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São dois retratos apaixonantes: o do sultão otomano Mehmet II, o Conquistador, por Gentile Bellini, e o de Solimão, o Magnífico (1494-1566), califa e 10.º sultão otomano, por Ticiano. Este último é um prodígio de estranheza – pela luz, cor, pelo volume e até pelo facto de assinalar a aliança franco-turca, outro marco histórico. Neste lado do planisfério sabemos pouco acerca do domínio de Constantinopla sobre o mundo da época, controlando todo o Mediterrâneo, largas porções da Europa e da Ásia – e ignoramos, assim, que passam hoje 500 anos sobre a sua ascensão ao poder depois da morte de Selim I. Sultão aos 26 anos, líder de 25 milhões de súbditos, Solimão distinguia-se dos seus pares europeus: estudara as “artes militares”, mas também teologia e história, astronomia e teologia ou direito. Talvez por isso teve gestos de tolerância com judeus e criou bibliotecas, tanto como mesquitas, hospitais e um sistema legal civil independente da lei do Islão. 500 anos. O mundo não existe só deste lado. Se o conhecêssemos melhor, lidaríamos melhor com as suas perplexidades.
Da coluna diária do CM.
Se bem se lembram, um grupo de tolinhos mas também de perigosos psicopatas decidiu iniciar uma campanha contra JK Rowling, a autora da saga Harry Potter, depois de esta ter questionado a definição de mulheres como “pessoas que menstruam”. A ironia mais ou menos surpreendida de JK Rowling custou-lhe caro: foi logo criticada como “transfóbica”, porque as pessoas que fazem “declarações transfóbicas” são “transfóbicas”, mesmo que reconheçam os direitos das “pessoas trans”. Como resultado, criou-se um movimento intitulado RIP JK Rowling e grupos de ativistas dedicaram-se a queimar livros de Rowling que, entretanto, publicou um novo romance policial (com o habitual pseudónimo de Robert Galbraith) em que o assassino é um travesti. Mais lenha para a fogueira, porque isso prova, no entendimento dos tolos, que JK Rowling “é mesmo transfóbica”, ainda que ela declare que se baseou em histórias publicadas na imprensa. Boicotada pelos fascistas da moda, com livros queimados em público (um novo desporto chique), estou à espera do livro de JK Rowling. Não que goste especialmente deles, mas é necessário defender a liberdade.
Da coluna diária do CM.
Tradicionalmente, a literatura e o cinema fixaram setembro como o mês da melancolia, com as primeiras chuvas, o primeiro céu nublado, o final do verão, as vagas de humidade que cobrem o entardecer – a meteorologia não nos surpreendeu e obedece à tradição. Mesmo assim, para celebrar este final de setembro, deixo-vos sugestões: para temperamentos rockers, os Green Day têm uma boa canção, “Wake me Up When September Ends”; há o clássico “September Song” cantado por Sinatra (que também interpreta “September of My Years”), antes de passar a Barry White, com “September When I Meet you”, além de (lembram-se?) “September Morn”, de Neil Diamond, “When September Comes”, de Johnny Cash, “Flaiming September”, de Marianne Faithfull, “September”, dos Earth, Wind & Fire, e de “Maybe September”, de Tony Bennett. Para ouvidos treinados também tenho solução: a segunda das “Quatro Últimas Canções”, de Richard Strauss (1864-1949). Setembro não tem fim. Juliette Gréco morreu em setembro – e por isso podemos também ouvir “Autumn Leaves” por causa do trompete de Miles Davis. Era nela que Davis pensava.
Da coluna diária do CM.
A palavra resiliência, usada a torto e a direito hoje em dia, é uma palavra tola, embora não por culpa própria, coitada. Vem do Latim, no sentido de “recusar”, “saltar para trás”, “ressaltar”; mas, tal como os tolos que leem “áitém” quando veem escrito “item” (que deve ser lido “item”, Latim puro), os nossos políticos e pessoas públicas importaram-na do inglês sem a traduzir. Por isso abusam dela, tal como abusam tolamente da designação “distanciamento social” (muito protestei nesta coluna) que, felizmente, muita gente sensata vai substituindo por “distanciamento físico”. No chamado Plano de Recuperação & Resiliência, não sei se a palavra está bem ou mal aplicada (depende da perversidade e da manigância) – mas sei que o seu uso permanente e obstinado é um luxo de oradores que querem dizer outra coisa qualquer mas acham que “resiliente” e “resiliência” estão na moda, e isso desperta admiração e bons sentimentos nos outros. É, portanto, uma coisa pacóvia. Uma pessoa, qualquer dia, queixa-se de que o bife ou a chuva estão resilientes e já ninguém liga ao que isso quer dizer.
Da coluna diária do CM.
Bela notícia. Na próxima quarta-feira à tarde, decorre na Biblioteca Nacional um programa de conferências dedicado a Agatha Christie, assinalando a passagem do centenário da publicação de O Misterioso Caso de Styles, o seu primeiro romance policial (que viria a sair em Portugal apenas em 1950). É uma efeméride ilustre: em O Misterioso Caso de Styles aparece uma bela trilogia de personagens – além do narrador, capitão Hastings, e do inspetor James Harold Japp, há um curioso investigador belga, Hercule Poirot (que Agatha Christie eliminaria exatos 20 anos depois, em Cai o Pano). Mas o que aparece logo nesse primeiro inquérito de Poirot é a desenvoltura, o génio e o sentido de risco na construção de enredos – é isso que nos irá surpreender em boa parte dos seus romances que correspondem a uma época precisa da literatura policial. Que um centro de estudos anglo-portugueses, especializado em tradução e literatura organize a sessão, está nas suas boas atribuições – mas que o encontro decorra na Biblioteca Nacional é um excelente sinal. Entretanto, folheemos os livros.
Da coluna diária do CM.
Deus me livre de comentar “a evolução da pandemia” quando o seu triste caminho está a meio. Se em finais de fevereiro as autoridades tivessem tomado as decisões certas (uso de máscara, proteção firme e honesta aos mais idosos, manter a sanidade entre os mais jovens) e não se tivessem entretido com manobras políticas, talvez hoje não estivéssemos tão assustados. Chover no molhado não adianta. Por isso fico espantado com os louvores arrebatados “à Suécia”, onde o número de mortos Covid atinge os 5865 (em 10,23 milhões de habitantes), enquanto Portugal se fica pelos 1894 (em 10,28 milhões). O que dá uma taxa de 379 mortes por milhão (a nossa taxa é de 123, e a de outros países é bem menor). Nós não conhecemos a indiferença diante da morte nem sabemos evitar o desejo de contactar com os nossos mais velhos. Nós abraçamo-nos em geral; os suecos evitam (vivem em permanente distanciamento físico mesmo sem pandemia). No meio disto tudo, falta uma homenagem: aos portugueses que nunca abandonaram a “vida normal” e tiveram que trabalhar todos os dias. São eles os heróis, não os suecos.
Da coluna diária do CM.
Hoje quase ninguém passa por Ligares, uma pequena aldeia cravada num dos braços da Serra do Reboredo – o concelho é já o Freixo de Espada à Cinta, encostado ao de Moncorvo. Foi aí que, há 170 anos, nasceu Abílio Guerra Junqueiro (1850-1923). De cada vez que vou a Barca d’Alva, a dois passos, onde fica a sua Quinta da Batoca, volto a imaginar a figura de Guerra Junqueiro e alguns dos seus versos escritos aqui: “Quanta vida me consome, / quanta quimera perdida.” A figura de um homem de longas barbas acompanhou-nos sempre, mais do que a sua poesia propriamente dita, consumida em dois ou três livros que iam bem com o seu tom de profeta: Pátria, A Velhice do Padre Eterno, Os Simples, além dos que tinham sido reunidos em A Musa em Férias. Destinado à vida religiosa, Junqueiro foi anti-clerical contumaz (e religioso de novo, no fim da vida); radical republicano durante a monarquia, desiludiu-se dela e afastou-se do regime – a sua amargura, contada por Raul Brandão, é igualmente radical. Se esquecermos a versão de um Junqueiro oficial e ao serviço da pátria, como um altifalante aproveitado pela propaganda, descobrimos nele uma torrente de génio, fúria e melancolia.
Da coluna diária do CM.
A manchete do CM noticiava um caso caricato ocorrido em Odemira: depois de uma aula por Zoom para os alunos do 9.º anos da escola básica e secundária Damião de Odemira, a professora, psicóloga e orientadora vocacional esqueceu-se de desligar a câmara. Logo a seguir, as imagens de um encontro, digamos, mais íntimo com o seu companheiro (professor na mesma escola) acabaram por ser transmitidas pela net. O resultado é que parece ter sido instaurado um processo disciplinar à psicóloga depois de uma encarregada de educação voyeurista ter gravado indevidamente as imagens transmitidas de forma involuntária e apresentado queixa. É importante dizer, portanto, que nem o processo disciplinar instaurado pela escola tem razão de ser, nem o castigo me parece legal (por ter relações sexuais em casa?). É puritano, mesquinho e revoltante: a psicóloga foi despedida, o seu companheiro manteve o lugar – o que traduz um episódio deplorável de machismo a pedido da queixosa, uma das viúvas de Lorca (vão ver o que é) que, essa sim, devia ter sido processada por gravar imagens sem consentimento.
Da coluna diária do CM.
A procuradora Dulce Rocha, que dirige o Instituto de Apoio à Criança, acha que a melhor solução para as crianças cujos pais as impediram de frequentar as “aulas de cidadania”, é (caso, aos 16 anos, não aceitem frequentá-las de “livre vontade”), barrar-lhes o acesso à universidade pública. O problema das “aulas de cidadania”, como já aqui escrevi, é a falta de consenso que conseguiram gerar em torno das matérias da disciplina. Espírito do tempo: o que nós, que agora estamos no mando, pensamos sobre “género”, “sexualidade”, “participação na comunidade”, mais uma série de lugares-comuns, é isto – quem não aceitar a forma como interpretamos esses temas e desejamos “formar as novas gerações”, fica de fora e não pode entrar na universidade. A disciplina não deixa dúvidas: além de uma lista de coisas tão inúteis como inócuas, é uma forma de modelar, condicionar e encaixotar “as novas gerações” e de transformar em “ciência adquirida” o que não passa de suposições e de coisinhas boas para a guerrilha cultural. Quando não há consenso nascem os ditadores. Em Portugal estão a nascer aos magotes.
Da coluna diária do CM.
O longo trailer de 007: Ao Serviço de Sua Majestade (1969) tinha quase quatro minutos. Nele, anunciava-se “um Bond diferente mas com a mesma vivacidade” (era o hoje desconhecido George Lazenby, que sucedeu episodicamente a Sean Connery) – e uma nova bond-woman ainda mais diferente, esta “com estilo e classe”, no papel de uma condessa. Verdade. Tinha estilo e tinha classe – basta dizer que representou Shakespeare no cinema e na televisão (fez quatro papéis, no total). Porém, a sensual condessa Teresa di Vicenzo que se enamorou de 007 (e casou com ele) era a mesmíssima picante Emma Peel da série Os Vingadores, que contracenava com o agente secreto John Steed (interpretado por Patrick Macnee). Foi um tempo de glória para Diana Rigg (1938-2020), que morreu ontem. Emma Peel foi uma das minhas paixões televisivas de primeira adolescência, mas eu não conhecia Diana Rigg propriamente dita; só mesmo pelo rosto, pelo riso e pelo corpo de Emma – que depois reencontrei, sem saber, em A Guerra dos Tronos onde era a velha e inteligentíssima rainha Olenna Tyrell. Vai fazer estragos lá em cima.
Da coluna diária do CM.
Acho graça às figuras de direita chocadas com a natureza das “aulas de cidadania”. Claro que o assunto devia ter sido discutido há mais tempo de modo a conseguir-se retirar do programa da disciplina (que é necessária) aquilo que é matéria flibusteira e chegar-se a um consenso sobre o que deviam ser essas aulas. Porém, os cerebelos “da direita” estavam ocupados com coisas superiores, desde folhas de Excel a cálculos diversos, incluindo saber como esfaquear os seus. Enquanto isso, os tolinhos tomaram conta dos programas, encheram-nos de conteúdos anti-científicos mas muito de acordo com as charlatanices em voga – e, numa guerra cultural agressiva, insolentes e sem adversário, ocuparam o espaço da escola e do debate público. Quando “a direita” despertou, o seu retrato era o de uma tia dos filmes de Vasco Santana, estremunhada e fora de moda, protestando que as “aulas de cidadania” estão infestadas de inutilidades. É verdade, mas é muito mais. Indo aos arquivos desta coluna há matéria de protesto e de aviso contra a ameaça dessa vacuidade cultural. Como se diz noutros contextos – estudassem.
Da coluna diária do CM.
Frequentemente nos irritamos com o Presidente. Compreendo-o (para o bem e para o mal), mas irrita-me a sua omnipresença e a voracidade com que comenta quase todos os assuntos e faz gincana nessa qualidade de comentador. Ter a imagem do Presidente ultrapassada pela imagem “do Marcelo”, na praia, no rio, nas barraquinhas de bebidas pode ser tão extenuante que, depois, se transforma em presença irrelevante quando precisamos realmente dele, ou seja, quando o Presidente tem de proteger os portugueses dos abusos do Estado, e de defender o bem-estar, a liberdade e os direitos dos cidadãos. Mas anteontem, ao princípio da noite, deu-me gozo vê-lo, quase anónimo, sem luz, sem câmaras de televisão e sem jornalistas por perto (como quando visita hospitais sem publicidade, em segredo), palmilhando o Parque Eduardo VII com uma lista de compras na Feira do Livro de Lisboa. É impossível uma pessoa não ficar comovida ao vê-lo, nessa figura discreta e metida para dentro – e não podemos deixar de murmurar, com certa delicadeza e o devido respeito institucional que sempre lhe é devido: “Seu sacana.”
Da coluna diária do CM.
Peguei no livro e, em poucas horas, depenei-o. Porque se trata de depená-lo, folheá-lo, lê-lo, aproveitá-lo. Não é uma história de Espanha a não ser pelo facto de se chamar Uma História de Espanha (publicado pela Asa) – mas, contando-nos a história de Espanha, fá-lo pela voz oral de Arturo Pérez-Reverte, o amável, ácido e fantástico autor de O Clube Dumas, O Pintor de Batalhas, A Rainha do Sul, ou as séries do capitão Alatriste ou do espião Falcó. E que maravilha, o livro, que nos oferece um autor em transe, contando como decorrem séculos de Espanha no fio da navalha – precisávamos disso em Portugal, não escrito por um historiador (lamento muito, amiguinhos da universidade) mas pela voz desempoeirada de alguém que tanto acredite como desconfie do país, que tanto sofra por ele como é capaz de desprezá-lo, mas o entenda e não queira ser seu dono. Pérez-Reverte mostra como se faz, tendo como material um monstro de vaidade e altivez barroca (como é Espanha), tão valente como enlouquecido. Que belo livro, Arturo. Que saudades me dá daquele país orgulhoso, natural e cheio de vida – que antes se chamava Espanha.
Da coluna diária do CM.
A antiga atriz Maria Vieira confessou que tinha deixado de fumar graças à militância no Chega. Escreveu, por assim dizer, uma mensagem de autocongratulação, felicitando o seu partido por tê-la levado ao bom caminho, expulsando o cigarro da sua vida. Foi, digamos, um milagre. Infelizmente, não há notícia de nenhum fumador que tivesse aderido ao Chega por tão nobre motivo, preferindo adesivos de nicotina. Ingratidão. Ontem, retomando a boa nova anunciada pela sua mandatária, o líder do partido escreveu que o Chega “não é só a cura para Portugal” mas também “a melhor terapia para as nossas vidas, um estímulo à nossa saúde, o renovar da fé”. Tamanha sandice merece primeira página mas temo que não se lhe dê destaque porque os jornais ainda têm fumadores no ativo. Para André Ventura (cito do Twitter), trata-se de mais do que um partido: “É uma missão, uma religião.” Isto, que devia deixar-nos à beira da gargalhada apoplética, é a prova de que se trata de um caso sério de saúde pública e de que André Ventura deixou de estar assintomático e deve ser recolhido aos cuidados intensivos.
Da coluna diária do CM.
Falar de François Mauriac (1885-1970) é, hoje em dia, evocar uma velharia desaparecida há exatamente cinquenta anos, a 1 de setembro de 1970, dois anos depois dos acontecimentos de Maio de 1968. Mauriac, que recebeu o Nobel da literatura em 1952, não estava do lado festivo da barreira, mas do outro, como apoiante de De Gaulle, inquieto com a ameaça da rua – ou a terminar o manuscrito de Um Adolescente de Antigamente, que publicaria no ano seguinte. Na minha adolescência, Mauriac era ainda famoso. O Nó de Víboras, Thérèse Desqueyroux e O Deserto do Amor eram leituras romanescas muito aconselhadas, cheias de personagens em busca de valores e sempre a atravessar o vazio das suas existências – mas já eram datadas na época, nos anos setenta. Os seus vários volumes de memórias e correspondência, e isto só descobri mais tarde, eram preciosos: desenhavam boa parte da história da França do pós-guerra, período em que várias vezes tentou fazer ouvir a sua sensatez, sem o conseguir. Hoje, recordo os seus livros como representações de teatro literário. Um cavalheiro de outro tempo.
Da coluna diária do CM.
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