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A política não foi de férias.

por FJV, em 30.06.20

Daqui a alguns anos (porque este ano durará tempo demais, e prolongar-se-á até ao insuportável) será possível fazer a história das manobras de bastidores da política portuguesa que acompanharam a evolução da pandemia: manipulação e distorção de dados, negociações complexas com razões ocultas (desde o aeroporto do Montijo à autorização para a festa do Avante, tão curioso), trocas de favores e de silêncios – a lista aumentará durante muito tempo, para provar que mesmo no meio da crise (sobretudo nos seus momentos mais agudos e dramáticos) a política nunca foi de férias ou ficou prisioneira do confinamento. O género humano é assim, duvidoso, matéria de romance negro, aqui ou em outras paragens – mostrando que foi quase sempre assim e que, com toda a probabilidade, não é possível ser de outra maneira. Revendo a prestação televisiva do primeiro-ministro no programa de Ricardo Araújo Pereira e tendo em conta o que sabemos das tempestades das últimas semanas, por detrás das eventuais gargalhadas de António Costa estava um curso inteiro de “ciência política”, digamos assim. 

Da coluna diária do CM.

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Antoine de Saint-Exupéry.

por FJV, em 29.06.20

Li O Principezinho demasiado tarde e por obrigação – o que foi bom porque não me comovi fora de tempo com o pessimismo de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) em relação à natureza humana, que aliás partilho. Mas tinha lido antes Voo Noturno (que teve direito a filme, com Clark Gable, John Barrymore ou Helen Hayes), um romance passado nos céus e na paisagem da Patagónia argentina, cheio de pilotos que cumprem missões arriscadas e exibem um heroísmo além dos limites. Saint-Exupéry faz parte do panteão da literatura francesa por alguns desses livros (como Cidadela, Correio do Sul, Terra dos Homens ou Piloto de Guerra) em que um herói solitário se cruza com a abnegação e o sentido do dever, em cenários que vão do Mediterrâneo e de África à América Latina. O Principezinho que foi publicado em França só depois da morte do autor (que continua a alimentar o mistério, numa missão militar de reconhecimento aéreo) – é uma alegoria ingénua e uma fábula com milhões e milhões de leitores. Passam hoje 120 anos sobre o nascimento de Saint-Exupéry, piloto, escritor e viajante.

Da coluna diária do CM.

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Xadrez e racismo.

por FJV, em 26.06.20

Infelizmente, há coisas que o fecho de fronteiras não impede de entrar portas dentro, mesmo que os sinais venham do outro lado do planeta. Veja-se o caso da cadeia de rádio australiana ABC, que lançou um debate sobre se o facto de as peças brancas se moverem primeiro no tabuleiro de xadrez é uma regra racista. “Saem as brancas” – regra que se segue no xadrez (e nas damas, mas com a atenuante de as peças se moverem nos quadrados pretos) – é, portanto, uma frase que pode esconder uma determinação racista básica ou genética. Esta regra, que tem séculos, pode ser um estigma. Os buracos negros que andam no vazio do universo, já em cima, assemelham-se também às peças escuras que se movem no tabuleiro de xadrez e que, portanto, podem indiciar racismo por parte dos cientistas. Não sei o que pensam xadrezistas negros como Amon Simutowe ou Maurice Ashley que podem ser considerados colaboracionistas com o racismo por se terem dedicado a plácidos e solenes jogos de xadrez, abrindo com as brancas, fazendo xeque-mate com as brancas ou, pior, defendendo a rainha branca, a mais forte do tabuleiro.

Da coluna diária do CM.

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Os melhores do mundo em rabujice.

por FJV, em 25.06.20

Ser o “melhor do mundo” é um coisa tonta, sobretudo quando somos nós próprios a dizê-lo. Teremos os melhores futebolistas do mundo? Seremos o melhor destino turístico do mundo? As melhores sardinhas do mundo são nossas? Os melhores poetas? O melhor bacalhau do mundo? Temos belas praias – serão as melhores da Europa ou do mundo? Teremos mesmo os melhores restaurantes do mundo? Somos os melhores do mundo a organizar a Web Summit? Somos o grande milagre – os melhores do mundo, portanto – a resistir à Covid19 e a fazer testes? Os nossos vinhos são bons – serão os melhores do mundo? Sim, o vinho do Porto é maravilhoso, único, para mim o melhor – mas será o melhor do mundo? As nossas startups de tecnologia terão de ser as melhores do mundo? À doença de sermos “os melhores do mundo” é preferível certa mediania: políticas decentes, menos aldrabices em geral, menos tolos a anunciar que somos “os melhores do mundo”, uma doença que tanto nos deixa nos píncaros como nos leva à depressão, à rabujice e à subserviência cega por tudo e por nada. Isto pode ser muito pior do que a Covid.

Da coluna diária do CM.

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Marcella.

por FJV, em 24.06.20

Estou a ver, em doses sensatas, a terceira temporada da série Marcella (ITV/Netflix), criada por Hans Rosenfeldt, o autor da sueca Bron/The Bridge; a figura principal é uma detetive da polícia londrina interpretada por Anna Friel – paranóica, obsessiva, mãe atormentada, esposa abandonada, mulher indelicada, fria e indiferente, frágil em situações de risco, acometida de lapsos de memória, sempre no fio da navalha, sempre à beira do abismo, antipática quando não deve, simpática em raros momentos. Em The Bridge, Rosenfeldt tinha criado a detetive Saga Norén, da polícia de Malmö, que sofria da síndrome de Asperger (dificuldade nos relacionamentos sociais e falta de empatia, nomeadamente) e escapava ao estereotipo da investigadora tradicional; Marcella Backland é uma construção ainda mais complexa neste universo violento – apetece corrigi-la, mas ela segue o seu caminho errático, longe da figura da “princesa do crime”. Nas duas séries anteriores, não há erro que não cometa; a série atual duplica ou triplica os seus problemas de identidade. Recomendo-a sem reservas.

Da coluna diária do CM.

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Ir à guerra na literatura, há que tempos.

por FJV, em 23.06.20

O livro O Que eu Ouvi na Barrica das Maçãs, de Mário de Carvalho (Porto Editora), foi este ano distinguido com o Grande Prémio de Crónica, da Associação Portuguesa de Escritores (APE). O escritor Rui Zink, de metralhadora na mão, escreveu no Facebook um texto enfurecido e zangado, no qual insulta a APE com uns parágrafos divertidos – à primeira vista porque o seu Manual do Bom Fascista (Ideias de Ler) não arrebatou o prémio, para o qual, suponho, nem estava nomeado, o que torna o assunto ainda mais saboroso. Rui Zink não se importou e, no dia seguinte, desmentiu que tivesse publicado o seu texto (uma bela blague) e pede desculpa por “não lhe terem ocorrido insultos melhores” em relação à APE. Picante e divertido. As boas almas lusitanas ficaram impressionadas e chocadas com Zink? Pois eu acho que há muito tempo se não via uma reação tão saudável no chamado “mundo literário”, injusta, com ira, sentido de humor, ataque direto, despudor, recusando-se a ser sonso. Literatura “de bom perder”, queriam? Zink, que até gosta de Mário de Carvalho, mostrou como se vai à guerra. 

Da coluna diária do CM.

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A Língua Portuguesa em tempos de Covid.

por FJV, em 22.06.20

Ao contrário do que se pensa, uma língua é “mais forte” quando faz gala em conservar regras e formas próprias e não quando se põe a adaptar inglesismos em total desordem e arbitrariedade. Não sei bem o que fizeram à Língua Portuguesa com o Covid (segundo o primeiro-ministro) ou a Covid (segundo o Presidente da República), mas há coisas irritantes. Já não menciono a “cerca sanitária”, usada quando existia “cerco sanitário” ou mesmo “cordão sanitário”, ou o abuso da expressão “letalidade” (ou mesmo “letalidades”, como já ouvi) mas a utilização de “distanciamento social” daria que falar — para evitar a tradução direta do inglês, a Câmara de Matosinhos (é o exemplo que conheço) usou, e bem, “distância de segurança”, muito mais apropriado. No painel luminoso da bela ponte móvel de Leça da Palmeira sobre o porto de Leixões, por exemplo, usa-se a expressão mais adequada e compreensível em português: “Mantenha a distância física.” Porque é disso que se trata e não de “distância social” (entre ricos e pobres, para abreviar) ou “distância moral” (entre bons e maus). Pormenores.

Da coluna diária do CM.

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Pandemia, pós-pandemia.

por FJV, em 19.06.20

Lamento desiludir-vos, mas a ‘literatura pós-pandemia’ pode ser apenas mais aborrecida do que a ‘literatura pré-pandemia’. Durante três meses, a maior parte dos escritores e autores ‘confinados’ viveram a realidade do isolamento (estar em casa) – e, mal saíram dela, participam em ondas de literatura bondosa sobre como foi dramático estar isolado, como a sua bolha se tornou mais bolha ainda, e como sofreram com isso. Ao contrário do horror vivido durante a ‘gripe espanhola’, em que grande parte das pessoas estava ocupada a sofrer, a morrer e a cuidar dos vivos, a Covid colocou os escritores na net, conferenciando pelo Instagram ou pelo Zoom. Os desafios é observar os silenciados deste tempo: os que nunca pararam de trabalhar e não faziam ioga em direto no Facebook ou os que perderam vidas próximas. A literatura precisa – é uma maneira de dizer – de sofrimento, crueldade e maus sentimentos. Conflitos e combates. Pelo que vejo, há muitos escritores a falar de vida saudável, do seu isolamento e da falta de atenção que não merecem, coitadinhos. É mais aborrecido ainda do que antes.

Da coluna diária do CM.

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Saramago.

por FJV, em 18.06.20

José Saramago (1922-2010) morreu há dez anos, que hoje se assinalam. Levantado do Chão foi publicado há 40, Memorial do Convento – a sua obra maior – há 38, O Ano da Morte de Ricardo Reis há 36 anos; são já clássicos da nossa língua, reinventando a herança de Vieira e de Camões, que Saramago leu como mestres e nos devolveu como uma prova da originalidade da sua prosa, arrebatadora. Épica aqui e ali, melancólica, perguntadora, aproveitando o barroco da nossa gramática, as contradições do nosso dicionário. Esses três livros bastariam – se não houvesse entretanto História do Cerco de Lisboa ou Todos os Nomes – para que o seu nome ficasse inscrito no cânone da nossa literatura e no da literatura ocidental. Foi um dos nossos maiores escritores e é isso o mais importante que recordo e que acho ser nosso dever recordar – como a presença das suas personagens mais marcantes, representando gente miúda, anónima, esperançosa, irónica e triste, e que disso fizeram a sua dimensão excecional. Ainda hoje, folhear o Memorial é caminhar pelos abismos da nossa Língua; não há elogio maior.

Da coluna diária do CM.

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Ativistas contra a liberdade.

por FJV, em 17.06.20

Algures este ano, antes da pandemia, uma editora americana do grupo Hachette decidiu não publicar o livro de memórias de Woody Allen porque havia uma forte pressão “do público” e de funcionários da casa para que o livro não saísse. Portanto, a Hachette pactuou, de orelhas murchas, com um acto de censura prévia – nada que espante; a censura está na ordem do dia e é praticada com certa determinação. O livro transitou para outra editora mas pode dizer-se que o ruído da rua venceu meia batalha. Ontem ficou a saber-se que alguns funcionários da área editorial do ramo britânico da mesma Hachette se recusam a trabalhar na edição de um pequeno livro de J.K. Rowling (The Ickabok) porque discordam das opiniões críticas da escritora “sobre transexualidade”, na sequência de um simples tweet da autora da saga Harry Potter. Estamos, portanto, diante de um novo método de decisão editorial; onde antes prevaleciam os critérios da liberdade de expressão e de discussão, ganha terreno a gritaria dos “ativistas” e a imposição de agendas ideológicas que não se podem questionar. Admirável mundo novo.

Da coluna diária do CM.

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Camões.

por FJV, em 16.06.20

Fora da escola, onde é submetido à leitura por obrigação, hoje em dia ninguém liga grande coisa a Os Lusíadas, uma epopeia tão amarga como ensandecida de humor, guerreira ou melancólica, cómica ou apenas clássica (e superior à Eneida). Desde o século XIX que Camões, infelizmente, é sinónimo de patriotismo. Primeiro, pela mão dos republicanos, que procuravam uma bandeira; depois, pela do Estado Novo; depois, alternadamente, ora pela “esquerda cívica”, ora pela “direita da tradição”. De fora fica Camões como um génio a ler, reler, comentar. Pobre homem, Camões. De arauto das glórias e penumbras do Império a vate do imperialismo e do colonialismo, foi um salto – e correndo agora o risco de ser apeado de onde quer que esteja. Nestes dias de tolinhos à solta, apetece-me ler Os Lusíadas de novo. O brasileiro Rubem Fonseca, relembrava-nos esse dever: “Para quem ler? Estávamos no século XVI e muita pouca gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que Camões escrevia, não importava quantos fossem eles.” Somos nós que lhe damos vida.

Da coluna diária do CM.

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Dois pontos sobre o antirracismo dos fofinhos.

por FJV, em 15.06.20

Longe do antirracismo dos fofinhos, gostava de lembrar dois factos aparentemente distantes. Primeiro: há mais de vinte anos que imigrantes africanos vivem em condições degradantes e desumanas no Bairro da Jamaica, no Seixal; cerca de 200 famílias aguardam realojamento depois dos confrontos do ano passado, mas durante 20 anos eram “apenas imigrantes que viviam lá” (nem podiam votar), naquele lugar onde não há estátuas para abater, e que nos ensina que o pior racismo é o da iniquidade com que se permite a miséria. Segundo: no norte de Moçambique (Cabo Delgado), o horror crescente do terrorismo islâmico, ligado a milícias al-Shabaab, fez mais de mil vítimas (parte delas decapitadas), dezenas de aldeias incendiadas e cerca de 80 mil deslocados a caminho do sul. Ignorar o terrorismo em África é, claramente, menosprezar a condição das pessoas que são vítimas distantes da geoestratégia e das “questões regionais”, apenas porque ali não há estátuas para abater e os factos do horror de Cabo Delgado não entram nas estatísticas dos temas na moda. Dois factos aparentemente distantes, como disse.

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O tempo dos tolinhos.

por FJV, em 11.06.20

Os leitores desta coluna sabem que não me escandalizam as histerias dos tolinhos que, nos tempos que correm, querem corrigir a história humana a golpes de camartelo ou a decretos de censura. Derrubar estátuas (na semana passada, foi em Liverpool a de William Gladstone, um primeiro-ministro liberal anti-esclavagista mas cujo pai teve uma plantação na Jamaica, depois de, em Washington, ter sido vandalizada – com acusações de racismo – a de Lincoln, presidente abolicionista), proibir livros ou mudar a toponímia, é a regra hoje em dia. Uma geração de moralistas que se colocam acima de qualquer suspeita quer varrer a memória por decreto e por vingança; é a geração do ressentimento. Não lhes auguro nada de bom. Ontem, falei-vos dos ataques a Camões e ao Padre Vieira – foi o dia em que a HBO retirou do seu catálogo o filme E Tudo o Vento Levou, por apresentar uma visão idílica dos estados americanos do sul. Equeceram Hattie McDaniel que, com a sua interpretação nesse filme, foi a primeira mulher negra americana a obter um Oscar. Vai ser o tempo dos tolinhos e isso não me espanta.

Da coluna diária do CM.

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Camões, o totó do imperialismo.

por FJV, em 10.06.20

Há tempos apareceu um grafito nas paredes de Lisboa: “Camões, o totó do imperialismo colonial esclavagista.” De seguida, houve um protesto contra a estátua do pobre Padre António Vieira, que o inefável Mamadou Ba classificou como um “esclavagista seletivo”, e depois a obra de Fernão Mendes Pinto foi retratada como “propaganda do imperialismo”. Recentemente a campanha atingiu Fernando Pessoa, que expendeu opiniões racistas, tal como suponho que aconteceu com Eça e muitos escritores anteriores ao século XX. Os debates em redor das figuras da nossa cultura são úteis e ninguém é inquestionável. Isso é uma coisa, e não retira uma vírgula de talento ou de génio a Vieira ou Camões; outra coisa é fazer uma “limpeza” como os fascistas e os comunistas fizeram nas suas ditaduras, “higienizando” o passado de acordo com os olhos e as obsessões de hoje. George Orwell previu o cenário em 1984: tudo (livros, pinturas, estátuas, efemérides e toponímia) seria varrido e só existiria o presente, no qual estariam sempre certos os novos tiranos e o seu olho vigilante. É o que se prepara.

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Charles Dickens.

por FJV, em 09.06.20

Não se compreenderia que a época vitoriana não tivesse produzido um romancista como Charles Dickens (1812-1870). Ler Os Cadernos de Pickwick (1837), um misto de documentário, jornalismo, ficção política, é uma aventura prodigiosa: ficamos diante de um retrato como a Inglaterra quase nunca teve, se nos abstivermos de muitos escritos de Orwell. Mas é como romancista e de grande estilista que Dickens entra na galeria dos eternos, sobretudo com quatro obras cujo peso ainda hoje nos deve comover: David Copperfield (1850), autobiográfico, Tempos Difíceis (1854), Um Conto de Duas Cidades (1859) e Grandes Esperanças (1861), para não mencionar outros títulos tão populares como ‘Oliver Twist’ (1837) ou a vasta quantidade de contos (incluindo o Conto de Natal, de 1843). A biografia de Dickens entra em todos os livros, mas sobretudo o seu propósito de curiosidade e o sentido de justiça, que teve influência direta na forma como a Inglaterra olhou para si mesma e para “as classes desfavorecidas”. Passam hoje 150 anos sobre a morte de Dickens – como se nunca tivesse parado de escrever.

Da coluna diária do CM.

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O interesse do Estado.

por FJV, em 08.06.20

O secretário-geral adjunto do PS, José Luís Carneiro, deu uma entrevista supimpa (ao DN) da qual não se recorda nada a não ser o essencial: que “a função estratégica da TAP é uma função estratégica nacional pelo que não se deve ter uma expectativa ou uma perspetiva lucrativa da exploração do negócio da TAP”. Uma cousa destas – tão generosa – deve aplaudir-se, caramba. Vamos traduzir: quando o governo “investir” uma boa soma de milhões de euros na companhia aérea, não é para tirar daí algum lucro mas para que os portugueses sejam levados ao sétimo céu. Que princípio maravilhoso está subjacente a este, digamos assim, pensamento? O seguinte: “A TAP é uma companhia de bandeira e está ao serviço do interesse estratégico do Estado.” Portanto, eventuais investidores privados que queiram verter dinheiro seu na companhia “têm de alinhar as suas opções estratégicas com as opções estratégicas do Estado português”. Abençoado Estado que conta com filósofos tão babados & generosos nos seus cueiros e tão bem os alimenta – sobretudo quando não é o seu dinheiro que está em causa, evidentemente. 

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O “desconfinamento da cultura”.

por FJV, em 05.06.20

Terminou a procissão de “salvadores da Livraria Barata” sem que tivesse havido resultados, o que não admira: não se salva uma livraria endividada deixando todas as outras de fora. A breve prazo, com a dócil e ingénua reação da APEL à falta de medidas de apoio ao setor do livro, a crise pode durar anos terríveis, porque se irá acrescentar aos números trágicos e vergonhosos dos hábitos de leitura em Portugal. O “desconfinamento da cultura” não se reduz ao espetáculo musical do Campo Pequeno, que contentou distraídos, mas tem também a ver com centenas de livrarias, pequenas e grandes, todas ignoradas, e com dezenas de editoras impossibilitadas de trabalhar – porque nem as livrarias facturam, nem os distribuidores distribuem, nem os autores vendem, nem os leitores são chamados às montras. Com os centros comerciais encerrados, a crise agrava-se ainda mais. Esta Santa Aliança contra o livro funciona com a cumplicidade e o desinteresse das autoridades. Ainda se fossem chefs, teriam alguma sorte; mas editores e livreiros estiveram sempre sozinhos e fartam-se de confiar, tolos e ingénuos. 

Da coluna diária do CM.

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Dualidade de critérios.

por FJV, em 04.06.20

Parece ser cada vez mais difícil entrar no reino dos céus – mas, em contrapartida, o reino da hipocrisia está de portas escancaradas. A CGTP pôde organizar a sua concentração do 1.º de Maio e efetuar transportes de um concelho para outro no fim de semana em que estavam proibidas as deslocações entre concelhos e Portugal estava no pico da pandemia; o governo disse que tudo tinha sido magnífico. Doze dias depois, apesar de a Igreja ter vedado a entrada de peregrinos em Fátima, as autoridades civis pediram um cerco e as policiais montaram uma vigilância arbitrária. O senhor Presidente da República anunciou entretanto as comemorações do 10 de Junho apenas com 8 presenças (depois das comemorações do 25 de Abril num parlamento com 200); disse-o, claro, quando se preparava para entrar num espetáculo com 2 mil pessoas reunidas no Campo Pequeno. Há mais exemplos cómicos da dualidade de critérios e do viés ideológico que comanda o cerco às nossas vidas. Todos eles nos dizem que, como se previa, as autoridades estão a tomar o gosto à arbitrariedade. E sem fingir atrás da máscara.

Da coluna diária do CM.

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Obedecer ao medo

por FJV, em 03.06.20

Outro dia, na TV, assisti a um espetáculo tenebroso: surfistas de ar blasé peroravam sobre leis, a bondade do governo e a necessidade de obedecer à DGS. Tremi. Os novos moralistas do nosso tempo – hipocondríacos, novos-ricos palavrosos, economistas com gosto pela punição, universitários que desprezam a ralé, entre outros – advertem-nos com severidade: temos de mudar. Nós; não eles; nada os distingue de um imã barbudo ou um padre com chiliques a tratarem o tema que levou Voltaire a escrever sobre o terramoto de 1755: as catástrofes são uma forma de Deus nos castigar pelo nosso mau comportamento. No CM, J. Rentes de Carvalho disse o essencial sobre o medo inoculado por toda a parte: as decisões sobre a nossa liberdade estão nas mãos dos propagandistas dos governos (veja-se, por castigo, a inútil dose diária de propaganda da DGS), de aprendizes de ditadores e de gente que acha que o mundo está mal feito e é preciso castigar o nosso lado humano. Até o nosso PR, tradicionalmente liberal, se transformou num ardiloso articulador dessa perda do humano, recomendando obedecer ao medo. 

Da coluna diária do CM.

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A «violência criativa».

por FJV, em 02.06.20

Donald Trump está feliz com os distúrbios que percorrem a América porque estes lhe possibilitam identificar um adversário feroz e visível, alarmante, impopular – e regressar à campanha eleitoral, alimentando esperanças de a ganhar. É dos livros. E é um combustível, tanto para Trump como para a violência policial e para os que desejam que não se volte a falar do racismo das forças policiais. Os tontinhos portugueses, no entanto, levantam as castanholas, excitados, e – de bandós e biquinho – apoiam nas “redes sociais” a prestação dos ANTIFA, uma espécie de brigada vagamente “antifascista”, vocacionada para partir tudo à sua passagem, em protesto contra “o sistema”. Também pintaram as paredes e, em direto, fizeram teoria da história sobre o assunto – mas a sua vontade é incendiar contentores, partir montras e fumar uma ganza que relaxe as hormonas depois de terem mostrado o seu “antifascismo” visceral. Mas sem que a polícia lhes toque, evidentemente – porque “o sistema” são eles, e sabem que há sempre alguém a limpar as ruas depois de a “violência criativa” lhes ter passado. 

Da coluna diária do CM.

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