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De tudo tiraremos vantagem. É uma lei estranha, mas funciona porque tem a ver com o enorme sentido de adaptação do género humano. Compreendo a indignação (muitas vezes irracional ou apenas obtusa) de muitos com a pandemia e decerto que ela nos sitiou – mas alguma vantagem teremos de tirar destes dias graves. Ou aproveitamos o tempo para ler, ou passamos a cozinhar ou a arrumar a casa com mais frequência; ou vemos mais televisão juntos ou não gastamos tanto dinheiro em coisas inúteis (até porque não o temos e uma das lições da pandemia é o ataque inesperado aos nossos rendimentos). Também é verdade que estar juntos nem sempre é bom, sejamos sinceros; e isto ameaça retirar parte da sanidade mental a quase todos. Mas de tudo tiraremos vantagem. Com tudo aprenderemos. Há pessoas que o não vão fazer. Que não vão contemplar o fim do dia – porque nunca retiraram prazer disso e querem, devolvida intacta, a vida de antigamente. O que nunca vai acontecer. Pensemos antes que não poderemos fazer o que não poderemos fazer – mas de tudo o resto tiraremos vantagem. O mundo mudou mesmo.
Da coluna diária do CM.
Quando Cristiano Ronaldo tiver o seu primeiro teste negativo à Covid19 vai publicar um post nas “redes sociais” a anunciar a boa nova aos quatro ventos. Dirá como se sente feliz e com ânimo reforçado, exibindo umas sapatilhas novas e, certamente, incentivando-nos – a todos nós, simples mortais – a resistir e a proteger-nos. Até lá, sempre que o teste der positivo, confinando-o de castigo à sua casa de Turim, dirá – exibindo umas sapatilhas novas – que se trata de “uma treta”. O melhor futebolista português da atualidade até poderá garantir, como uma espécie razoável e musculada de Donald Trump dos relvados, que a Covid não passa de “uma gripezinha” – nisso não difere muito de outros médicos ilustres e igualmente tolos, que continuam a menosprezar os efeitos do vírus (ao qual, insisto, é preciso mostrar cara feia e ordem de retirada). Mas uma pessoa tão bem rodeada de sapatilhas novas terá certamente quem o aconselhe em matéria de posts nas “redes sociais” e lhe mostre um pouco do resto do mundo. A não ser que os médicos tolos já se tenham infiltrado no seu cérebro, por assim dizer.
Da coluna diária do CM.
O “grande público” não conhece Vítor Manuel de Aguiar e Silva – e não tem de conhecer. É o novo Prémio Camões, atribuído ontem, e deixa-me com a sensação de ter sido feita uma espécie de justa reparação ao seu nome, o de um ensaísta raríssimo pela insistente qualidade do seu trabalho. Na universidade, a sua Teoria da Literatura era um instrumento indispensável, como um repositório do que de mais atual se podia saber sobre a matéria; os seus estudos sobre o barroco literário, uma referência; mais tarde, o seu apaixonado interesse por Camões (entre outras coisas, coordenou as mil páginas do Dicionário de Luís de Camões e escreveu Labirintos e Fascínios) é comovente de intuição e profundidade. Ao dobrar os 80 (nasceu em 1939) publicou o maravilhoso Colheita de Inverno, onde se pressentia uma melancolia do estudioso e do erudito, já tão visível nesse outro livro de combate, de 2010, As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa (ambos publicados pela Almedina). Sem ele e a sua erudição, a universidade seria ainda mais pobre.
Da coluna diária do CM.
O Dia de Finados pertence à categoria das velharias que o nosso tempo dispensa como um incómodo. Na minha aldeia, nas dos meus pais – e nas dos leitores – visitam-se os cemitérios não apenas para relembrar o sofrimento da ausência, mas para assinalar o respeito pelo tempo que passou; quem não pode fazê-lo, há de ter um momento para que os nossos antigos, que amámos (ou não amámos como queríamos) ou foram nossa companhia, sejam lembrados. É uma recordação ritual. Dedicar um dia a visitar as sombras dos cemitérios, mesmo que seja triste, é uma questão de honra numa civilização que ainda acredita na remota possibilidade de que existe um passado e que alguma coisa lhe devemos. Lembrar aqueles de quem algum dia fomos próximos, é prolongar a sua memória, recordações e legados. Não é necessário acreditar na vida eterna das religiões para que saibamos que o gesto requer alguma solenidade. As autoridades autorizaram os ajuntamentos populares mas vedaram a maior parte das visitas de Finados. É uma contingência que se compreende – mas que não beneficia os autores da decisão.
Da coluna diária do CM.
Sai hoje nos EUA um livro da atriz Natalie Portman. O título é Fables (Fábulas) e o objetivo de Portman é atualizar histórias tão antigas como a da lebre e da tartaruga, a dos três porquinhos ou a do rato da cidade e do rato do campo – para que passem a “refletir a cultura contemporânea, que é de vários sexos, e não apenas predominantemente masculina”. Para Portman, a leitura de histórias é “uma forma de incutir valores”, razão por que menciona também a necessidade de empatia e de gentileza nas relações pessoais, bem como a preocupação com o planeta. Os filhos de Portman sairão certamente pessoas bem educadas, com uma paixão pelos legumes biológicos e grande tolerância pela diversidade sexual. Tudo boas coisas. O modelo já tinha sido tentado em 1994 pelo americano James Finn Garner, com o livro Histórias Tradicionais Politicamente Correctas – só que ele estava a gozar. Hoje é a sério. As histórias infantis e juvenis são eternas porque, no limite, apaixonam e impressionam; não porque fabriquem anjos bem comportados. Adaptar a Bíblia é que era. Cristo saía-nos um tolinho.
Da coluna diária do CM.
A vinda do dinheiro europeu – a prometida “bazuca” do primeiro-ministro, uma designação grosseira – acelerou tudo, até as discussões sobre o Orçamento do Estado e aos “planos de recuperação”, que contam exclusivamente com ele, desde que seja distribuído com a conhecida prodigalidade. Se é verdade que a modernização do país se deve sobretudo à contribuição europeia, também é verdade que devíamos ter discutido alguma coisa acerca da aplicação desses fundos – mas não havia tempo. Os investimentos em transportes costumam gerar ondas de entusiasmo e lembram-me os portugueses de há trinta anos, observando o ritmo de construção das auto-estradas e o amontoar de cimento, asfalto e betão como a massa em que iria assentar o nosso desenvolvimento. Trinta anos depois há mais algum cuidado. Mas a euforia é semelhante. O que me assusta é outra coisa: de onde vem este dinheiro não há de vir muito mais. Como se vê pela pandemia, a Europa reage mal à adversidade e é egocêntrica nos seus processos. Além de que, mais dia menos dia, não terá muito mais taxas para cobrar a empresas que não está a criar.
Da coluna diária do CM.
A publicação de O Cânone, com edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen (Tinta da China e Fundação Cupertino de Miranda) é um acontecimento de primeira ordem. Fico feliz – que é o estado em que por vezes um livro nos deixa. Este é o caso. Primeiro, porque reabre, para leitores de hoje, um debate sobre os autores fundamentais “do cânone”; depois, porque há muito que não se publicava um conjunto tão substancial de textos críticos, ainda por cima com uma qualidade assinalável; finalmente, porque, as questões colocadas sobretudo por António M. Feijó e Miguel Tamen põem em causa o discurso tradicional sobre a literatura portuguesa e a sua abordagem. O Cânone vai ser criticado por excluir autores consagrados (o que faz com grande coragem) – mas, como escreve Feijó de forma luminosa e provocatória, “não é um livro sobre o esplendor de Portugal, é um livro de crítica literária”. Há muitos méritos e bons autores (Pedro Mexia, Rui Ramos, Abel Barros Baptista, etc.) – mas o principal deles é o de incomodar bastante os bonzos, na ‘política literária’ e na, enfim, ‘academia’.
Da coluna diária do CM.
Conheci Helena Marques (1935-2020) numa livraria de Lisboa em 1992. Na verdade, marcámos encontro entre as estantes da velha Buchholz porque, na altura, eu organizava o Prémio Ler/Círculo de Leitores, destinado a romances inéditos e apresentados com pseudónimo – que ela acabava de ganhar com O Último Cais, um romance de iniciação, cheio de nostalgias, geografias, mar e boa fé. Foi a primeira vez que um romance inédito ganhou, depois do Prémio Ler, os prémios APE, o Máxima e o da Casa da Imprensa. Depois de O Último Cais seguiram-se mais três romances e duas recolhas de contos, mas Helena foi, como escritora, uma pessoa discreta, melancólica e delicada. Como suponho que era na vida. Eu prezava-a muito. Calhou, depois, eu trabalhar com o seu filho Francisco – meu bom amigo – e a admirar o seu marido Rui, jornalista como ela (no DN, nomeadamente). Publicando o primeiro romance aos 57 anos, não tinha os “tiques literários” da sua geração, nem os seus vícios extremos. Uma estranha bondade misturada com inocência – é disso que me lembro, agora que partiu aos 85 anos.
Da coluna diária do CM.
É talvez do outono mas ocorreu folhear um álbum de Vermeer e deparar com esta pintura, “Vista de Delft”. Delft é a cidade onde nasceu e morreu Johannes Vermeer (1632-1675), um dos mais notáveis pintores holandeses, o autor de “Leitora à Janela” (de 1659), “A Leiteira” (de 1659), “A Aula de Música” (1662) ou o famoso “Rapariga com Brinco de Pérola” (de 1666). Há uma corola de nuvens sob um céu que já não é totalmente azul, e algumas pessoas estão à beira da água. As construções, vistas de longe, repetem essa suavidade, que deve ser aparente – quatro anos antes de concluir o quadro, Vermeer viu, de certeza, as ruínas que resultaram da explosão de pólvora que destruiu um terço de Delft, matando cem pessoas. Por isso, os telhados da cidade do quadro de Vermeer estão cobertos de cinza negra. Passados 360 anos, olhamos para o quadro e apreciamos essa tranquilidade, uma certa melancolia outonal sem vermos o drama anterior. Talvez daqui a 360 anos ninguém explique a estranha tranquilidade que se observa nas nossas cidades durante a pandemia. O tempo devora-nos, como à memória dessa paz de Delft.
Da coluna diária do CM.
A doutrina oficial diz que “os portugueses” são responsáveis por um eventual desastre: ou porque não usam a máscara ou “a aplicação”, ou porque vão trabalhar e não ficam a fazer ioga no Facebook (porque têm de trabalhar), ou porque não se persignam de cada vez que têm pensamentos anti-patrióticos (para isto, basta que duvidem da DGS, que diz coisas diferentes de semana para semana). Ora, os portugueses – se ser português fosse um verbo intransitivo – portuguesam: trabalham, usam máscara, cuidam da vida e duvidam (até porque, como o CM provou, 1,7 milhões não têm telefone capaz de instalar “a aplicação” que o SNS não pôs a funcionar). Duvidam porque têm juízo. Se acreditassem em tudo, já tinham ensandecido ainda mais. Já foram condenados a ficar em casa, já foram incentivados a partilhar bolas de Berlim na praia, já foram bafejados pelo “milagre português” e, chegados a outubro, verificam que desde maio os lares de idosos ainda não foram vistoriados e protegidos, que os hospitais não estão preparados para o inverno – e que, afinal, a culpa é deles, pobres portugueses que portuguesam.
Da coluna diária do CM.
O “milagre português”, comandado pelas autoridades, festejado pelo Presidente, elogiado pelos comentadores, embevecidos e na respetiva posição, tinha derrotado a Covid – mas foi extemporâneo, como se calculava. Para os que acharam estranho que o primeiro-ministro tenha caído na esparrela da “aplicação obrigatória”, o próprio António Costa teve o cuidado de explicar: não se trata de uma obrigatoriedade, produto de autoritarismo, a menos que as pessoas – naturalmente – a usem de livre vontade. Isto percebe-se, mesmo sendo absurdo: é apenas um interessante momento de humor que se dilui no meio da desorientação; aliás, é pura política – não cabe na cabeça de ninguém que uma lei tão estapafúrdia tivesse sido encaminhada para o parlamento para ser aprovada nestas condições. Caso a lei (a da app de porte obrigatório) fosse aprovada, estaríamos no domínio do cómico e do trágico, consoante a disposição e a presença de uma autoridade policial. Por isso, é pura política – para “abanar a sociedade”, que, ligeiramente hipocondríaca, julgava que podia acreditar no milagre português.
Da coluna diária do CM.
As cidades agradecidas ficam-me no coração e Tavira é um caso maravilhoso, porque possui uma Biblioteca Municipal Álvaro de Campos. A biografia Álvaro de Campos, primo por afinidade de Ricardo Reis, Bernardo Soares ou Alberto Caeiro, está reduzida a duas coisas – àquilo que sobre ele decidiu o seu criador, Fernando Pessoa, que o fez nascer em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à uma e meia da tarde), e aos poemas que largamente escreveu, como o maravilhoso “Tabacaria”, “Opiário”, “Ode Triunfal”, “Ode Marítima”, “Saudação a Walt Withman”, “Passagem das Horas”, o célebre “Todas as Cartas de Amor são Ridículas” ou “Ao volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra”. Estudou engenharia naval em Glasgow, e trabalhou em Londres e Newcastle antes de se fixar, desamparado, em Lisboa, no ano de 1926. É aquele heterónimo que mais me faz duvidar da existência de Fernando Pessoa, de tal modo é forte a sua voz, independente a sua poesia, tempestuosa a sua vida. Amanhã, porque passarão 130 anos sobre o seu nascimento na cidade algarvia, talvez pudéssemos parar por instantes e ler um dos seus poemas.
Da coluna diária do CM.
Não interessa se é “jogada política”, ameaça velada, ‘bluff’, distração ou simples azedume – a exigência, pelo Bloco de Esquerda, de um compromisso escrito por parte do governo a propósito das negociações do Orçamento de Estado, é um acontecimento político. Vamos e venhamos, o BE aprovou até agora cinco orçamentos que passou o resto do ano a criticar – mas, feitas as contas, é um dos partidos da geringonça e faz parte do equilíbrio em que assenta a estabilidade desta maioria informal. Como se percebia, em nome da necessidade de um acordo à esquerda, António Costa meteu o BE no bolso. Nada de chocante: o BE aprovava os orçamentos e criticava-os. Namorava e fugia. Sorria e bufava. Estava e não estava. O BE era parte da solução, mas a outra parte não andava com o BE de braço dado. Até que chegámos a este ponto – querem acordo?, pois ponham isso por escrito. Claro que vai haver solução para o Orçamento, mas a exigência de um papelinho é uma exigência brutal que fica para a história da política. O BE deixa de ser a “parte casadoira”, para passar a ser uma coisa madura e matrona.
Da coluna diária do CM.
A notícia apanhou-me desprevenido e com pouco tempo pela frente: desde sábado passado que está interdita a pesca da sardinha. Portanto, parte do fim de semana foi ocupado com uma investigação patriótica em busca das derradeiras sardinhas frescas do ano, recolhidas nos últimos dias e transportando ainda o derradeiro odor de verão. Não o doce perfume do bronzeador, não o do outubro tépido que ainda faz recordar a passagem das coisas – mas o da sardinha, nem sempre agradável, ligado à mesa do verão. O despacho do Diário da República não transmite esta tristeza; é frio como uma lâmina: já atingimos a quota atribuída; a partir de agora nada de sardinha. É pena. A ocasião devia ser solene e grave, com as altas autoridades da nação anunciando que uma parte das nossas vidas se interrompeu. Todos os anos aguardamos pela temporada em que a sardinha é tão gulosa como o nosso apetite; e de repente, com um decreto, anunciam-se meses de penúria. Por isso, quando ontem separei a derradeira espinha da derradeira sardinha, despedi-me por longos meses, cheio de melancolia no cartão de cidadão.
Da coluna diária do CM.
©Getty.
Os poetas não são populares – é a sua sina, e compreende-se. Mas há muitos poetas na lista do Nobel, do sueco Tomas Tranströmer ao irlandês Seamus Heaney, passando pela polaca Wislawa Szymborska, por Derek Walcott ou Joseph Brodsky, Seifert ou Odisseas Elytis, Eugenio Montale ou W.B. Yeats, T.S. Eliot ou Gabriela Mistral, Salvatore Quasimodo e Saint-John Perse ou Vicente Aleixandre. Os que lamentam a escolha da americana Louise Glück por não ser “conhecida” só têm um remédio – ir procurar saber quem é, como muita gente teve de fazer quando o prémio foi parar às mãos de Claude Simon, Mo Yan ou Kenzaburo Oe (que são autores magníficos). A verdade é que, ao arrepio das imposições das temdências, a Academia escolheu uma poetisa que não simboliza nada mais do que a sua poesia. Por mim, o prémio iria para alguém como Claudio Magris, Yan Lianke, Can Xue, Yoko Ogawa ou Maryse Condé – mas a poesia de Glück, sem causas políticas nem gritaria, representa-nos enquanto seres condenados à amargura e ao riso mal disfarçado, combatendo a morte, observando o mundo pela lente do humano.
Da coluna diária do CM.
Houve um tempo em que o Nobel da Literatura era anunciado depois de uma disputa em segredo entre os membros da Academia Sueca. Bons tempos, mesmo se as escolhas eram criticáveis (como são sempre) e injustas (como acabam por ser). Hoje é – diz-se – uma querela mais democrática e chega a haver “finalistas”, um conceito popular e muito em voga, depois de os negócios e desventuras sexuais de alguns dos poderosos da Academia terem interrompido a atribuição durante dois anos. Apesar de nunca ter sido atribuído a grandes nomes como Jorge Luis Borges ou Philip Roth (que já morreram), o Nobel tinha uma aura de eternidade, era uma recompensa por anos e anos de trabalho, muitas vezes em silêncio ou votada ao desprezo pela ribalta. Esta ideia de que o Nobel da literatura deve ser atribuído de forma a contentar sensibilidade não é nova e tornou-se hoje uma imposição triste e não tem nada a ver com a literatura. Todos os anos (é hoje) aguardamos o seu anúncio, mas a magia, a honra, a surpresa, as apostas no vazio, perderam-se. É apenas um prémio entre outros. Valioso, mas sem a antiga aura.
Da coluna diária do CM.
A Gucci lançou um vestido para homens – vi a peça na imprensa (custa 2 mil euros, que a Gucci é de luxos), e ficava bem à minha tia. Admito que fique bem a homens, ‘trans’ ou não. Mas a marca italiana apresenta bem a coisa: quer combater “os estereótipos de género” (especialmente os da “masculinidade tóxica”) e a marginalização das “pessoas trans”. O que me fascina é a forma cada vez mais rápida como o mercado e o capitalismo devoram a linguagem dos que o combatem e das “vanguardas” que andam no bailarico, reunindo tolinhos embevecidos. O capitalismo tanto ganha milhões a vender camisolas estampadas do dr. Guevara (em fundo vermelhusco) como luta contra a “masculinidade tóxica“ e inventa produtos “sustentáveis” que multiplicam os seus lucros, ao mesmo tempo que “luta contra as emissões de carbono” e disponibiliza um bravo mercado para os vegetarianos radicais que – ah! – lutam contra o capitalismo, esse malandro que ganha rios de dinheiros a vender papel para imprimir o Manifesto Comunista, essa velharia que um dia há de aparecer debaixo do braço de um modelo num desfile de moda.
Da coluna diária do CM.
Aqui e ali, pelo que vejo, há vários programas para artes ou literatura “sustentáveis” e ao serviço das grandes causas do mundo de hoje. Escritores e pintores, músicos e performers anunciam “obras de arte” dedicadas a alertar-nos para a necessidade de salvar o mundo com a “adoção de novos comportamentos”, prestando mais atenção ao ambiente e à natureza, ao tofu e à beringela biológica, ao “empoderamento” feminil, aos recursos naturais e à proximidade com os nossos semelhantes, contra o extremismo ou os materiais corrosivos. Podiam ser estes temas ou outros. Antes, poetas escreviam, músicos compunham, pintores pintavam – e não estavam à espera de receber indicações (quer de Estaline, de Mao ou Salazar, de Mussolini ou do Mahatma Ghandi, do mestre-escola ou da Secretaria de Estado do Abastecimento e Preços) sobre os temas a tratar. Hoje, os artistas, resignados à sua função benfazeja, colocam-se “ao serviço do bem” e produzem coisas que vão bem numa sala de tias austeras, mestres de moral e pessoas chatas. Shakespeare, Caravaggio ou Eça tiveram sorte em viver antigamente.
Da coluna diária do CM.
É provável que hoje aconteçam algumas homenagens em memória dos heróis da República, uma galeria de gente que inclui nomes respeitáveis tanto como personagens abjetas. Dela, infelizmente, parece termos herdado alguns dos piores tiques: a corrupção endémica e alargada (que agora parece ter cobertura legislativa e indiferença de todos), o gosto pela pequena malandragem da política e pelos caciques enfatuados, uma tendência insuspeita para a má administração dos dinheiros públicos, a desculpa aos que abusam da autoridade e organizam a máfia da “influência”, ou a pompa provinciana disfarçada de “modernidade”. Houve grandes personagens, é claro, mas sobretudo polemistas notáveis e gente que protestava contra os vários abusos e as manigâncias dos proprietários do regime. O “espírito do 5 de Outubro” foi substituído pelo “espírito do 25 de Abril”, com o salazarismo de permeio, mas as famílias políticas, com poucas exceções, são as mesmas – sobreviveram à República de 1910, que pôs fim a um regime falido, como sobreviveram ao 28 de Maio e ao 25 de Abril. Mas os tiques são os mesmos.
Da coluna diária do CM.
Ontem falámos da morte de Quino. Não podia deixar de ser – o humor de Mafalda dominou a nossa adolescência com a sua mancha de riso e ardil. Hoje recordo-vos que passam 130 anos sobre o nascimento de Groucho Marx, um homem que tanto nos ajudou a rir sem grande esforço. Recordo-lhes quatro filmes, apenas quatro – Uma Noite na Ópera, Um Dia nas Corridas, Os Irmãos Marx na Universidade e Uma Noite em Casablanca – para que o riso tenha um nome e o sentido de humor um rosto trapalhão e cordial (mas igualmente letal). Groucho Marx e os Irmãos Marx (além dele, Chico, Harpo, Zeppo e Gummo) foram os pais do nosso “pensamento verdadeiramente marxista” – não o velho Karl Marx, que era falho de riso. O seu humor é hoje infantil para nós, tal como grande parte da comédia americana desses anos, mas não sei como vos hei-de explicar que os seus óculos, o seu bigode, as sobrancelhas, o charuto, a voz ligeiramente carregada de resfriado me fazem feliz. É certo que ele disse que “nunca faria parte de um clube que o aceitasse como sócio” – mas Deus insistiu tanto que ele aceitou ir fazer piadas aos anjos. Como resultado, o céu está um pandemónio.
Da coluna diária do CM.
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