Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
É provável que a eleição de Trump seja um marco. Percorrendo a lista dos presidentes dos EUA há outros semelhantes – mas, creio, poucos com esta projeção (o facto é que não nos recordamos dos outros) e nestas circunstâncias. Na escala de grandeza e grandiosidade dos que antes ocuparam o cargo, Trump ficará como uma nódoa; houve excelentes presidentes, republicanos e democratas, e é maravilhoso reler as páginas da história dos EUA na passagem do século XIX para o século XX para perceber como Washington fervilhava de ideias, gente culta, séria ou leviana, mas com um projeto nacional. Trump foi eleito pela grande faixa silenciosa dos americanos, humildes e desesperados, descontentes com a chamada “elite liberal” – e esquecidos pela imprensa e pelos dirigentes dos dois grandes partidos. A grande classe média irá desalojá-lo. Mas quem o irá correr da Casa Branca é, sobretudo, o sentido da decência e da honorabilidade. Trump foi (e é) uma mancha na tradição republicana e conservadora e é bom que se perceba que não compensa ceder à selvajaria, à impreparação e à falta de decência.
Da coluna diária do CM.
A Liga de Futebol quer meter-se pelos caminhos civilizadores da pátria – e vai “punir comportamentos discriminatórios de género e orientação sexual”. A minha primeira reação foi dizer: “Que meninas!” Imagino o que os patrões do futebol querem dizer com a medida e que, na sequência da criminalização de comportamentos racistas do público (sobre os quais aplicam castigos absolutamente ridículos), talvez se preparem para vigiar & punir pessoas que, a meio de um jogo, gritem “Não sejas LGBTQI!” para um jogador ou para um membro do distinto público. A Liga, que não consegue evitar suspeitas de corrupção, malandragem óbvia, treçolhos de arbitragem ou falência apressada de clubes sob a sua jurisdição, vai educar o povo, e já me surgiram várias ideias estapafúrdias sobre os trabalhos censórios dos delegados da Liga daqui em diante. Mas a Liga pode começar por punir a Federação Portuguesa de Futebol, que quis impor um valor máximo para os salários das jogadoras de futebol, ao contrário dos jogadores, que não têm limite – mesmo quando jogam pior. Maior discriminação não me parece haver.
Da coluna diária do CM.
Vincent van Gogh pinta girassóis, de Paul Gauguin
Esses anos parecem fatais e, dois anos da prematura morte de Van Gogh (1853-1890), Paul Gauguin pinta um quadro belíssimo, Vincent van Gogh pinta girassóis. Sabemos que o fez; pintou girassóis, luminosos, coloridos, sempre comoventes por causa da luz, da inclinação, do realismo e do irrealismo; pintou pomares com cores mais ténues; ciprestes sombrios à beira de caminhos estreitos (à exceção daquele Campo de Trigo com Ciprestes); naturezas mortas com jarros de girassóis; lírios azulados em contraste com fundos quentes; jardins ou planícies inclinadas sob sóis visíveis e invisíveis – e, são os que eu prefiro, retratos e autoretratos desses dois últimos anos de vida, com ou sem barba, com e sem cachimbo, com e sem orelha cortada, em fundo verde claro ou em azul sombrio. A cor maravilhosa da melancolia, que é uma invenção flamenga e neerlandesa, ganhou com Van Gogh uma dimensão de vivacidade, como um clarão total, abrasador ou prenunciando o expressionismo que havia de chegar (como A Noite Estrelada). Passam hoje 130 anos sobre a morte de Vincent Van Gogh. Devemos-lhe tanto.
Da coluna diária do CM.
Porque é que ouvir Bach é sempre maravilhoso, mesmo quando parece chato? Porque voa. Concertos para orquestra, música de câmara, cantatas e obras corais, oratórias, missas, peças para solistas de violoncelo, violino, viola, alaúde, flauta, orgão – tudo voa, tudo esvoaça, tudo se repete como um momento original, tudo na sua obra é um diálogo entre o vazio e a plenitude, entre a solidão humana e as melodias de um Deus furioso, obstinado e poderoso. Tudo na sua obra voa, flutua, vai e vem ao sabor de fórmulas de rigor matemático – a música de Johann Sebastian Bach (1685-1750), de quem hoje passam 270 anos sobre a sua morte, é uma das provas da existência da beleza e da possibilidade da sua transcrição em partitura. Ouvi-la é já uma forma de recompensa puramente espiritual, ultrapassando o enlevo do melómano ou o simples prazer do iniciado, e essa é uma das razões porque pergunto “porque é que ouvir Bach é sempre maravilhoso, mesmo quando parece chato?” Porque é como as suas suites de violoncelo: uma recordação da misteriosa alegria que prolonga o tempo. E às vezes não consigo explicar.
Da coluna diária do CM.
Nascido no século XIX, Salazar (1889-1970) pairou sobre o século XX. Com Cunhal e Soares forma uma trilogia dominante da nossa história política – António Barreto publicou agora um livro sobre essas três figuras. Porém, 50 anos depois da sua morte (que passam hoje), à maior parte das pessoas (sobretudo das chamadas “novas gerações”) Salazar há de parecer apenas uma caricatura. Não é. Sob o pálio redundante do rigor na contabilidade da pátria, estava quase tudo o resto: o catolicismo de cacique, o desprezo pelos que o apoiaram (da igreja aos militares, e os inteletuais), a democracia e a América (com a sua perversão nos costumes e a captura do poder pelos grupos de pressão) como o pavor diante da queda do império, dos tempos modernos e da “maluqueira que anda por aí” (escreve-o num bilhete sobre o escritor Ruben A.). Sim, produto do seu tempo, claro. Da vetusta Coimbra e da ideia de um país rural, modesto, modelado por “valores inflexíveis”. Há também a caricatura, sim, que é fascinante. Não é por acaso que a melhor aparição de Salazar na literatura seja num romance de Baptista-Bastos.
Da coluna diária do CM.
Peter Sellers morreu há quarenta anos (1925-1980). No meio do estrelato do cinema atual, falar de Sellers é quase mencionar uma velharia que já não se quer recordar. A sua vida não foi fácil (morreu com 54 anos) e não quero julgá-la ou evocá-la. Em vez disso: quem se recorda do psicanalista Dr. Fritz Fassbender de What’s New Pussycat?, a contracenar com Ursula Andress, Romy Schneider e Peter O’Toole? Ou do mestre do bacará de ‘Casino Royale’, a versão cómica de 1967, a lidar com David Niven, Orson Welles, Ursula, Charles Boyer, John Huston ou Belmondo e (ah!) Jacqueline Bisset? Que seja pelo menos por Dr. Strangelove (1964), de Stanley Kubrick, ou pela série A Pantera Cor de Rosa (o primeiro dos filmes, de 1963 com David Niven e Claudia Cardinale – os outros de 1976 e 1978), inesquecível pela forma como interpreta o papel do Inspetor Jacques Clouseau, o mais trapalhão dos detetives, aliás, um dos personagens mais trapalhões e ternos da história do cinema (a par de M. Hulot, de Jacques Tati). Com um verão político tão estúpido, o inspetor Clouseau é um bálsamo para o espírito.
Da coluna diária do CM.
Parece adquirido que Amália da Piedade Rebordão Rodrigues nasceu mesmo a 1 de julho de 1920 – mas os papéis do registo civil são como são e apresentam a data de 23. Completa hoje 100 anos de idade. “Completa hoje” e não “completaria hoje” porque é impossível anunciar o seu desaparecimento; a sua voz continua a ser a nossa voz. Mesmo isolando-a de um género musical, o fado, Amália será sempre o fenómeno, a dúvida, o mistério, a grandiosidade, a biografia escondida e desocultada aqui e ali. Amália sabia que a sua grandeza também tinha a ver com os mistérios que acompanharam a sua biografia – mas nada ultrapassa a nossa perturbação diante da sua voz (“o grão da voz”), o milagre da sua representação, a sua presença em cada poema cantado, em cada poema que escreveu. Não era apenas “a fadista”. Era o mistério da sua voz, transportando uma melancolia única, uma alegria escondida e fugaz, um gosto pela elevação, um desejo incompreendido. Por isso não faz sentido isolar essa voz do que ela significou e significa para quem, alguma vez, se sentiu português mesmo por engano. Ela é todas as nossas ilusões.
Da coluna diária do CM.
Se Jorge Jesus regressa ao Benfica depois de o Benfica o ter vilipendiado e perseguido por se ter mudado para o seu rival mais imediato, é porque entende que “negócios são negócios”. Vem nos diálogos de filmes: “Just business” (“Apenas negócios.”), diz alguém para Jack Nicholson em A Honra dos Padrinhos para lhe explicar por que era necessário assassinar a sua namorada, Kathleen Turner. Tinha mais graça se JJ tivesse regressado do Sporting diretamente para o Benfica, mas tal não foi possível. No caso de Cristina Ferreira, essa gracinha foi perfeita: sai da TVI para a SIC e da SIC para a TVI. Ambos como vencedores, provando que o risco compensa e que eles são desejados. Nada melhor do que esse bálsamo para o ego de duas pessoas como JJ e CF, pessoas que vieram da base da pirâmide e transportam um halo de vencedores, sobretudo Cristina, que é mulher num mundo de rapazes e gestores de meia idade; o seu livro, Sentir, explica como isso se faz: assumindo o desejo de ascensão e o reconhecimento da origem social. É um trunfo permanente. JJ nunca saberia fazer isso, é de outro campeonato.
Da coluna diária do CM.
Da coluna diária do CM.
Um dia pensaremos melhor no “confinamento”. Recordo aquela manhã de Abril em que, quando ia trabalhar, encontrei um único carro em 15 quilómetros da auto-estrada do Estoril (é certo que sou madrugador). É difícil isso repetir-se; neste caso, o deserto não era uma metáfora mas um retrato do real. Em Cidade Suspensa, um pequeno e belíssimo livro a ser publicado por estes dias pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o fotógrafo Miguel Valle de Figueiredo e o escritor Bruno Vieira Amaral apresentam Lisboa deserta durante o “estado de emergência” – o que era um animal vivo e circulante é, nestas fotografias e nestes textos, representada como uma espécie de fantasma com interrupções de luz trazidas por pessoas que caminham solitárias nas ruas, ou levam uma criança a tomar ar ou, como eu e muitos outros, iam trabalhar mais ou menos às escondidas. Cidade Suspensa ficará para a história – Miguel e Bruno dão-nos um retrato que dificilmente poderemos explicar senão pela abundância de fantasmas e de vazios silenciosos durante este período. E de sofrimento dos que ficaram invisíveis.
Da coluna diária do CM.
O meu sonho é ser marcelólogo. Ler, estudar, analisar, comparar, classificar o que o Presidente Marcelo diz ou é citado como tendo dito, pensado ou permitido que se pensasse que ele pudesse ter dito. É uma ocupação a tempo inteiro – atenção! – e exige tanta disciplina como bom humor. Disciplina, porque MRS se multiplica em declarações; bom humor para resistir à tentação de o desmentir e para imaginar a alegria jovial e secreta com que MRS diz certo número de coisas, sabendo de antemão quem vai reagir, quem vai entender e quem vai irritar-se. Por isso, tanto posso deter-me na frase em que diz declarar-se “muito feliz” com os sucessos da justiça nos casos BES, Tancos e Operação Marquês – como na sua aparência grave e triste ao sair das reuniões do Infarmed (a que pôs termo por concluir que eram perigosas para o regime), como nos seus repetidos avisos sobre os dramas dos incêndios (que têm caído no saco roto das nossas indignações). A sua felicidade crescente, no entanto, é um enigma. Tanta felicidade corre o risco de passar por dissimulação, como explica qualquer anti-Maquiavel.
Da coluna diária do CM.
Os amigos estranhos são os inimigos de sempre. Uma vida consagrada à leitura de romances de espionagem ensina-nos esse princípio básico — no final das histórias descobre-se sempre uma inesperada cumplicidade entre personagens que combatiam em trincheiras opostas. É o jogo. Veja-se António Costa que, depois de classificar como repugnante a atitude do governo holandês, foi bem disposto a Haia pedir apoio e dinheiro– ainda que, para já, sem sucesso imediato. Os seus soldados também não queriam acreditar quando o viram sorridente ao lado de Viktor Órban, o inimigo húngaro, assinalando que os princípios do Estado de Direito (que no dia anterior o Presidente da República, muito voluntarista e cheio de moral, lembrou aos polacos) não têm a ver com os fundos europeus nem com a lista dos países afetados pela Covid. Costa é letal neste jogo. Alguém acreditou que ia mesmo seguir o caminho do Syriza grego ou que ia dançar com Varoufakis? É o jogo. Para quem acreditava que a política ia de férias, Costa mostra que o seu otimismo impenitente é um bálsamo para o poder. Os teóricos aprendam.
Da coluna diária do CM.
O autocarro 750 vem de Algés e, quando é abordado no Campo Grande, em Lisboa, está a abarrotar de gente e o próximo da linha só chega daí a 45 minutos; por isso, quando chega, desfaz-se a fila onde se tenta, na medida do possível, manter a distância física (que os tolos teimam em chamar “distanciamento social”). Neste pico do verão, os vidros estão fechados e não há ar condicionado. As pessoas saem, entram – vão trabalhar ou regressam a casa. Esta imagem não está nas reportagens que as televisões bem educadas fazem sobre teletrabalho, ioga em casa e comida entregue pela UberEats – mas é real para quem não vive na bolha com acesso às pantalhas. São pessoas que têm medo, não discutem as “letalidades” nem o “achatamento da curva”, nunca fizeram teletrabalho e têm famílias à espera. Como as pessoas a quem a DGS recomenda que higienizem com gel os empilhadores, gruas, pás e martelos das obras, onde devem manter 2 metros de distância dos outros trabalhadores. As pessoas do 750 levantam-se às quatro, cinco da manhã. Vêm de todo o lado, mas não estão nas estatísticas. Não são visíveis.
Da coluna diária do CM.
Fiquei preocupado ao perceber que os alunos tinham de optar entre Os Maias (720 páginas, edição de bolso) e A Ilustre Casa de Ramires (368). Mas quando li – depois de muita insistência – o exame de Português do 12.º ano, no qual se pedia para “comparar” dois trechos destas obras, confirmei que há mesmo inteligências estapafúrdias (e não falo já do todo da prova, que é tola e orelhuda). Vamos ao Eça: Os Maias é a obra definitiva de Eça, o momento mais alto, retrato romanesco da pátria lisboeta, uma ópera familiar; optar, em contraponto, ou complemento, pela Ilustre Casa (vamos e venhamos, um livro para ler de modo totalmente irónico e zombeteiro), é uma tontice – quando existem A Cidade e as Serras ou A Relíquia, melancolias e malandrices de Eça, geniais de estilo ou de erotismo, já para não falar de O Primo Basílio. Os alunos que leram ou um ou outro (Os Maias ou A Ilustre Casa), só podem comparar os dois trechos não percebendo metade deles, recorrendo a banalidades e cópias das minutas de preparação para os exames. Assim também se assassina o Português. Nos exames.
Da coluna diária do CM.
Nada obsta a que a Câmara de Lisboa – ou a Egeac – nomeiem a ex-deputada Rita Rato para a direção do Museu do Aljube, uma casa dedicada “à memória do combate à ditadura e à resistência em prol da liberdade e da democracia”. O facto de ser militante ou dirigente do PCP não a impede de ocupar qualquer cargo para que tenha sido recrutada, sobretudo quando a entidade que o faz se rege pelo direito privado, não estando obrigada a abrir concursos públicos. Ponto. Acontece que Rita Rato tem no seu currículo uma coisa ainda mais “interessante” do que o seu projeto para o museu: ter dito, numa entrevista a este jornal, e na qualidade de militante do PCP, que desconhecia o Gulag e os campos de concentração soviéticos, porque não tinha estudado a matéria na faculdade. Estará uma estudante de Ciência Política que desconhece o horror do Gulag e a repressão soviética preparada para dirigir um museu dedicado a relembrar o horror e a brutalidade do Aljube e do fascismo? Terá a nova diretora estudado o assunto na faculdade? Quem sabe, um dia organizará também uma exposição sobre o Gulag soviético.
Da coluna diária do CM.
O Presidente da República anunciou o fim das reuniões no Infarmed como se tivéssemos vencido o vírus. Não há razões: Portugal é o segundo país do mundo com mais infectados por milhão de habitantes. Os melhores do mundo. O milagre português merece uma pergunta simples e direta: como é possível que o nível de “indisciplina sanitária” tenha crescido tanto, num país que, ordeiramente, ficou em casa nos meses mais duros da pandemia? Resposta simples e direta: graças à péssima atuação das autoridades – exceções, ziguezagues, critérios oscilantes e contraditórios, favores políticos e orientações discutíveis (lembram-se da polémica da máscara?) e prontas a serem desmentidas no dia seguinte. Não se pode querer turismo – e confinar os turistas a partir das oito da noite. Não se pode querer “a retoma da economia” – e autocarros e comboios a circularem com metade da lotação. Não se podem mandar os miúdos à praia (mas não à escola, o que é um absurdo) – e pedir que andem em bicos de pés. Todos estão a pensar em sondagens e eleições, o que tem elevado, não o vírus – mas o nível do ridículo.
Da coluna diária do CM.
Faz parte da nossa cultura há tanto tempo e com tanta intensidade, é tão inquestionável a sua aparente genialidade, que duvidamos que Arthur Conan Doyle (1859-1930), o criador de Sherlock Holmes, tenha morrido há apenas 90 anos, assinalado hoje. Em quatro romances (Um Estudo em Escarlate, O Signo dos Quatro, O Cão dos Barkerville e O Vale do Terror) e cinco ou seis recolhas dos 56 contos, Conan Doyle construiu uma personagem mais poderosa do que toda a sua vasta obra – distribuída por história militar, ficção (contos e romances, incluindo as do seu herói de ficção científica, Prof. Challenger), espiritismo, ensaio vagamente teológico ou filosófico, teatro e até poesia. O exibicionista e tímido Sherlock Holmes é a nossa inquietação, o nosso cérebro ideal, a nossa máquina de dúvidas, a nossa estranheza, o recanto de superioridade; poucas figuras na cultura ocidental se tornaram tão populares em tão pouco tempo – sem ser no cinema ou na banda desenhada. Doyle seria impossível sem a Inglaterra desse tempo, mas 90 anos depois a Inglaterra não seria a mesma sem a memória de Doyle.
Da coluna diária do CM.
Este é um texto sobre o atual desaparecimento de Portugal. Lamento. As declarações públicas sobre “a decisão inglesa” dão-me a impressão de que não aprendemos nada – nem a ironia, a dimensão da glória, o gosto pelo combate ou o sentido das proporções e o conhecimento da malandrice diplomática. O país assiste a uma poderosa vaga de manipulação interna, vão-lhe ao bolso com argumentos pífios, aproxima-se uma pandemia de pobreza, os aldrabões da bola passeiam-se na televisão com a habitual prosápia, fazem-se cálculos sobre a percentagem de poder – e está anestesiado. Está a faltar-nos graça, disparate, ironia, sentido da recusa. Perdemos o nosso barroco de glória e passamos a vida a pôr fotos de legumes no Instagram. Autorizamos arbitrariedades, gostamos de life style e da imagem que os turistas têm de nós. Sem paixão nem classe, elegância, competência (trituramos os competentes e os melhores) acima de toda a prova ou, repito, sentido do disparate. Esquecemos que a História é feita pelos povos apaixonados – não pelos povos contentinhos e satisfeitos com a festa de circunstância.
Da coluna diária do CM.
Na sequência dos trágicos incêndios de Pedrógão, em 2017, o então ministro da Agricultura, Eng.º Capoulas Santos, apresentou um “pacote legislativo” como sendo “a maior reforma florestal desde D. Dinis”. Todos rejubilámos. Desde D. Dinis? Caramba, que reforma do caneco. Hoje sabemos que não foi reforma nenhuma (nem as árvores foram plantadas), mas ficou aquela vontade de ultrapassar, de goela, as glórias florestais do passado. Ontem, o primeiro-ministro anunciou que a TAP era tão importante como o foram as caravelas “na era dos Descobrimentos”. Ouviu-se uma ovação tremenda – e um comovido halo de eternidade e grandeza esvoaçou pelo país fora. Pois a TAP dobrou o Cabo das Tormentas, enfrentou o Adamastor, sobreviveu às tempestades, foi cantada por Camões? Assim aconteceu, aprendam. Esta insistência em comparar as trapalhices do presente às glórias do passado ou é um truque de cómico ou retórica para papalvos – ninguém de nós o merece, sobretudo depois de os políticos andarem a brincar com a TAP como crianças entretidas com aviõezinhos de latão, à espera da idade adulta.
Da coluna diária do CM.
De repente, dei por mim a tornar-me um defensor de J.K. Rowling, não interessa o que ela diga – desde que tenha oportunidade de o dizer. Vamos ao princípio: num texto do Twitter, a autora da saga Harry Potter contestou que em vez de se falar de “mulheres” se refiram “pessoas que menstruam”, como se fosse a mesma coisa. Foi acusada de transfóbica, inimiga dos transexuais, e a “comunidade literária e artística de vanguarda” crucificou-a, pedindo à sua editora que a expulse e à sua agente que deixe de representá-la. Houve autores (todos medíocres e um pouco para o merdoso, se querem saber) que abandonaram a agência – e funcionários da editora que se recusaram a trabalhar no seu novo livro. Uma pessoa sensata argumentará: que tinha ela que expor a sua opinião? É isso que me intriga. Aqui entre nós, somos pessoas de um tempo em que os intelectuais, os escritores e sobretudo a gente de bem lutava pela liberdade de expressão. Hoje, a classe dos “ativistas” pede que se censurem autores e se possam punir escritores por terem dado a sua opinião. Passo a passo, os tolinhos tomam o poder.
Da coluna diária do CM.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.