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A Dra. Joacine Kattar Moreira – que eu acho uma personagem e tanto, e não consigo criticar com maldade – propõe, num pequeno texto do Twitter, que “andar pra à frente [sic] significa mudanças e catarse e muito livro para corrigir”. Mudanças não me incomodam; catarses, é com cada um; já “livros para corrigir” é coisa que merece atenção. Os livros de hoje são, entre muitas outras coisas, uma resposta ao nosso tempo, como os livros de antanho eram respostas e marcas do seu. Não podemos mudá-los; ficam; estão escritos e impressos. Pertencem à sua época e ao fio do tempo. Transportam ideias erradas? Muito provavelmente. O desejo da Dra. Joacine, no entanto, é o de corrigi-los. No seu mundo – e no seu cérebro – existiria uma comissão que trataria de corrigir deslizes e ideias com que não concorda e com que o espírito do nosso tempo não estão, felizmente, de acordo. Este trabalho de revisão seria rigoroso e policial, visando transformar-nos em melhores pessoas e com pensamentos corretos, o que, como se sabe, acabou sempre em desgraça. A Dra. Joacine não quer negociar com o “espírito do tempo”; quer, como todas as pessoas obstinadas, ser proprietária do tempo. E dos outros.
Da coluna diária do CM.
Claro que tenho dúvidas obre os números diários de Covid19 fornecidos pelas autoridades, como toda a gente. Em primeiro lugar espero que desçam; depois, espero que desapareçam. Mas, entretanto, as mesmas autoridades (que pedem que confiemos) fazem malabarismos com eles e fico surpreendido com o alarme semanal da imprensa aos domingos e segundas: nestes dias, a regra é escrever “há muito tempo que os números não eram tão baixos”. Depois, vem a terça-feira; aí, a regra manda dizer que “há muito tempo o número não era tão alto”. Claro que a ministra da Saúde, com aquela sua entoação tão peculiar, já deixou escapar que “os números baixos dos dias anteriores” eram, afinal, “artificialmente baixos”. Ou seja, antes de haver decisão do Reino Unido sobre o “corredor aéreo” os números baixam; depois disso, quando filas intermináveis de amantíssimos turistas britânicos aguardam horas para serem despachados no aeroporto de Faro, os números voltam a níveis anteriores a 15 de julho e o “estado de calamidade” é prometido para daqui a três semanas. Um país assim merece uma festa Covid.
Da coluna diária do CM.
A poesia do italiano Cesare Pavese está reunida num título nobre: Trabalhar Cansa, traduzido por Carlos Leite – são versos narrativos, de uma beleza raríssima, que tanto falam do silêncio como dos ciclos da vida inteira, do adeus e da partida, da comoção e das horas do dia. Mas a sua obra maior é Ofício de Viver, um diário escrito entre 1935 e 1950, desde a sua passagem pela prisão fascista até à morte. São páginas onde há grandes momentos de literatura – e as marcas da intensidade da sua vida, sempre dedicada aos livros (escreveu cerca de 15 livros – ou deixou-os para publicação póstuma –, trabalhou na histórica editora Einaudi e foi tradutor). Em Portugal, além de Ofício de Viver, foram publicados Diálogos com Leucó, A Praia – e, há muito tempo, o maravilhoso Férias de Agosto, bem como Fogo Grande, O Camarada, A Lua e as Fogueiras e o belo Terras do Meu País. Os seus poemas merecem tudo: “O grande sol acabou, e o cheiro da terra/ e a rua livre, colorida de gente/ que ignorava a morte. Não se morre de verão.” Suicidou-se há exatamente 70 anos, em pleno verão.
Da coluna diária do CM.
Representar o conde Vronsky em Anna Karenina ou ter o papel principal em Macbeth, pode ser magnífico para início de carreira – mas nada se compara a ser marido de Lana Turner em Another Time, Another Place (1958). Aconteceu com Sean Connery que, aliás, na altura deu uns belos sopapos em Johnny Stompanato, o ciumento e mafioso marido real de Lana. Mas, para todos, Sean Connery é o primeiro James Bond. Fez sete 007 e influenciou a própria forma como Ian Fleming escreveu os Bonds que restavam. Ninguém esquece: a pose, a voz e o sotaque, os trejeitos, o marialvismo, a compostura, a agilidade, a beleza – tudo o que fez dele um modelo para os homens. Ficou melhor à medida que ia envelhecendo. Fez bons filmes – e notáveis papéis em filmes menos bons. Excelente em O Nome da Rosa ou em Marnie (de Hitchcock, ao lado de Tippi Hedren), grande em Os Intocáveis ou em Caça ao Outubro Vermelho, único em A Casa da Rússia, que o trouxe a Portugal. Connery, que hoje festeja 90 anos de vida (nasceu em Edimburgo em 1930), está na parte boa do nosso imaginário e do nosso sistema solar.
Da coluna diária do CM.
Jean Rhys tinha 59 anos quando foi redescoberta – não fosse Selma Cohen Vaz Dias, uma atriz holandesa de origens portuguesas (judeus que procuraram os Países Baixos), que queria adaptar o romance Bom Dia, Meia Noite para folhetim radiofónico. Jean Rhys publicara-o em 1939 e o livro, um “romance modernista”, não suscitou grande interesse. Erradamente. Seja como for, Rhys (que nascera na Dominica, nas Caraíbas, e vivia anonimamente em Inglaterra, mergulhada numa vida sentimental infeliz e em más memórias ultramarinas) esqueceu a carreira literária (cinco livros) – até que Selma Vaz Dias publicou um anúncio numa revista pedindo informações sobre o paradeiro da autora. Bom Dia, Meia Noite só foi adaptado em 1957, mas foi um bom recomeço. Nove anos depois publicou Um Vasto Mar de Sargaços, a sua grande obra-prima, uma espécie de arqueologia feminista e anticolonialista de Jane Eyre, de Charlotte Brontë, publicado há 120 anos – um livro belíssimo e de construção complexa que nunca se esquece. Passam hoje 130 anos sobre o nascimento de Jean Rhys e a sua vida cheia de melancolia.
Da coluna diária do CM.
Passam no próximo domingo 120 anos sobre a morte de Eça de Queirós. Poderíamos falar do seu génio romanesco, das suas qualidades como humorista e retratista, da extraordinária herança que deixou como autor da nossa língua; mas acho preferível que recolhamos um livro da estante. Se não for Os Maias, que é a sua maior obra-prima, que seja A Cidade e as Serras, o mais belo, ou A Relíquia, prodígio de humor e erotismo, ou O Primo Basílio, retrato burguês lisboeta – ou os textos da sua Campanha Alegre e O Conde de Abranhos, para nos rirmos da política, ou a correspondência de Fradique Mendes, para nos rirmos do mundo. Todos lhe somos devedores: o melhor da nossa língua deve-lhe a graciosidade, a ironia, a leveza, mas também a beleza das descrições; o melhor da nossa sensibilidade deve-lhe a parte cínica (infelizmente pequena) do nosso riso e o sentido trágico da vida normal; o nosso sentido do drama deve-lhe uma galeria de personagens inesquecíveis. É por isso que não podemos esquecê-lo. Adorável Eça.
Da coluna diária do CM.
A meio do estado de emergência, o concílio periódico de políticos pediu uma nova estratégia de comunicação para o boletim diário da DGS: nada de começar pelos números maus; em vez disso, valorizar os sucessos. Compreende-se: números não são factos, dependem sempre da forma como são apresentados, valorizados e manipulados. Escrevo “manipulados” sem más intenções. Veja-se: ontem houve 278 novos casos de infeção; mas há muito tempo que não havia tão poucos casos (1390) sob vigilância. Uma coisa equilibra a outra, portanto. Como se sabe, a nossa vida (o trabalho, a ida às compras, o gozo da praia, a relação com os outros) depende de notícias e de números, da confiança e do medo. O problema é que durante certo tempo vivemos metralhados por discursos ridículos e patrióticos sobre “o milagre português” – até sucumbirmos à leitura cruel das estatísticas, que não eram boas, até porque ninguém conseguiu boas estatísticas no combate à pandemia. Os políticos não podem falar totalmente verdade; mas não devem tratar-nos como crianças influenciáveis, incapazes de detetar uma manigância descarada.
Da coluna diária do CM.
O escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte publicou um dia destes uma bela crónica. Farto de ver parvinhos espalhados nos telejornais, imaginou-se numa ilha, rodeado de quadros de Velázquez, de primeiras edições de Cervantes ou Conrad (ou do Tintin), comandando à distância um exército de sicários e de hackers que espalhasse um vírus seletivo e mortal para exterminar irresponsáveis e imbecis, ou os que entram em restaurantes de chinelos e calções, ou os que se fotografam diariamente no Instagram. A minha lista inclui também pessoas que usam a palavra “resiliência” e dão erros ortográficos, que dizem “o novo normal” e reproduzem banalidades com ar moral e esticadinho. O negócio da indignação seletiva nas “redes sociais” também seria um bom alvo, mas, bem vistas as coisas, foi para isso que elas foram criadas, para reunir os tolos em segurança e confinamento. E criaria um recinto para “fascistas” e “antifas” rebolarem na lama e sem máscara, uns com t-shirts do dr. Salazar, outros com boinas do dr. Guevara, como num episódio da Guerra dos Tronos, mas sem neve para já.
Da coluna diária do CM.
A monarquia e a cautela treinada de Juan Carlos, a par do desejo de prosperidade, trouxeram a democracia a Espanha. Não era fácil, mas foi possível. Na altura, era preciso abandonar o franquismo – uma velharia reacionária e tonta, como a sua adversária, que resultou dos conflitos da primeira metade do século XX – e devolver à Espanha, não a grandeza barroca que a marca geneticamente, mas uma harmonia que nunca teve. Houve Juan Carlos, sim – e houve Adolfo Suárez, evidentemente, e o último estertor dos militares franquistas, de tricórnio e bigode. E um pacto nacional para enterrar o passado. Quarenta anos depois, o passado foi desenterrado e o radicalismo anda à solta em Espanha, como uma vingança, a par da corrupção que, depois de contaminar a máquina influente de todos os partidos políticos e das autonomias (do PP ao Podemos, passando pelo PSOE e pelos catalanistas), mancha Juan Carlos para sempre. A última coisa de que Espanha precisava era da corrupção na monarquia. Fiilipe VI só tem uma forma de evitar o desastre e a desagregação do país: ser exemplar no castigo. E doloroso.
Da coluna diária do CM.
Ontem, no CM, Rui Pereira tocou no tema e fez bem: estamos a embrutecer, escrevemos cada vez pior, não se incentiva o conhecimento nem o milagre da língua, ridiculariza-se o respeito pelos autores clássicos da nossa literatura, perdemos – sem olhar para trás – vocabulário e sensibilidade, banaliza-se a “contemporaneidade” como uma espécie de desculpa para todas as alarvidades da “arte” e da “comunicação”. Desde a publicação de Mau Tempo no Canal (1944), de Vitorino Nemésio, uma das joias da nossa cultura literária – e da nossa língua – que perdemos mais de 15% daquele léxico. Não só não identificamos parte daquilo de que o livro fala, mas também é difícil (para um aluno do Secundário) identificar 15% das palavras usadas, para não falar das suas construções gramaticais. Esta perda é dramática. O sistema atual visa fabricar mais ignorantes e mais relapsos em relação à tradição e à cultura. Mais gente que reage indignada a qualquer parvoíce – mas que é incapaz de falar claro em português. Estou convencido (ao contrário de Rui Pereira, certamente) de que se trata de um plano. Está em curso.
Da coluna diária do CM.
De entre o que ontem se disse de Fernanda Lapa (1943-2020), as palavras de Maria do Céu Guerra são as mais perfeitas: “Sempre talentosa.” O que melhor guardamos de uma pessoa que atravessa a cultura portuguesa nesta viragem do tempo é isso mesmo: uma pessoa talentosa. Leal, combativa, trabalhadora, obsessiva, exigente – e com o extraordinário talento de Fernanda Lapa. É isso que nos salva no meio da perda e do desinteresse. Podemos não compreender ou não partilhar a paixão extrema de Fernanda Lapa pelo teatro, pela direção de atores, pelos autores que encenou, pelas suas ideias políticas, pelo palco, pelo estudo, pela provocação – mas o seu talento e o seu sentido de humor, além da naturalidade da sua zanga com os outros, são eternos. No final do ano estreará a sua encenação de O Punho, de Bernardo Santareno – cujo centenário se assinala a 19 de novembro próximo –, pela companhia a que dedicou boa parte do seu entusiasmo, a Escola de Mulheres, nome que evoca Molière, outra personagem de talento extraordinário, zangada, cheia de humor e ironia. Nada mais indicado.
Da coluna diária do CM.
Como não vou comentar o despautério que se vive na política de Espanha, falo-vos de Diego Velázquez (1599-1660), sobre cuja morte passam hoje 360 anos, e que foi o pintor magnífico de Filipe IV, ou seja, Filipe III de Portugal – que não teve um reinado fácil, como se sabe, dominado pela Guerra dos 30 Anos, pelos conflitos com a Catalunha e pela perda do reino vizinho (nós). Mas Velázquez é que importa. Há um autorretrato, de 1640, que o mostra macambúzio e sombrio – mas divino. Velázquez era divino. Provas? Os retratos do Duque de Olivares (o de 1624) ou do papa Inocêncio X, a Vénus ao Espelho e, sobretudo, Las Meninas’. Um pintor que assina estas obras está acima dos mortais e, bem vistas as coisas, é o ponto mais luminoso da idade barroca e desse Século de Ouro espanhol. Las Meninas (1656), onde representa a família de Filipe IV, é um dos três quadros que mais me comovem – uma encenação sobre pintura, poder, solidão, o engenho do barroco, a beleza, brincadeira, os espelhos e as sombras. No fim da vida quis à força ser feito nobre; o rei teve de pedir autorização ao papa – suspeitava-se que era de origem judaica e, já agora, portuguesa. Bom, outra história.
Da coluna diária do CM.
Foi num verão de há muitos anos que li Bel Ami, de Guy de Maupassant (1850-1893). O efeito nunca mais passou, o que se compreende: não há narrador tão chocante no meio da literatura que se lê em plena adolescência. Tolstoi admirava-o e considerava Uma Vida, o primeiro dos seus romances, um dos maiores monumentos da literatura francesa. A esta distância, imagino o encontro de monstros entre Maupassant, Flaubert (seu protetor), Zola e Turguéniev, em casa do autor de Madame Bovary – daria para um outro livro. Maupassant tinha o espírito de um cronista (foi jornalista) e a curiosidade de um folhetinista melancólico mas cheio de atenção à venalidade da época. Em Bel Ami quase tudo é pecado, sobe e desce social, cupidez, erotismo e tristeza. O seu pessimismo é altíssimo (nunca foi alinhado politicamente, o que é uma vantagem), não tem o riso nem a bílis de Balzac, e seguramente não tem o preciosismo de Flaubert: mas o resultado é um retrato da França. 170 anos depois (que se assinalam hoje), ninguém conseguiu mostrar como Maupassant a natureza subterrânea dessa mediocridade. Puro génio.
Da coluna diária do CM.
Conheci P.D. James (1920-2014) em Madrid, durante uma espécie de debate sobre literatura policial. Eu tinha acabado de ler Intrigas e Desejos (Devices and Desires, 1989), mas guardava ainda o sabor amargo de Um Gosto pela Morte (A Taste for Death, 1986) – e o que mais apreciava era uma das máximas criações ficcionais, o inspector Adam Dalgliesh, que aparecera pela primeira vez em O Enigma de Sally Jupp (1962, o ano em que nasci). A detetive privada Cordelia Gray nasce em Profissão Estranha para uma Mulher (de 1972) – mas Dalgliesh é digno de memória: além de polícia é poeta e a sua vida está tão cheia de melancolias como de assassínios. A própria P.D. James não tem uma vida simples: viúva, foi assistente hospitalar e trabalhou na polícia criminal – e estava destinada a ser uma velhinha curiosa que escrevia “romances policiais de mistério”. Mas a sua paixão pela literatura (era especialista em Jane Austen) fê-la ultrapassar os padrões vedados às mulheres no policial (mesmo assim, as feministas não gostavam dela). Nasceu há exatamente 100 anos. Três dos seus livros são notáveis.
Da coluna diária do CM.
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