência, ou de quatro se o tema for “controverso” – caso em o texto da conferência deve ser conhecido previamente, a fim de não conter referências racistas, misóginas, transfóbicas ou homofóbicas, anti-semitas ou colonialistas. Os estudantes têm o direito, diz a comandita que governa a universidade, de não serem incomodados com ideias desagradáveis. Em silêncio, isso já se passou entre nós. Os nossos antepassados, que criaram a Europa e discutiram com intensidade e paixão, devem estar a rir.
Da coluna diária do CM.
Todos imaginamos o que vamos fazer “depois disto”. Um almoço de família, um jantar com amigos; um reencontro com os pais, com os filhos, os avós; um manhã na esplanada, uma caminhada pelas ruas da cidade; uma ida às compras (roupa, livros, inutilidades), um jantar ao ar livre; um passeio ou uma pequena viagem de fim de semana, uma saída noturna. Deixar de estarmos vigiados, controlados aqui e ali. Receber amigos em casa. Nem tudo vai ser fácil – uma pandemia não se interrompe; devagar, vai cedendo; e nós, com igual lentidão, vamos reconstruindo o tempo. Este é um aviso sério para os políticos que têm de decidir e para as empresas que têm de reabrir com urgência: tudo vai ser lento e quase tudo vai ser difícil. No Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, ou em A Peste, de Albert Camus, a vida retoma-se de um dia para o outro, mas haverá muitas feridas para tratar, as janelas abrem-se para o ar entrar em casa, ainda que sem provocar vendavais. Esse – a pressa – foi o erro fundamental do verão passado. Vamos reaprender a caminhar, passo a passo. E lembrar os que partiram. Não vai ser fácil.
Da coluna diária do CM.
Os livros devem ser vendidos em livrarias, estejam elas onde estiverem – no nosso bairro, em praças onde entramos à procura delas, num beco escondido da chuva de inverno e da luz do sol, num supermercado onde compramos comida, em corredores de um centro comercial. Onde elas estiverem como estamos nós. O pedido para que, isoladamente, se autorizasse a venda de livros nos hipermercados soou-me sempre mal: porque nunca compreendi que, estando autorizada a abertura de lojas com venda à porta, ou no postigo, se proibisse a abertura de livrarias à porta – ou no postigo. Um interessante e compreensível lóbi de livreiros, aliados do governo, defendeu esta ideia como totalmente justa, na medida em que permitia aproveitar os apoios ao ‘lay off’. Apesar dos argumentos deste lóbi junto das autoridades, a decisão de proibir a venda de livros em livraria (à porta ou no postigo) não é justa e não está a ter bons resultados. É um argumento ideológico que menoriza e infantiliza a área do livro; esperamos que novo estado de emergência isto seja corrigido e as livrarias possam entreabrir as portas.
Da coluna diária do CM.
Gostava bastante de Christopher Plummer (1929-2021), que interpretou a figura do barão Georg Ludwig von Trapp no filme Música no Coração (de Robert Wise, 1965) – e havia um belo motivo: ele considerava-o “aborrecido, sentimentalão e banal” e irritava-o muito a parceira Julie Andrews; trabalhar com ela “era como ser todos os dias atingido na cabeça por um postal a dar-nos os parabéns”. Este canadiano de Toronto era tudo menos aborrecido, de bigode ou sem ele, na televisão ou no cinema, sempre em estado de ironia e auto-ironia, representando personagens tão variadas (de comandante no Star Trek IV a Sherlock Holmes) como modeladas pelo seu temperamento de resmungão amável e divertido, muito melhor a representar um “mau” do que um “bonzinho”. Talvez por isso ele tenha sido genial no palco, interpretando Shakespeare. Para quem o julga apenas capaz de papéis secundários (em que se tornou um especialista) há registos notáveis de A Tempestade, de Henrique IV, Macbeth ou Sonho de uma Noite de Verão. Morreu aos 91 anos na semana passada. Fazendo, por certo, uma piada sobre si próprio.
Da coluna diária do CM.
Hoje, se fosse vivo, James Dean festejaria os seus 90 anos – desapareceu aos 24, depois atuar em A Leste do Paraíso e Fúria de Viver, ambos de 1955, o ano da sua morte. Mas hoje assinalamos também o centenário de uma das grandes lendas de Hollywood, Lana Turner – não sei se se recordam de O Destino Bate à Porta, a versão de 1946 de O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes (também podemos ver a de 1981, com Jack Nicholson e Jessica Lange, ou a de 1943, de Luchino Visconti, Obsessão), onde Lana sobe ao estatuto de estrela. É um filme e tanto; o seu papel é marcante, cheio de falsa inocência, escaldante, e é definitivo na história do erotismo. A sua vida – uma criação do cinema – há de estar ligada a ele e aos seus equívocos: sete casamentos, sete divórcios, muitas ligações perigosas, o drama da filha Cheryl (que matou o seu amante Johnny Stompanato), alcoolismo – e filmes que construíram um destino nem sempre feliz. A sua beleza era tão mítica quanto rara e infernal. Há momentos discretos, bem como parcerias eternas (com Clark Gable, por exemplo). E não a esqueceremos nunca.
Da coluna diária do CM.
Os livros vendidos nos hipermercados não são os mesmos das livrarias físicas ou online (onde há diversidade e pluralidade) – são, sobretudo, livros que os hipermercados decidem vender depois de as livrarias, que arriscam a pele e são o nosso orgulho, os terem promovido. Mesmo assim, os hipermercados não podem vender livros. No entanto, podemos comprar magníficos e insubstituíveis bens à porta de lojas que decidiram abrir; não livros, porque o ministério da Cultura foi formatado para não o autorizar. Depois de criar-se a ideia de que “a cultura” se esgotava no universo do espectáculo e dos concertos, que atravessam uma crise grave, as autoridades da Cultura & da Economia são indiferentes à crise igualmente grave em que vivem editores, livreiros, autores, tradutores, designers, impressores e distribuidores – o setor que nunca lhes dá trabalho nem fornece dependentes. Pelo contrário: é um dos mais importantes nas chamadas “indústrias culturais”. Espero que dia 14, na renovação previsível do estado de emergência seja corrigida esta injustiça tremenda que coloca o Estado no meio do ridículo.
Da coluna diária do CM.
Eu gostava muito quando ela aparecia no ecrã. Tinha um ar doce e sorridente – Adelaide João passou por nós, por todos nós, com aquela graciosidade de senhora simpática, mas é importante que falemos do seu talento, da sua carreira no teatro, da popularidade na televisão que tanto a fazia desempenhar papéis de gravidade (em projetos de Artur Ramos, em textos de Camões, Arthur Miller ou Tchekov) como personagens de comédia. Não é fácil ser atriz de papéis secundários, estar na sombra e iluminar o palco, obrigar-nos a rir quando aparece (ela fingia maravilhosamente aquele seu ar desajeitado e desorientado), obrigar-nos a reconhecer nela uma mãe, ou uma avó, ou uma tia com quem gostamos de conversar precisamente sobre a telenovela onde entrava Adelaide João. Ou reconhecê-la nesse papel secundário sempre que nos cruzávamos com ela num filme (de Fonseca e Costa, Fernando Lopes ou Manoel de Oliveira, por exemplo). Houve magníficos atrizes e atores de papéis secundários (supporting actors sem os quais não há nada), Adelaide João era uma das nossas melhores, até anteontem, até aos 99 anos.
Da coluna diária do CM.
Passam hoje 570 anos sobre a definitiva subida ao poder de Mehmed II (ou Maomé II, 1432-1481) no Império Otomano, de que é uma das figuras históricas admiráveis, juntamente com a de Solimão, o Magnífico, que viveu um século mais tarde. A data tem interesse porque dois anos depois, em 1453, Mehmed II, o Conquistador, pôs termo ao Império Romano do Oriente, ou Bizantino, com a tomada de Constantinopla – determinando que a catedral de Hagia Sofia passava a mesquita, mas nomeando o patriarca cristão como governador da cidade. Criou bibliotecas, palácios, universidades, rodeou-se de humanistas, permitiu a liberdade religiosa – e foi amigo de Gentile Bellini, pintor a quem encomendou um retrato seu e paisagens de Constantinopla. E também uma pintura de S. João Batista decapitado – ou seja, da cabeça oferecida a Salomé. Quando o quadro chegou, Mehmed achou que Bellini, que estudara anatomia com Leonardo Da Vinci, não fizera uma boa representação do pescoço dilacerado. Para o provar, mandou decapitar um escravo, mostrando-lhe o erro de pormenor. Já o retrato do imperador, esse, é perfeito.
Da coluna diária do CM.
Como fui criado no tempo em que ainda existiam caderninhos para “palavras difíceis”, vi com interesse O Professor e o Louco, um filme (com Mel Gibson e Sean Penn) sobre a criação do primeiro grande dicionário moderno, “o Oxford”, como designamos a obra monumental organizada por James Murray a partir de 1879 (20 volumes). Ora, não bastava incluir uma palavra no dicionário – era preciso mostrar como ela tinha chegado até nós, como fora usada ao longo dos séculos e de que forma “os autores” lhe tinham modificado o sentido. Murray, que falava 18 línguas, era um erudito mas, além de anotar as palavras dos escritores, acabou por prestar atenção à linguagem popular, o que fez do Dicionário de Oxford uma obra pioneira. Uma beleza. Penso nisso quando imagino o dicionário informal de certos best-sellers portugueses; parece que a ideia, hoje, não é a de usar o tesouro e os mestres da nossa língua, mas a de, por preguiça (“e para ser entendido”) banalizar e empobrecer orgulhosamente a escrita. Ao folhear os manuais de Português vejo a mesma pobreza. É um legado muito triste.
Da coluna diária do CM.
Podíamos dar voltas e voltas em redor de Rhett Butler, a personagem interpretada por Clark Gable (1901-1960) em E Tudo o Vento Levou (1939), ao lado de Vivien Leigh. Cínico, destemido, perigoso, herói em silêncio mesmo quando sabe que está do lado errado ou condenado a uma derrota previsível, Rhett nunca perde nem a aura de cavalheiro nem o tom de amargura sem ilusões. É difícil separar Clark Gable desse papel, que marcou todos os filmes que fez daí em diante, de Mogambo (de John Ford, com Ava Gardner e Grace Kelly) a Os Inadaptados (de John Huston, com Marilyn Monroe), até mesmo em comédias inocentes, como Começou em Nápoles (com Sophia Loren). Mas a filmografia de Gable, que é vasta, deu-nos sobretudo um grande ator, um intérprete capaz de usar quase todas as máscaras sem perder a elegância de um patife e o sorriso de um cavalheiro. Modelo de uma masculinidade de outros tempos (até na sua paixão comovente por Carole Lombard), mítico sedutor de Holywood, Clark Gable é inesquecível. Até hoje, quando passam 120 anos sobre o seu nascimento. Não, não podemos esquecê-lo.
Da coluna diária do CM.
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