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De entre os “romances políticos” do século XIX, há três que vale a pena ler a propósito dos nossos tempos: As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis (com o suplemento militante e o idealismo infantil de Os Fidalgos da Casa Mourisca), o extraordinário Eusébio Macário (e a continuação em A Corja), de Camilo, e O Conde de Abranhos, uma comédia burlesca (a que se podem acrescentar A Capital e Os Maias) de Eça. É um mundo: os diálogos bufos e facetos, as nomeações de conveniência, a corrupção, os pantomineiros e velhacos, as conveniências, a impunidade dos peraltas e caciques, a ignorância provinciana, a boçalidade, a apropriação de vantagens; mas também o povo maltratado e pobre a quem se pode mentir e que não sabe nem quer distinguir a verdade da mentira, bem como a manipulação sem vergonha que passa por habilidade pura. A classe que está hoje no poder (bem como a que espera que, por milagre, o poder lhe caia no colo) sabe que tudo isto lhe podia ser fatal noutro país – mas só aqui os 303 mortos da pandemia podiam ser anunciados apenas depois do debate parlamentar.
Da coluna diária do CM.
O patriotismo é o último refúgio de um canalha. A frase é de Samuel Johnson (1709-1784), autor notável, e convém lembrá-la. Frequentemente, em circunstâncias funestas, críticas e dolorosas, invoca-se o patriotismo como uma espécie de benção e tábua de salvação. Não é. Temos uma ideia do que é patriotismo – mas não somos capazes de o definir. Como temos uma noção do que é a pátria – mas ela é várias coisas. Nos últimos tempos, as autoridades (um conceito que também é flutuante) insistem em que criticar o governo, duvidar das suas decisões ou discutir as medidas durante a pandemia – é anti-patriótico. Ou criminoso, até. Trata-se, naturalmente, de resultado do cansaço e da pressão extrema vivida no último ano, e só assim pode ser desculpada. Não encontro outra explicação porque uma acusação como essa é, sempre o foi, o último refúgio de um canalha. Em termos políticos é a expressão de um autoritarismo provinciano; no resto, é uma pulhice disfarçada. No momento em que diariamente morrem os nossos, anonimamente e sem qualquer outra proteção diante do silêncio, a acusação é vergonhosa.
Da coluna diária do CM.
Estamos salvos. A Disney americana acaba de retirar do seu catálogo filmes infantis como Dumbo, Peter Pan ou Os Aristogatos – e onde os colocou? No catálogo para adultos, porque os filmes “incluem estereótipos e conteúdos racistas”. Mas, como se não bastasse esta imbecilidade, a Disney – que se transformou numa fábrica de patetas – também inclui na projeção dos vídeos um aviso informando os adultos de que “este filmes podem conter representações culturais obsoletas”. Basta uma referência (há um gato siamês em Os Aristogatos que pode ofender pessoas asiáticas) para estragar tudo. Não vale a pena invocar a razão, a necessidade de alguma correção sensata, um módico de serenidade e ponderação – a revolução tem de ser feita depressa e com violência. É um princípio leninista e maoista que as plataformas e a indústria americana do entretenimento adotam, tomadas de assalto por uma nova elite ignorante e quadrada, formada por “ativistas do bem”, desejosos de limpar todo o passado e toda a memória. No fundo, são pornógrafos disfarçados de puritanos.
Da coluna diária do CM.
Duas coisas boas do fim de semana: por um lado, eleições, que correram bem; por outro, uma razoável quantidade de professores que decidiu, por sua conta e risco, preparar materiais para enviar aos seus alunos durante este período de “férias” forçadas que terão consequências mais brutais na saúde mental, na aquisição de conhecimentos e no equilíbrio de adolescentes “confinados”, do que o recurso ao ensino à distância mesmo nestas condições. Isso não conta para os que decidiram, pura e simplesmente, encerrar as escolas depois de terem menosprezado com ligeireza as ameaças da pandemia, de terem faltado às suas promessas populistas (as de fornecer milhares de computadores e de prepararem aulas online até ao início do ano) e de falharem na proteção ao trabalho dos estudantes. Nisto, o mais irritante é quantidade de oportunidades perdidas pelo caminho bem como o enviesamento político e partidário que pesa sobre decisões desta natureza. Pela primeira vez aconteceu no meu país que, no cumprimento da lei, a polícia interveio para fechar escolas; é estranho, mas a culpa não é só da pandemia.
Da coluna diária do CM.
Ontem de manhã o secretário de Estado da Saúde informou-nos que existia um largo “consenso político” sobre a abertura das escolas. De facto, bastaram quatro horas para o Presidente da República – depois de falar com o primeiro-ministro – nos informar da necessidade de até hoje, quinta, se tomar a decisão de encerrá-las. O primeiro-ministro, que tinha fechado os ATL na sexta-feira, e que os tinha reaberto na segunda, informou-nos entretanto que mandaria fechar as escolas se descobrisse que havia infeções com a variante inglesa (que atingirá os 60% em fevereiro), como se não bastasse que o número de casos no escalão 10-19 anos tivesse ultrapassado o dos 60-69. Entretanto, houve um momento de grande enlevo filosófico: interrogada por um jornalista sobre o número de exceções do confinamento, a senhora Ministra da Saúde diz que é falso; o jornalista prova, com factos, que é verdade; a ministra diz que “as exceções não se contam pelo número mas pela forma com as interpretamos”. Houve um tempo em que se dizia “os factos são errados”; agora, basta dizer “os factos são inúteis”. Bem vindos.
Da coluna diária do CM.
Nunca imaginei que um governo mandaria retirar livros das prateleiras dos supermercados, nem em nome da concorrência. As perdas no mercado editorial, em 2020, foram da ordem dos 17%. Talvez seja bom lembrar que a indústria da edição (que junta autores, editores, impressores, tradutores, livreiros, designers, distribuidores) é o maior contribuinte das chamadas “indústrias culturais”, quer em valor, quer em emprego, quer em exportação além de desempenhar um papel central nas nossas vidas, na nossa cultura e na nossa língua e identidade. Nem que fosse por motivos simbólicos, a proibição de venda de livros nos supermercados, nas lojas dos correios, seja onde for, seria um gesto importante para a edição, uma área da cultura que não recebe apoios do Estado e que, apesar de tudo, sobrevive e cumpre um papel essencial nas nossas vidas. A batalha pelo livro não pode ser apenas vista como um “problema do comércio retalhista”. Que o Ministério da Cultura não entre em campo a defender o livro, não me surpreende, infelizmente. Que o governo o faça desta forma brutal, é um sinal perigoso para todos.
Da coluna diária do CM.
A primeira versão do guião de O Desconhecido do Norte-Expresso (1951) é de Raymond Chandler, mas ele achava que a história, que adaptava o livro de Patricia Highsmith (1921-1995), era fraca. Não tinha razão e o filme, de Hitchock, fez-se sem ele; quatro anos depois, nasceria Tom Ripley, a personagem de Highsmith que mais nos marcou e que vive em cinco livros (adaptados ao cinema), o primeiro dos quais O Talentoso Mr. Ripley. A vida faustosa de Ripley começa quando mata Dickie Greenleaf, inicia a carreira de falsificador de arte e é obrigado a cometer ocasionais homicídios – mas o talento verdadeiro é de Patricia Highsmith, que nos obriga a ficar do lado do criminoso. É uma saga de suspense e de uma psique negra e nervosa, que aliás marca todos os livros da autora, como O Grito do Mocho, O Diário de Edith, Gente Que nos Batem à Porta, para citar alguns. Patricia Highsmith é mais do que uma escritora; cria ambientes, personagens sempre em queda pelo abismo, explora o nosso sentido do estranho e o nosso medo da verdade. Um génio. Passam hoje 100 anos sobre o seu nascimento.
Da coluna diária do CM.
Hoje, que passam 140 anos sobre o nascimento de um dos grandes editores franceses, Gaston Gallimard, gostava de vos recordar que, em 1995, o agente literário Christopher Little tinha enviado para o lixo o manuscrito de um livro intitulado Harry Potter e a Pedra Filosofal. A autora, Joanne Rowling, vivia em Edimburgo, tinha atravessado um mau período em Portugal e enviara-lho cheia de esperança. Uma assistente de Little, Bryony, gostou da encadernação e recuperou-o do lixo. Little leu-o e levou-o a 12 editores, que o recusaram. Até que uma pequena editora, a Bloomsbury, decidiu publicá-lo, com um adiantamento de 3000 euros e uma tiragem de 500 exemplares. Saiu em 1997, os americanos pagaram 110 mil dólares para poder publicá-lo e a Warner deu quase 2 milhões pelos direitos para cinema. Joanne, que mudou o nome para JK Rowling, tem uma fortuna de 850 milhões de euros, graças ao trabalho de Little, cuja vida dava um filme. Morreu em Londres, aos 79 anos, foi vendedor de madeira, têxteis e papel no Oriente (onde viveu grande parte da vida), trabalhou na banca e gostava de râguebi.
Da coluna diária do CM.
Não sei se se lembram dos primeiros tempos, mas o mundo mudou depois da Wikipedia, criada há exatamente vinte anos (a 15 de janeiro de 2001) por Jimmy Wales e Larry Sanger. Hoje em dia, a cada dúvida e em cada início de pesquisa sobre qualquer tema – sentados no sofá da sala ou à mesa do café –, puxamos do smartphone e procuramos na Wikipedia. Só por isso (a frase é absurda) já valia a pena a internet. Claro que ao longo destes vinte anos foram semeados erros, imprecisões e enviesamentos, sobretudo no domínio da história e das chamadas “ciências humanas”, onde a apropriação da Wikipedia é parte do combate ideológico e político; além de muito ter favorecido a preguiça nas escolas secundárias, por exemplo, e até certos trabalhos universitários de baixo nível. Mas é um bem inestimável se soubermos que aquelas páginas são um recurso de circunstância e não a palavra definitiva, um primeiro passo e não uma cábula para a posteridade, uma referência móvel e não um monumento. De todos os defeitos da internet, de que cuja qualidade nos queixaremos sempre, não faz parte o acesso à informação.
Da coluna diária do CM.
Toda a gente ficou muito satisfeita porque o Twitter bloqueou a conta de Donald Trump e, assim, o ainda presidente americano deixou de exibir o estado permanente da sua tolice. O problema é que a decisão não foi tomada pelo Congresso, nem pelo Senado, nem pela Casa Branca – foi uma empresa tecnológica que faz parte do poderoso universo onde entram a Google ou a Facebook, e que têm no comércio, controle e vigilância de dados (ou seja, de nós) uma parte essencial do seu negócio. Há aqui, portanto, um perigo imediato: o de um conglomerado tão poderoso, suspeito e fora de escrutínio poder calar quem quiser, incluindo um presidente eleito. Mais: trata-se de empresas que alimentam um credo e um saco de gatos ideológico no qual dão guarida às coisas mais absurdas das modas e dos ativismos ‘progressistas’ de hoje. O seu poder é maior do que se imagina e a suas manias ideológicas são subtilmente impostas ao universo online a partir de uma bolha na Califórnia. Trump é um sujeito que não se convida para jantar; mas tenham cautela com as festividades, porque um há outro monstro a tomar o poder.
Da coluna diária do CM.
Tinha prometido não comentar mais o tema ‘pandemia’ – mas é impossível ver deslizar os números catastróficos dos últimos dias. Um raide diário de mais de 100 mortos desenha essa catástrofe com crueza bastante e, na minha idade, já não tenho paciência nem para “negacionistas” da gravidade do vírus, nem para propagandistas das virtudes da Dra. Graça e do Dr. Costa. Posso compreender ambos – mas com dificuldade. O país ultrapassou ontem a barreira dos 150 mortos: não é uma barreira, é uma crueldade que não admite desculpas daqui em diante. 155 mortos em Portugal correspondem aritmeticamente a 3226 no Brasil e, para simplificar, a 5003 nos EUA (números que as televisões exibiram como uma vergonha universal em dois países dirigidos por que se sabe). As contas, feitas assim, são injustas e maldosas, certamente – mas dão uma ideia de como as coisas foram efetivamente mal geridas. Tão maldoso e injustificado como dizer que a culpa pela desgraça é “dos portugueses”. Nós, cidadãos, não somos epidemiologistas nem decisores políticos. Mas sabemos reconhecer um desastre quando está à nossa frente.
Da coluna diária do CM.
Saul Bellow, um dos grandes mestres do século XX, escreveu na altura o prefácio a The Closing of the American Mind, de Allan Bloom (A Cultura Inculta na tradução portuguesa). No fundo, Bloom alertava para as consequências do fomento da ignorância, da superficialidade e da incultura promovidas pelo sistema escolar – uma sociedade sem regras, sem ponderação, sem sensatez. No fundo, previu um Trump na Casa Branca – um entre muitos. Inculto, nababo, obsessivo, mimado, sem leituras nem conhecimentos de História, nem de Ciência, nem de urbanidade, modelado pelo poder do dinheiro e dos desejos individuais. Não estou a fazer discurso moralista. As reformas escolares das décadas de 70 e 80 (muito modernas, destinadas a facilitar a vida aos meninos) produziram, em larga escala, camadas deploráveis de gente assim. Ao contrário do que pensavam esses reformadores – que torpedearam a cultura geral, o estudo e a exigência –, o género humano, sempre que pode, desce de nível, fomenta a preguiça inteletual, promove o que há de pior em cada momento. Lá como cá, não sei se me entendem.
Da coluna diária do CM.
O “fenómeno Trump” não me intriga – é suficientemente repulsivo. O seu comportamento pueril, histriónico, de ditador cómico, estava previsto. Não que, como aqui escrevi, não fosse preciso compreendê-lo nas suas raízes, como uma tentativa de se apoderar dos “americanos esquecidos” pela elite de Washington, que responderam dando-lhe o seu voto. Mas um demagogo é um demagogo, se me faço entender – lá e aqui. Encarar um demagogo como um antídoto contra a decadência ou a corrupção, é deitar tudo a perder a médio prazo, porque depois de instalado exibirá os piores instintos pessoais e as piores companhias que lhe deram acesso ao poder. A direita como a esquerda têm as suas tentações periódicas, tal como o “homem comum”, desprotegido e sitiado pela penúria, pela indiferença e pela injustiça. Mas o preço a pagar pelo apoio a demagogos deste género é sempre alto. Os republicanos, na América, pagarão caro pela sua desistência e por terem aberto as portas a um ser tão infantil como Trump. Em Portugal, é bom que a direita aprenda a lição e a desventura dessa permissividade. Nunca compensa.
Da coluna diária do CM.
Passam no próximo domingo 60 anos sobre a morte de Dashiell Hammett (1894-1961), autor de O Falcão de Malta e criador da figura do detetive Sam Spade. Esse livro é o seu grande legado – foi adaptado ao cinema por John Huston (o título em português foi Relíquia Macabra), e merecia essas três brilhantes interpretações: as de Humphrey Bogart (como Sam Spade), Mary Astor e Peter Lorre. Em português, estão publicados A Chave de Cristal, Colheita Sangrenta ou A Maldição dos Dain; nestes dois o detetive é Continental Op, um operacional privado que conta as histórias na primeira pessoa, mas de que nunca saberemos o nome – e que influenciou a construção dos detetives de escritores como Raymond Chandler (Marlowe) ou Mickey Spillane (Mike Hammer), duros, com nervos de aço, determinados e solitários. Dashiell Hammett foi casado com a escritora comunista Lillian Hellman e autor de uma centena de histórias. Preso, condenado por actividades anti-americanas, não teve uma vida feliz. Este fim de semana poderíamos ler um dos seus livros, ou rever Relíquia Macabra. É uma bela homenagem.
Da coluna diária do CM.
Parece que, entretanto, vão realizar-se as eleições presidenciais. O acontecimento está a ser reduzido, por todos (e por mim também) a uma espécie de plebiscito a Marcelo Rebelo de Sousa; a questão essencial, portanto, é a de saber-se por quanto irá o Presidente ganhar as eleições, e se se aproxima de uma percentagem recorde – e quem vai ficar em segundo lugar. Ora, acontece que este passeio triunfal não é uma coisa saudável para a democracia; não só impõe uma boa dose de indiferença nos debates e nos eleitores, como, ainda por cima, decorre no inverno em pleno agravamento da pandemia, o que irá contribuir para abstenção. Não percebo duas coisas. A primeira: por que não foi possível retirar do boletim de voto a cara do candidato que não vai ser candidato? Nenhuma explicação me convence, a não ser as de preguiça e atavismo – e o gosto pelos votos nulos. A segunda: não percebo por que motivo não se investiu, atempadamente, no voto por correio a fim de evitar mais aglomerações e risco de contágio. Nenhuma explicação me convence, a não ser as de atavismo e preguiça – e o gosto pela abstenção.
Da coluna diária do CM.
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) pensava que a sociedade estava sempre em conflito e que a política podia ser vista como uma espécie de guerra civil contínua; além disso, o seu objetivo não seria o de agir em nome de uma ideia de “bem comum” ou de “acordo geral” mas o de satisfazer a “vontade de poder” – sendo que todas as relações sociais teriam em vista o poder, não no sentido abstrato ou jurídico, mas para ser efetivamente exercido até controlar todos os aspetos da nossa vida. Princípios destes podem ajudar-nos a compreender melhor a vida portuguesa; quando uma sociedade é fraca, pouco informada e sem gosto pela independência (mental e económica, por exemplo, para não irmos mais longe), quem quer saber se um concurso internacional para procurador europeu foi feito conforme as regras? E, se houve violação das regras, que importância tem isso para efeitos práticos? “Sigamos em frente, isso são lapsos sem importância.” Aliás, “lapsos” sobre “lapsos”, e mais “lapsos” ainda, até ficarmos indiferentes quando eles se repetem e todos se conformam com “o novo normal”.
Da coluna diária do CM.
A história poderia incluir-se no registo da anedota, mas acontece que já vi coisas mais ridículas entrarem pela porta grande – e conta-se em duas linhas: o congressista americano (e pastor protestante) Emanuel Cleaver terminou a oração inaugural do Congresso com o tradicional Amen – mas acrescentou-lhe um Awoman. Claro que isto é ignorância pura, como se o men de amen significasse ‘homens’ (em inglês) e fosse preciso acompanhá-lo de woman (mulher). Como sabemos, amén vem do hebraico (era uma sigla) e transformou-se depois numa palavra em grego, latim e árabe. Felizmente que o mundo não é todo inglês, nem todo americano, nem todo palerma, nem todo ignorante em relação à natureza neutra da palavra amen. Neste caso, ao desejo de fazer “política de género”, muito progressista, juntou-se a ignorância, mas houve quem saltasse em defesa do orador, da mesma forma que o fizeram quando, inadvertidamente, um dirigente político português se dirigiu às massas com um cómico “camaradas e camarados”. Porque é preciso destruir a ordem estabelecida, nem que se fique só pela gramática.
Da coluna diária do CM.
A voz de Carlos do Carmo não nos deixará tão cedo. Faz parte das nossas recordações, identidades e formas de interpretar a melancolia. Nunca me comovem muito as homenagens públicas e nacionais (com um certo desfile de banalidades), mas creio que elas são necessárias até para mostrar os laços da comunidade – Carlos do Carmo é um desses símbolos da nossa sensibilidade, tão bem transcrita em Um Homem na Cidade, um disco que vai figurar para sempre no cânone do fado, tal como em Por Morrer uma Andorinha ou em À Noite (de 2007, onde canta poetas contemporâneos). Uma das coisas que apreciei muito em Carlos do Carmo foi não ter receio de uma certa solenidade que emprestou ao fado, quando o cantava, retirando-o da solidão dos iniciados e da tradição da rua. Mas o que importa é a sua voz. Há pessoas notáveis de que recordamos uma obra singular, a simpatia, a genialidade, as qualidades de trabalho e o esforço em melhorar o seu e nosso mundo; no caso do Carlos do Carmo há tudo isso – e a sua voz. Além de uma cordialidade simples e educada que sempre me comoveu, e que é tão rara hoje em dia.
Da coluna diária do CM.
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