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Wild Wilde.

por FJV, em 30.11.20

Não houve provavelmente, na literatura ocidental, ninguém que conseguisse estar tão perto de confundir “a vida” com “a obra” – ele próprio achava que havia uma ligação estreita entre elas e, por isso, pode dizer-se que Oscar Wilde foi mais um ator do que um autor apesar de O Retrato de Dorian Gray (1891), um romance que nos alegra com o seu cinismo. Mas as frases famosas estão, como não podia deixar de ser, no teatro, O Leque de Lady Windermere, Uma Mulher sem Importância, Um Marido Ideal, A Importância de Ser Amável ou Salomé (1894), a melhor de todas suas peças, que foi interpretada por Sarah Bernhard. Ator ou autor, Wilde chegou de Dublin para introduzir alguma vida e colorido na sociedade puritana daqueles anos – até ser protagonista do escândalo que o arruinou, o seu relacionamento com o jovem Alfred Douglas. Preso em Reading, escreveu De Profundis, uma emotiva e poética carta ao namorado – e que acaba por contradizer definitivamente o seu dandismo cínico. Afinal também se sofria por amor. Morre três anos depois, a 30 de Novembro de 1900; passam hoje 120 anos.

Da coluna diária do CM.

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Maradona.

por FJV, em 27.11.20

Umas pobres almas foram anteontem ouvidas pelas rádios e pela televisão sobre a morte de Diego Armando Maradona. Apanhados pela gravidade do momento, esses seres vagamente morais peroraram sobre o mau comportamento de Maradona, a sua passagem pelas drogas e pelo álcool, a via sacra de maus hábitos – chegando um deles a dizer, em direto, ao vivo e sem lhe ter caído uma bigorna divina sobre o cerebelo, que “já se esperava, não é?”, e outro acrescentando que, com aquela idade, Maradona continuava “a não ter juízo”. É certo que essas vozes não passam dali, da sua mediocridade malfazeja, mas aborrecem. Nenhum deles compreendeu que Maradona, como já o disse, era sobrevoado por um anjo do mal que o mandava fazer coisas magníficas e belíssimas. O resto, todo o resto – eu perdoava por causa do génio. Não suportava nenhuma das suas opiniões, nenhuma parte da sua vaidade tão argentina, nenhum dos seus erros ou grosserias – mas, no momento em que se falava da sua morte, nada disso importava: só as fintas que está a fazer a caminho do céu, convencido de que há de jogar por toda a eternidade.

Da coluna diária do CM.

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Kung fu.

por FJV, em 26.11.20

A cena é memorável: o escritório de Philip Marlowe, o detetive criado por Raymond Chandler (interpretado por James Garner), é totalmente despedaçado a golpes de ‘kung fu’. Foi a primeira vez que Bruce Lee apareceu nos ecrãs de Hollywood, como destruidor. O resto, sabemos: dois anos depois é ele a estrela principal de um filme rodado em Hong Kong, Big Boss, a que se seguem A Fúria do Dragão, O Jogo da Morte e O Dragão Ataca – os meus amigos, que entretanto se tinham inscrito em cursos de artes marciais, imitavam os golpes de Bruce Lee em cenas de grande exibicionismo. O Dragão Ataca, vi-o a espaços, aguentando dez a quinze minutos seguidos, com natural exceção das cenas de A Fúria do Dragão (onde aparece Chuck Norris) filmadas no Coliseu de Roma, um curioso cruzamento entre gladiadores e lutadores de ‘kung fu’, embora os primeiros perdessem sempre – porque a coreografia de Bruce Lee e as suas invenções marciais (o uso dos braços, do cutelo da mão ou dos nós dos dedos) são obra de um deus oriental. Morreu tragicamente novo, aos 37 anos, completaria amanhã 80 anos.

Da coluna diária do CM.

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Uma história da Leitura.

por FJV, em 25.11.20

Sempre surpreendeu, desde os livros de história do liceu, a representação de Leonor de Aquitânia (séc. XII) no seu túmulo na Abadia de Fontevraud, segurando um livro que lê em tranquilidade. Porquê ler depois da morte? Porque a leitura é uma companhia para a vida eterna. Quinhentos anos antes, no primeiro quartel do século VI, São Bento de Núrsia dizia o essencial: “À mesa dos irmãos, não deve faltar a leitura.” Reencontro estes dois momentos ao folhear Uma História da Leitura, de Alberto Manguel (Tinta da China), um livro maravilhoso e uma entrada no labirinto das bibliotecas onde circulamos até ao fim da vida. Alberto Manguel leva-nos de século em século, saltando na mais absoluta desordem, em busca de elementos que permitam definir o espírito do leitor. Mas a leitura é sobretudo diversidade; tanto nos assalta e perturba como tranquiliza e conforta, tanto faz de nós seres amáveis como espectros a esconderem-se quando a noite cai sobre o deserto. Como dizia Anthony Powell sobre certos seres, os leitores podem ser centauros com tochas a galopar rente a um mar coberto de gelo.

Da coluna diária do CM.

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Golpes publicitários.

por FJV, em 24.11.20

Uma boa parte – creio que significativa – do país não concorda com o a realização do congresso do PCP em Loures no próximo fim de semana. Não por preconceito anticomunista – mas porque está “confinada” em suas casas, porque tem os seus movimentos tolhidos pelas medidas de proteção contra o vírus e porque estão proibidos os ajuntamentos. Não porque pretenda que o PCP abdique dos seus direitos políticos. Portanto, o PCP devia poder, em boa consciência, passar o seu congresso a um encontro online – ou adiá-lo. Não o faz, e tem todo o direito de mostrar que o governo é obedecido por toda a gente menos pelo PCP. Será julgado por isso pelos eleitores. Outra coisa é pretender alterar as lei para que o PCP seja obrigado a não fazer o congresso, como quer a parte incumbente do PSD e algumas franjas desmioladas da direita. Seria perigoso e fatal para a democracia. Tão perigoso como o presidente da Câmara de Lisboa querer ilegalizar o Chega. Ambos são golpes publicitários, o do PCP (para provar o que ainda vale um partido estalinista pré-1968), e o de Fernando Medina (para provar que está errado).

Da coluna diária do CM.

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Mas não há remédio.

por FJV, em 23.11.20

Para quem assistiu à penosa conferência de imprensa do primeiro-ministro, anunciando medidas sem ter desmentido as anteriores que, por sua vez, assentavam em dados tão facultativos como esta página de jornal – a sensação que ficou é a de que não se sabe bem o que fazer. Há opiniões ao dispor de cada especialista instantâneo – e as melhores, ou as mais fiáveis, nem são as da senhora DGS (em que pouca gente acredita) ou as da senhora ministra da saúde, que anuncia para janeiro vacinas que, como sabemos, só terá muito depois. No início da pandemia, citávamos A Peste, de Albert Camus, ou o Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, como exemplos do trânsito das epidemias para a literatura. Em dos livros há uma cura a tempo para as pandemias. Não há. Desaparecem apenas. Isto não é coisa que se possa dizer quando o número de vítimas aumenta e a catástrofe paira nos hospitais por culpa das autoridades, que não se prepararam nem prepararam o país (pelo contrário). Podemos bradar contra os Elementos, que enviaram o vírus. Mas não há remédio senão proteger-nos – e proteger-nos da incompetência.

Da coluna diária do CM.

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O conde Tolstoi.

por FJV, em 20.11.20

O meu primeiro contacto com Tolstoi (1828-1910) foi através da televisão – uma série histórica cheia de generais, aristocratas melancólicos, condessas russas, decotes, franceses enlameados e frases sonantes. A minha adolescência defrontou-se com os dois volumes de uma velha edição de bolso de Guerra e Paz (1869, uma edição Europa-América cuja lombada se desfazia de capítulo em capítulo), mas só em adulto completei a tarefa. Anna Karenina (1877), tal como Ressurreição (1899, outra edição histórica, a da coleção Unibolso) e A Morte de Ivan Ilitch (1886) vieram depois. Pelo meio, filmes e mais séries; é impossível ler todo o Tolstoi, e não sei se é desejável – porque se transformaria numa obsessão. Tolstoi é enormíssimo, monumental, um cineasta antes do cinema, um historiador percorrido por um arrepio moralista. Há grandes frases suas que, isoladas (como o início de Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”), são, ou instantâneos fotográficos ou parte de um programa político e religioso para mudar e orientar o mundo, que é o seu lado aborrecido. Morreu há exatamente 110 anos – assinalados hoje, como um inverno russo.

Da coluna diária do CM.

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O cavalo de Tróia do radicalismo.

por FJV, em 19.11.20

Depois da Geringonça há quem deseje uma “frente de direita” para substituir a aliança contranatura reunida em torno do PS. A ideia seria vingar-se depois de Passos Coelho ter ganho as eleições de 2015 nas condições adversas que são conhecidas e de o PS (a fim de perpetuar a casta e a sua oligarquia, como se vê) ter rasgado décadas de tradição democrática, impedindo de governar o partido mais votado –  e aliando-se a um PCP estalinista cuja história nada aconselha senão como personagem de ficção. A aliança entre o PS e a extrema-esquerda foi um passo decisivo para a desestruturação do sistema democrático e um dos primeiros efeitos foi a ascensão do Chega, o primeiro filho da Geringonça, juntamente com a radicalização da vida pública, o acantonamento, a guerrilha constante, as manigâncias políticas mascaradas de negociação – e a desistência dos que, pelo caminho, têm vindo a ser traídos (perguntem na área da cultura, por exemplo). Albergar o Chega para combater o radicalismo é dar guarida ao cavalo de Tróia do radicalismo. Uma pessoa deve escolher as suas vergonhas.

Da coluna diária do CM.

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Cancelar.

por FJV, em 17.11.20

Vi um pouco da entrevista de André Ventura a Miguel Sousa Tavares mas perdi aquele momento em que o entrevistador perguntou ao líder do Chega se ele tinha “um amigo preto”. É verdade que qualquer entrevistador teria o destino traçado na imprensa e nas “redes sociais” porque se espera que Ventura seja, no mínimo, “trucidado” – mas a pergunta é ridícula e não deixa Sousa Tavares em bom estado. Acontece que me interessaram bastante mais as reações públicas, que foram – genericamente – más. Uma figura do PSD defendia, aliás, o despedimento do entrevistador: “Devia valer o despedimento sumário de MST da TVI.” A ideia de despedir jornalistas a pedido não é nova. Se agora foi uma representante do PSD, em tempos uma ministra socialista pediu também publicamente o despedimento de uma jornalista porque lhe desagradava o número de manifestantes que figurava em certa notícia (a jornalista tinha razão). E também me lembro de um grupo de intelectuais pedir, em abaixo-assinado, a dispensa de um certo colaborador literário de um jornal. Temos grandes tradições de cancel culture, como se vê.

Da coluna diária do CM.

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Clark Gable.

por FJV, em 16.11.20

Não sei se se recordam de Os Inadaptados (1961), um filme realizado por John Huston a partir de um conto (e do guião) de Arthur Miller. É um grande filme que todos recordarão por causa de Marilyn Monroe (que, já agora, era a mulher de Miller – até à estreia do filme). Mas a grande figura é Clark Gable, que interpreta a personagem de um cowboy (o outro é Montgomery Clift) prestes a retirar-se: é Gable em grande, notável, misturando o seu cinismo com um último brilho de galã. Estávamos em novembro de 1960 e Gable morreu dez dias depois da rodagem, o que é injusto porque se tratava de um papel notável, quase ao nível do de Rhett Butler, a sua personagem em E Tudo o Vento Levou (1939), ao lado de Vivien Leigh. O cinismo das personagens de Clark Gable é histórico (marcou o de Bogart, por exemplo), desiludido, masculino, perigoso. Viveu rodeado de mulheres (além dos vários casamentos) mas o seu amor por Carole Lombard, de quem ficou viúvo, é o mais marcante. Passam hoje 60 anos sobre a sua morte, mas nada nos faz esquecer Gable nem a luz de prata que o acompanha de filme para filme.

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Os nomes, pessoas reais.

por FJV, em 13.11.20

Todos os inícios de tarde cumprimos a via sacra habitual, consultando o telemóvel para ver “como vão os números”. Por volta dessa hora assistimos diariamente ao espectáculo do contorcionismo interpretativo: os recuperados, os infetados, os internados em UCI, o número de camas, o número de ativos – e o número de mortos e dos que “acabam por morrer”. Já não dizemos “mortos”; insistimos em “letalidades”. Como sabemos, há dúvidas sobre se os números da DGS são totalmente fiáveis; depende de quem os fornece (a DGS usa muito esta desculpa), e também do dia da semana. Anteontem, entre os 82 mortos, contei o do jornalista Artur Portela Filho, romancista nos anos 60, fundador da Opção e do Jornal Novo na década de 70, de quem eu gostava. Só essa presença bastou para recordar que, naquela estatística monótona das conferências da DGS, são nomes o que ali se esconde. O de Artur Portela não foi mencionado, mas na nota necrológica eu li: Covid-19. E, atrás dos números, milhares de nomes desfilaram, de repente, como um clarão de humanidade que o contorcionismo não consegue esconder. Pessoas reais.

Da coluna diária do CM.

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Uma das nossas grandes árvores.

por FJV, em 12.11.20

Foi um dos homens mais sábios que conheci. Gonçalo Ribeiro Telles (1922-2020) foi um dos homens mais sábios que conheci e, por isso, sei que com ele não desaparece a extraordinária herança que transmitiu. Um mestre raríssimo e completo que tinha uma ideia do país, da paisagem, do diálogo entre nós e o mundo, do livro da natureza e do livro do tempo. Conheci-o em Évora, onde – na universidade – era professor e fundou uma escola notável de arquitectos paisagistas. Estive ao seu lado na fundação do MPT Partido da Terra, uma honra que não esqueço; dessas reuniões fundadoras recordo a sua sabedoria, a importância de olhar as coisas com distância e sem pressa, a necessidade de leveza e de diálogo, a recusa do radicalismo. Não esqueço essa última entrevista (na altura, para a RTP), há exatos 12 anos, em novembro de 2008, na casa de Coruche: fiquei calado quase todo o tempo, escutando-o, paralisado; havia na sua disponibilidade uma coisa que não percebia na época: uma melancolia familiar e sem tristeza acerca do mundo. Ecologista e conservador, Ribeiro Telles era uma das nossas grandes árvores.

Da coluna diária do CM.

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A culpa.

por FJV, em 11.11.20

De quem é a culpa? Periodicamente, a política utiliza, com devoção e empenho, a palavra “culpa”. Não para se libertar dela, como na psicanálise, ou para a valorizar, como no discurso religioso – mas para a atribuir generosamente aos outros. O primeiro-ministro, que passou quatro longos anos a atribuir as culpas “à direita” e “a Passos Coelho” (aqui, “Passos Coelho” não é uma pessoa concreta, mas uma entidade abstracta que serve para atribuir culpas), descobriu anteontem que a culpa do estado de coisas é dos portugueses. Contra a opinião das autoridades, os portugueses foram – geralmente de máscara e com decência – para a rua, para as lojas, para as esplanadas, para os restaurantes, para a noite, para a festa do Avante, para a Fórmula 1, para o Algarve, para Fátima, para o Campo Pequeno, para as bolas de Berlim nas praias, para os transportes, para todo o lado onde é normal as pessoas irem. Estão aqui a dizer-me que as autoridades começaram por ser contra a máscara e que, por outro lado, pediram aos portugueses – esses sacanas – para visitarem todos esses lugares. Deve ser mentira.

Da coluna diária do CM.

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Nenhuma lição que fique para lição.

por FJV, em 09.11.20

Em Quarteira, no Algarve, na passada quinta-feira, um rapazola de 17 anos agrediu o professor a murro. No meio da pandemia, que agora serve para justificar tudo, e das eleições americanas, que comentamos a rigor, a notícia passou despercebida. Lamento informar que, em “tempos normais”, ela ocuparia também pouco espaço. As agressões a professores, ou pelos alunos ou pelos seus queridos progenitores, foram desvalorizadas durante anos – a cultura da violência foi desculpada nas escolas, como foi desvalorizada no atendimento dos hospitais ou dos tribunais. Longe de defender os professores, os médicos e enfermeiros, ou os representantes da justiça, as autoridades (refiro-me assim ao Estado no seu conjunto) preferiram atuar “em ausência”, tentando pacificar a besta, desvalorizando as estatísticas e as ocorrências, normalizando a violência – em vez de, além de outras coisas, impor respeito, que é uma condição necessária para que as escolas funcionem com certa normalidade. Seguir-se-ão um inquérito inconclusivo e um discurso sobre a escola “inclusiva”.  Mas nenhuma lição que fique para lição.

Da coluna diária do CM.

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MacQueen.

por FJV, em 06.11.20

Este fim de semana já não se contam os votos americanos no Nevada ou no Indiana, por isso digo-lhe o que pode fazer: primeiro, ver Nevada Smith (1996), o filme com Steve MacQueen (1930-1980), nascido no Indiana. Tamanha coincidência deve-se a uma efeméride que assinalo com tristeza, a dos 40 anos que passam amanhã, sábado, sobre a morte aos 50 anos desse homem triste, reservado, modelo de beleza e aventureiro. Gosto de MacQueen, da dureza sem remissão que mostra em Papillon (1973), ao lado de Dustin Hoffman, ou no clássico A Grande Evasão (1963), com James Garner, Attenborough, Coburn ou Bronson (três anos depois de entrar no elenco brutal de Os 7 Magníficos). Recordamos o homem equilibrado como um anjo diabólico em cima de uma moto – sua imagem de marca, ao lado da outra, ao volante de um carro (vejam-no em As 24 Horas de Le Mans ou em The Getaway). Ao contrário do que está escrito, é em O Grande Mestre do Crime (1968, de Norman Jewinson, com Faye Dunaway), a história do milionário Thomas Crown, que o seu mistério mais brilha. Há 40 anos que a sua beleza nos abandonou.

Da coluna diária do CM.

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Quatro anos que abalaram o mundo.

por FJV, em 05.11.20

Para invocar o livro de John Reed sobre a revolução bolchevique na Rússia, o mandato de Trump na Casa Branca pode ser visto como “quatro anos que abalaram o mundo” – mas repeti-lo pode soar a certa inutilidade, salvo se dele retirarmos duas lições. A primeira é a de que, parte da imprensa e da chamada “ideologia dominante”, vive numa bolha – só isso explica a surpresa dos que viram que Trump teve agora mais votos da população negra do que em 2016, e, curiosamente, teve menos votos de homens brancos e mais de mulheres negras, brancas e hispânicas. Ou seja, a “sociologia interpretativa” das nossas tvs e rádios não estava certa. A segunda é a de que o mundo de excluídos, pobres e deserdados deu a Trump a primeira vitória e continuou a votar nele – as elites urbanas e a sua imprensa não o entenderam. Se houvesse uma terceira lição (e decerto há muitas mais) seria a de que não se deve entregar o poder, a nenhum preço, a um mentiroso compulsivo, ou a um manipulador obsessivo, ou a um homem sem o sentido da dignidade da política. De qualquer modo, a América está a arder, com ou sem ele.

Da coluna diária do CM.

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Tudo ao ponto de sobrarem 5000 óbitos inexplicados.

por FJV, em 04.11.20

Vários especialistas têm vindo a manifestar em público a sua preocupação sobre a forma como a DGS, o governo e as várias entidades “comunicam” os dados da Covid. Parte dessas preocupações são bem intencionadas e têm a ver, vá lá, com a “clareza da mensagem” – e com os efeitos que “a mensagem” provoca em todos nós. A ideia é que o nosso medo, as nossas precauções e a nossa determinação variam consoante os deslizes da Dra. Graça Freitas ou o rosto do primeiro-ministro quando nos informam sobre o estado da pandemia no país (como perceberam, excluí a Sra. ministra da Saúde desta equação). O Presidente da República, em abril ou maio, propôs que as conferências de imprensa da DGS começassem pelos números de “recuperados” e não pelos “infetados”. Essa notável revolução produziu coisas notáveis; uma delas foi a estatística das segundas-feiras, que era anunciada nos jornais como “enorme descida”, e que antecipava a subida de terça e quarta. Manobrar os números foi tudo quanto fizeram, ao ponto de sobrarem 5000 óbitos inexplicados. Falar verdade e sem medo teria sido a melhor forma de comunicar.

Da coluna diária do CM.

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O troca-tintas.

por FJV, em 03.11.20

Amanhã acordaremos com a mesma incerteza americana de hoje mas, deixem-me que lhes diga, o combate não é entre “esquerda” e “direita”, e sim entre decência e engano. As torpezas cometidas, encenadas e ditas por Donald Trump durante este mandato devem somar-se às que cometeu antes de ser eleito – isso completa o retrato de um homem vil, irrefletido e indigno de ser convidado para nossa casa. A forma como o partido Republicano (esquecendo que foram eles a imaginar a América, incluindo o fim da escravatura) ficou refém da criatura dá uma ideia, ainda que pálida, de como a consciência conservadora perdeu tantas batalhas e de como um país pode entregar-se a um bando de  obtusos. Trump, que foi eleito sobretudo pelos mais pobres e mais excluídos do sistema democrático, é tudo menos um conservador (uma palavra séria): é um troca-tintas. Há quem defenda que as questões de caráter não são chamadas para a área da política; são, quando interferem com a capacidade de julgamento ou a confiança dos cidadãos. Removê-lo é uma obra de caridade. Mas, infelizmente, a degradação americana continuará.

Da coluna diária do CM.

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O Bispo do Porto culpou-nos a todos nós.

por FJV, em 02.11.20

A variedade de confinamento que vivemos está a provocar efeitos secundários nas pessoas. Uma delas é o bispo do Porto, D. Manuel Linda (aqui elogiado em várias ocasiões), que, na sequência do assassinato de três cristãos em Nice, atribui as culpas aos “preconceitos dos europeus” que não “não fomentam o diálogo intercultural e inter-religioso” e que “estão sempre de dedo em riste a acusar as religiões”. Três erros grosseiros, três falsidades e três deslizes perversos depois de um ataque em que o assassino gritava ‘Allahu Akbar!’ – e antes de um padre cristão ortodoxo ter sido assassinado dois dias depois. A ideia de que, na História, as religiões têm sido factores de paz é absurda, como sabe D. Manuel Linda; acusar a Europa de se furtar ao diálogo, é vergonhoso. Mas a ideia de que as vítimas são culpadas de cada vez que o cutelo desce sobre elas é perversa e maligna, desculpabilizando o terrorismo islâmico e a sua sanha contra inocentes por todo o lado. O bispo do Porto não só culpou Simone, Vincent e Nadine – assassinados em Nice. Culpou-nos a todos nós, por termos ficado indignados.

Da coluna diária do CM.

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