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Despedimo-nos do ano sem grande saudades. Limitados pela pandemia, é melhor não ver televisão, por exemplo, onde se repetem até à insanidade imagens de braços a serem picados, de corredores de hospitais e de lares cercados de ambulâncias. Como já aqui disse, a repetição sem sentido dessas imagens deixa-nos anestesiados, indiferentes, cansados – e deprimidos. Encaremos o que tem de ser. Como os grandes mestres do estoicismo e do taoismo, aprendamos a rir de nós mesmos e a aceitar o que não pode ser alterado; no resto, resistamos. À propaganda doentia e ao medo, sobretudo. E também à tentação de desistir. Alguma coisa nos mostrou este ano: a fragilidade das coisas, por exemplo, que devíamos conhecer bem – mas que às vezes fazemos por ignorar; a importância de um passeio à beira mar ou num jardim perto de casa; o amor aos nossos pais e aos nossos filhos. Se de tudo devemos tirar uma lição, 2020 foi uma fonte inesgotável. Estamos destinados a isso: errar, aprender, começar o novo ano, errar de novo, recomeçar. Se os novos tempos são imprevisíveis, então temos de pensar no que é essencial.
Da coluna diária do CM.
Em 1991, Daniel Blaufuks publicou na revista Ler um admirável conjunto de fotografias de Tânger em que o centro de atenção não era a cidade mas um dos seus mais ilustres cidadãos, o escritor Paul Bowles, novaiorquino que nasceu há exatamente 110 anos, cumpridos hoje. Um ano antes, estreara o filme de Bernardo Bertolucci, Um Chá no Deserto (a partir do livro O céu que Nos Protege, o grande romance de Bowles, de 1949), com Debra Winger e John Malkovich. De certa maneira, é uma peça autobiográfica, como quase tudo o que escreveu: americanos desiludidos que se fixam em Marrocos, à beira do deserto, vivendo histórias de adultério, liberdade, drogas e relações homossexuais. Depois da cena cultural novaiorquina, Bowles e a mulher, Jane, que já tinham viajado abundantemente pela Europa, fixam-se em Tânger em 1947, mal a guerra termina. Músico (excelente), poeta, tradutor, romancista – Bowles afastou-se mas manteve amigos como Gore Vidal, Truman Capote, Allen Ginsberg ou Burroughs, que o visitaram em Marrocos, onde morreu em 1999. Lê-lo é um bálsamo e uma perturbação permanente.
Da coluna diária do CM.
As minhas figuras do ano de 2020 são Leonilde da Silva Barbosa (Quicas) e Cristina Alves. Podem procurá-las no Google mas não vão encontrá-las. Uma e outra, alternadamente, são quem me serve o primeiro café do dia; não é por isso que merecem o título mas porque, quando as autoridades mandavam as pessoas “ficar em casa”, nem toda a gente protestava enquanto mostrava gatinhos no Facebook e péssimo pão no Instagram; elas nunca puderam ficar em casa; a Quicas atravessava as ruas desertas dos arredores de Lisboa em autocarros inseguros e em mudanças de linha onde havia muita gente como elas, que tinha de manter o país a funcionar, de madrugada ao anoitecer. Não vi o seu nome na lista de heróis, não receberam sms para a vacina, não lhes asseguraram emprego. E, no entanto, representam os portugueses que, juntamente com os heróis dos hospitais, lutaram contra o silêncio. Quando via os placards da DGS, ou ouvia os pivots dos telejornais com o seu ar dramático, a pedir para “ficar em casa”, eu lembrava-me da Quicas e da Cristina. Merecem ser figuras do ano em nome de todos os heróis silenciosos e anónimos.
Da coluna diária do CM.
Incapazes de reconhecer um momento solene e o simbolismo dos grandes gestos, os provincianos e pacóvios – quando estão no poder – tudo transformam em propaganda e festival. Não há palavra, sinal, instante de dignidade ou de salvação que escape à girândola de pequenas vulgaridades e de discursos que tanto podiam ser assim como de outra forma. Nada contra. Há um momento, na história da vida política, em que sentimos que estão a fazer de nós parvos e ingénuos – e em que, cansados e sem energia para reagir uma e outra vez, deixamos passar, encolhemos os ombros, ficamos indiferentes ao ruído da propaganda mais fácil. Nada contra. É a vida das personagens que dependem dela, da propaganda permanente, do aproveitamento de cada minuto da nossa vida como se fosse uma dádiva mesquinha. Ontem, a Europa viveu um dia importante como há muito se não vivia: tão simples e tão excecional, tão banal e tão solene, o momento não merecia ser transformado em correria publicitária. Mas nada contra. É por isso que isto não é uma crítica, mas apenas a constatação de que a vida é como é. Um jogo.
Da coluna diária do CM.
A história dos costumes é uma coisa controversa. O “ocidente” tinha, nos últimos anos – em nome da “diversidade cultural” –, deixado de mencionar “o Natal” e passado a escrever “as festas” para não “ofender” os não cristãos. A pandemia obrigou a recuperar a palavra “Natal”, recolocando-a como “festa da família” ou “do encontro” numa sociedade essencialmente laica & comercial, indiferente ou ateia. Foi divertido ver ateus militantes falar da necessidade de “salvar o Natal”, embora se tivesse notado a indignação de duas ou três pobres almas tolinhas (as do costume) exigindo que o Estado laico deixasse de favorecer uma festa de raiz religiosa. Acontece que a comunidade é também feita de laços invisíveis com o passado, rituais confortáveis, evocações – e datas que vão sendo apropriadas ainda que longe do seu sentido original. Somos herdeiros de uma poeira que assenta devagar, com a passagem do tempo, e que não tem a ver com a verdade nem com o rigor da História. Na adversidade, somos aqueles que se sentam para jantar, para esquecer e para voltar a lembrar por que estamos aqui. É bastante.
Da coluna diária do CM.
Tirando algumas páginas mais ou menos facultativas (poucas, de qualquer modo) em que Shoshana Zuboff se entretém pelos ramos do pós-marxismo, a verdade é que A Era do Capitalismo da Vigilância (publicado pela Relógio d’Água) é, certamente, um dos livros mais estimulantes deste ano. O seu tema é a forma como – nós, seres humanos – estamos a ser despojados de identidade e liberdade por entidades desconhecidas que, de forma ilegal e antidemocrática, dominam a acumulação de dados e a circulação de informação na internet. Os grandes desígnios totalitários da Google ou do Facebook assentam no sonho não apenas de controlar ou conhecer minuciosamente o nosso comportamento mas também de o modelar para o futuro – e de tentar tornar toda a nossa humanidade dependente dos seus algoritmos. Se a civilização industrial cresceu aprisionando a natureza, a nova vaga de poderes aprisiona a natureza humana sem dar nada em troca senão a ilusão da partilha de informação. A análise dessa hecatombe faz do livro de Shoshana Zuboff um permanente desafio à nossa ingenuidade. É um importante livro.
Da coluna diária do CM.
Há uma edição antiga de Middlemarch (1871), de George Eliot, que levava um título muito mais interessante: A Vida Era Assim em Middlemarch (tradução de Mário Domingues, a que depois se juntou um prefácio de Jorge de Sena) – mas a versão correta é Middlemarch : Um Estudo da Vida de Província (na Relógio d’Água, tradução de Miguel Serras Pereira). Trata-se não só da obra-prima de George Eliot (1819-1880), mas de uma obra-prima do romance em geral. Eliot, ou seja, Mary Ann Evans, que morreu há 140 anos (assinalados hoje), viveu assombrosamente mas com discrição, foi pioneira a abordar temas de identidade e emancipação feminina, questões de género, casamento, família – e amor. Na sociedade vitoriana, a sua vida foi um exemplo de autonomia e liberdade. Traduziu, escreveu poesia e romance, comentou assuntos religiosos, fez jornalismo, viajou – é uma figura de primeira grandeza. Middlemarch é uma galeria interminável e minuciosa, uma genealogia moral; já Moinho à Beira do Floss (1860) são 500 páginas de puro feminismo na sociedade vitoriana. Qualquer um deles é notável.
Da coluna diária do CM.
Vale a pena visitar Long Island – nomeadamente King’s Point, na península de Great Neck – para imaginar como seriam as festas na enorme mansão de Jay Gatsby, aliás, James Gatz, a personagem de O Grande Gatsby (1925), de Francis Scott Fitzgerald. Lendo o livro (ou vendo o filme, sobretudo a versão escrita por Coppola e onde entram Robert Redford e Mia Farrow – há outra versão com Di Caprio), há quem prefira as cenas novaiorquinas, mas as festas de Long Island são soberbas. Fitzgerald é o grande cronista da época, os anos vinte, e para escrevê-la foi para Paris, olhar a América de longe: a sua “idade do jazz” está cheia de ricos, glamour, vertigem, corrupção e vidas perdidas – não há como fugir a esse retrato, que já vem de Belos e Malditos (1922) e há de chegar a Terna É a Noite (1934). Fitzgerald (1896-1940), que escrevia maravilhosamente e é o melhor da sua geração, entra como personagem oculta e angustiante em todos esses livros (tal como a sua relação com a mulher, Zelda) e a sua biografia é tão amarga como a própria ficção. Morreu há exatamente 80 anos, com apenas 44.
Da coluna diária do CM.
O livro de Obama, Uma Terra Prometida tem passagens muito bem escritas. Donald J. Trump nunca poderá escrever assim, mas esse não será o maior problema de um livro do futuro ex-presidente americano quando finalmente sair de Washington – e sim as ameaças que já pesam contra quem quiser publicá-lo a sonhar com milhões de dólares: boicotes, autores que sairão do catálogo, livrarias invadidas, etc. Não surpreende. Mas uma coisa é boicotar Trump (aconteceu o mesmo com o livro de Nixon), outra boicotar livros de Woody Allen ou J.K. Rowling – ou o que o grupo Hachette está fazer: cancelar contratos com autores incómodos para os “ativistas” e os bem-pensantes do momento. O novo livro da jornalista Julie Burchill, Welcome to the Woke Trials: How #identity Killed Progressive Politics, sobre os excessos das políticas de identidade”, iria ser publicado na primavera, numa das editoras da Hachette. Porém, o editor diz que Burchill fez uns “comentários políticos desagradáveis” (leia-se, críticos da esquerda) no Twitter e cancelou o contrato. Assim estamos. Há muitas maneiras de queimar livros.
Da coluna diária do CM.
O final do ano não está grande coisa. O ano não foi grande coisa, aliás – mas o quadro deste mês de dezembro é o de uma sociedade pulverizada por números manobrados e manipulados até ao absurdo. Os da pandemia, os das vacinas, os da TAP, os da ajuda europeia, os do campeonato de futebol. Transformámo-nos em profissionais da estatística. Diariamente, olhamos para os números de infetados, mortos, recuperados, ameaçados, fugitivos – cada vez com mais indiferença, e cada vez mais anestesiados. Num país onde o salário mínimo é de 700 euros, passámos duas semanas a discutir investimentos de milhares de milhões com dinheiro que ainda não temos numa companhia aérea que ainda não sabemos a quem pertence (na realidade, pertencer “ao Estado” é uma incógnita que nunca se resolve). Às terças (houve semanas atípicas com feriados) os números da pandemia ainda são baixos, mas há em cada um de nós um ser que desconfia. Desconfia do SEF e desconfia do ministro, desconfia da recuperação prometida para 2023 como desconfia do vizinho que foi visto sem máscara. O final do ano não está grande coisa.
Da coluna diária do CM.
Num cemitério de Viena há uma praceta onde estão duas sepulturas e um “memorial” – este é dedicado a Mozart, cujo corpo se perdeu numa vala comum; as sepulturas são de Franz Schubert e de Ludwig van Beethoven (1770-1827), e compõem uma espécie de pódio da música europeia. Podíamos passar uma vida inteira a escutá-los: Mozart, Beethoven e Schubert. Às vezes fico-me por Beethoven, em momentos mais solitários; viagens de carro para as obras sinfónicas. Servem para imaginar dolorosa a surdez do compositor ou a leitura do poema de Schiller (a “Ode à Alegria”), a inovação coral da sua 9.ª Sinfonia. Tenho uma ternura especial pela 3.ª e pela 6.ª por causa de um disco de infância – tal como pelos quartetos de cordas e, naturalmente, pela profundidade de certos momentos das sonatas de violoncelo e piano. E pela duração das suas grandes sequências mais ou menos épicas, ou iluminando os abismos da sua invenção do romantismo, uma espécie de bênção deslizando de cada acorde, de cada harmonia ou evocação. Seja como for, passam hoje 250 anos sobre o seu nascimento. É uma data perfeita para ouvi-lo.
Da coluna diária do CM.
Só um pequeno universo de provincianos e leitores preguiçosos consegue limitar John Le Carré (1931-2020) à chamada literatura de espionagem – um género que se desenvolveu durante a Guerra Fria e onde os seus primeiros livros (Chamada para o Morte, de 1961, ou O Espião Que Saiu do Frio, de 1963, por exemplo) cabiam como obras de primeira ordem. Porém, a partir de O Amante Ingénuo e sentimental (1971) e sobretudo depois da “trilogia de Karla” (A Toupeira, O Colegial Ilustre e A Gente de Smiley), John Le Carré escreveu histórias sobre o nosso mundo, o mar das dúvidas e gente em perigo. Obras-primas como essas e Um Espião Perfeito, Um Homem muito Procurado, A Casa da Rússia ou O Fiel Jardineiro são coisas de espionagem, sim – mas elevam-se muito para lá disso, tão bem escritos e pensados. George Smiley, a sua personagem mais marcante, está nos nossos corações como um modo de ser humano e um intérprete da tristeza ocidental e europeia. Na literatura britânica Le Carré era um clássico nobilíssimo. Foi um dos autores que mais me marcou com a sua arte a sua melancolia.
Da coluna diária do CM.
Acabo a leitura do novo livro de Maria Filomena Mónica convencido de que ele chega muito mais longe do que propõe o seu subtítulo (“Notas sobre nacionalismo”). Na verdade, O Meu País (Relógio d’Água), que abre com uma visita ao tema da “identidade nacional” (é de Orwell a melhor definição sobre “o que é um país”), leva-nos numa viagem pela vida portuguesa desde 1840 aos nossos dias; esses altos e baixos (o ultimato, a República, o salazarismo, etc.) são, com poucas exceções, o resumo de “uma nação talhada para a conquista, para a tirania, para a ditadura e para os domínios clericais”. A frase é de Eça, em 1871 – e, sendo verdadeira, não basta para resumir os maus tratos infligidos aos portugueses quer pelas suas elites (o capítulo sobre a I Guerra é estarrecedor), quer por eles mesmos. Sendo também uma notável biografia da relação entre a autora, o país e a sua história, mostra-nos a respiração da pátria que, década a década, sobrevive a oportunidades perdidas e ao nosso amargo desleixo. É um dos grandes livros deste ano e obriga-nos a uma paragem para a sua leitura.
Da coluna diária do CM.
Hoje é celebrado na Argentina, lembro mais uma vez, o Dia do Tango – ou seja, o dia dos aniversários de Carlos Gardel e de Julio de Caro, expoentes do tango. A data deste ano é especial porque assinala os 130 anos que, na versão oficial, passam sobre o nascimento de Gardel em França, em 1890, nos arredores de Toulouse – a outra versão, não tão querida dos argentinos, é que o mago do tango teria nascido em 1887 (mas também a 11 de dezembro), mas no vizinho Uruguai. Tudo leva a crer que terá sido em França mas, seja como for, foram a voz e a figura de Gardel (que morreu num acidente aéreo, em 1935) que emprestaram ao tango um sentimentalismo melodioso e refinado, de salão, já com dimensão orquestral, de boa sociedade, longe das suas origens de baixa estirpe, entre faquistas e marinheiros, noctívagos, desesperados, mulheres perigosas e homens sem redenção. Jorge Luis Borges escreveu um livro sobre o género – ele gostava desse tom sombrio do tango, tocado e cantado nos bairros fora da lei, celebrando o amor e a morte. Mas hoje é dia de Gardel, dia de ouvir “El día que me quieras”.
Da coluna diária do CM.
Para um dos seus melhores leitores e amigos, a obra de Clarice Lispector (1920-1977) não teria a ver com literatura, “mas com bruxaria”. Clarice, um dos mais importantes nomes da literatura brasileira do século XX, seria meio bruxa. Espaventosa. Estranha. Procurava a obscuridade, as poeiras que nunca assentavam. No momento em que o romance brasileiro se dedicava à luta política e a um certo regionalismo, Clarice publicava Perto do Coração Selvagem (1943). Eram os tempos de Jorge Amado, Erico Veríssimo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos – mas os seus livros não se podiam incluir nesta vaga. Judia nascida na Ucrânia, de onde saiu com dois anos para se fixar no nordeste brasileiro, Clarice Lispector era um corpo estranho nesse mundo tropical; os seus livros aproximavam-na mais de Kafka, Sartre ou Joyce do que do “brasileirismo” de então – introduziam na nossa língua questões feministas e existenciais que a colocavam no lado sombrio da literatura, o que a valorizou muito como uma espécie de excepção no país do samba. A Paixão Segundo GH é, como A Hora da Estrela, um catálogo das suas obsessões sagradas. Passam hoje 100 anos sobre o seu nascimento.
Da coluna diária do CM.
Em 2015 Portugal ultrapassou a Finlândia no índice TIMSS, sobre a aprendizagem de Matemática e Ciências em alunos do básico (4.º e 8.º ano) – e situou finalmente o nosso país na média da OCDE. Vários factores contribuíram para isso, desde a melhoria na literacia familiar até ao fundamental, as políticas educativas adotadas nos anos anteriores, valorizando o ensino do Português e da Matemática, as metas curriculares, os exames e o grau de exigência. No caso da leitura, ficámos acima da média da OCDE. Para assinalar estes dados, que eram muito positivos, o atual ministro da educação, com o aplauso da esquerda em geral, tratou de desvalorizar os exames e a preparação para a avaliação, regressando à ideologia que massacrou a escola nos anos 70 – com a lengalenga habitual. Os resultados de 2019 mantêm Portugal dentro da média, mas com uma queda do 13.º para o 20.º lugar. Em resposta – sobre os alunos que fizeram o 1.º ciclo entre 2015 e 2019 – o governo diz que a culpa é dos governos de Passos Coelho. Já sabíamos que era um mau Ministério da Eucação. Mas confirma-se a falta de caráter.
Da coluna diária do CM.
John Lennon – nascido em 1940 – foi assassinado por um fã há quarenta anos. Tinha quarenta anos. Génio dos Beatles (título que divide justamente com Paul McCartney), Lennon não sobreviveu ao tempo como cantor mas como compositor, estrela do rock e, como então já se dizia, “ativista político” nos EUA, fama que o elevou a um segundo estrelato durante os anos das várias trapalhices de Nixon e o final anunciado da guerra do Vietname. As canções desse tempo, talvez com exclusão de “Jealous Guy” e “(Just Like) Starting Over” são insuportáveis (no pódio, a célebre “Imagine”, com que ninguém merece ser torturado outra vez) tal como as suas aparições com Yoko Ono. A vida das estrelas de rock, geralmente criaturas histriónicas, está sujeito a escrutínio exagerado – e a paixões que costumam justificar os seus tiques mais delirantes. Mas a verdade é que Lennon foi o Beatle para quem os Beatles não bastavam – e para quem a música era sempre outra coisa, ou a salvação da humanidade, ou um passaporte para o “um mundo melhor”. As suas boas canções são realmente boas. Mas era um chato de primeira.
Da coluna diária do CM.
Devemos preparar-nos para a vida depois da Covid – mesmo se ela se prolonga no tempo. Haverá sequelas e não haverá “novo normal”, uma das expressões mais imbecis que se usam por estes dias (tenho uma lista, já agora). A primeira fase da preparação consiste em pensar que vivemos tempos imprevisíveis e que nos devemos resguardar para o dia seguinte. No futuro, quando a vacina chegar, teremos tempo para comer, beber, festejar, ir à praia, reunir-nos aos amigos e à família – mas muita coisa mudará entretanto, e a primeira delas é a forma como usaremos máscara com gripes e constipações fortes. Seremos mais poupados. Mais organizados no congelador de casa. Daremos passagem aos outros nas portas dos lugares públicos. Daremos valor ao tempo de passeio, às caminhadas e ao gozo de estar em casa. E, se não nos roubarem muito mais vidas de forma dramática e a nossa desorganização nos permitir distribuir as vacinas, talvez pensemos que a liberdade (as nossas liberdades) é um bem muito mais precioso do que pensávamos. Tudo o resto será imprevisível. É para isso que não estamos preparados.
Da coluna diária do CM.
Como um meteoro. É assim que vejo Francisco Sá Carneiro (1934-1980), desaparecido há quarenta anos no trágico e ainda por esclarecer “acidente de Camarate”. Um meteoro que atravessou os anos derradeiros do regime marcelista, no qual não via solução; um meteoro que atravessou os dois anos da revolução bem como os da criação da democracia portuguesa – e um meteoro porque quis ser um homem livre no meio dos dois países provincianos em que viveu: o do marcelismo, com o seu autoritarismo, e o da revolução, com a obrigatória referência ao “socialismo militar” (contra o qual lutou) e à pequena moral anti-cosmopolita da época. Liberal que teve de ser “social-democrata” (é uma história cómica, mas verdadeira, a da sua conversão) num país empedernido, Sá Carneiro emergiu de uma geração de homens brilhantes e ambiciosos (Agustina fez-lhes o retrato em Os Meninos de Oiro, um romance grandioso) mas, reformista e enérgico, não contava com a tragédia de um destino demasiado curto, dominado pelos poderes do costume. Morreu aos 46 anos. Não deixou seguidores; só pessoas que não podiam senão admirá-lo.
Da coluna diária do CM.
Quando era miúdo, em Chaves, todos os dias ia pela manhã buscar pão fresco à padaria ao fundo da rua. O telhado da padaria era ondulado, semelhante às das montanhas do Barroso que se viam no horizonte, havia pormenores de cor aqui e ali, barras verticais que desciam abruptamente, curvas inesperadas – só mais tarde percebi porquê: o arquiteto fora um ainda jovem flaviense, Nadir Afonso, que eu quis conhecer depois. Passeei muito com Nadir (1920-2013) por aquelas ruas, e era visita do seu atelier – onde aprendi muito sobre geometria, abstraccionismo, surrealismo, matemática, cor e liberdade. E cavalheirismo. E poesia. E risco. Aquele tempo (os anos 70, com Nadir de pé, descalço, na terra do jardim) não se repete, como sabemos, e é pena. A sua obra obriga-nos a pensar a natureza do mundo e as regras de uma gramática profunda que organiza a nossa maneira de ver e “compreender as cousas”. Nadir Afonso é, com a sua estranha forma de composição, um caso único na pintura e na apreensão matemática da realidade. Passam amanhã 100 anos sobre o seu nascimento. Era um génio cordial e apaixonado.
Da coluna diária do CM.
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