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Fio-me pouco no patriotismo, como o leitor sabe – acho, inclusive, que o “patriotismo” é um argumento ligeiramente canalha, uma espécie de último reduto para argumentos que já não convencem ninguém. Veja-se a TAP. Eu gosto da TAP, uso-a frequentemente quando me convém o preço dos seus bilhetes ou quando o destino vem a calhar. Mas esta conversa da “companhia de bandeira” não convence; e a nacionalização da TAP, que vai ser discutida, é folclore – porque os anteriores e avultados prejuízos terão de ser pagos por alguém (nomeadamente, por milhões de portugueses que não utilizam a TAP) e não creio que uma companhia aérea funcione melhor e mais eficazmente quando tem o selo do governo da República. Claro que há um instrumento importante que o Estado tem na mão: chama-se “caderno de encargos”: a TAP tem de fazer isto, isto e aquilo – e de manter estes e aqueles princípios. Isto evita que os contribuintes paguem prejuízos para os quais não contribuem e que ninguém lhes aconselha. Ou acham que uma TAP nacionalizada voaria de aeródromo em aeródromo, baratinha, ao gosto de toda a gente?
Da coluna diária do CM.
A deputada Constança Urbano de Sousa, com ingenuidade e ignorância (duas coisas que andam sempre a par), representa o papel da anti-semita de serviço, tal como Salazar e o Ministério dos Estrangeiros da época (a II Guerra) duvidavam sempre da existência de tantos judeus portugueses. Pode não ser – mas cumpre o papel. Assim, ela pretende modificar a lei, aprovada por unanimidade no parlamento, que visava restituir a nacionalidade aos judeus sefarditas expulsos de Portugal e às suas famílias. Foi assim que morreram milhares de judeus com nomes portugueses na Holanda, na Hungria, na Grécia, na Turquia, impedidos de receber um visto português que os pusesse a salvo do nazismo. A deputada acha que há sefarditas a mais a requerer a nacionalidade – que é por manha. Nos anos 30, em Portugal, havia comunidades numerosas no Porto, em Lisboa, Bragança, etc. No século XVI, havia muitos mais – foram expulsos, mortos e perseguidos. Há cerca de 62 mil candidatos à nacionalidade. Não confere com o número dos expulsos pela Inquisição ou abandonados por Salazar em 1939, que foram mais. É uma vergonha.
Da coluna diária do CM.
Stanley Ho (1921-2020) é uma extraordinária personagem para Hollywood. Sempre oscilando entre os dois lados do fio da navalha, transformou Macau (desde 1961) na capital do jogo, de que teve o monopólio durante duas décadas – imaginem os filmes que não se fariam. De Hong Kong a Macau, de Macau para várias capitais onde se vive no meio do risco, de ameaças e de jogadas quase perfeitas, a vida de Stanley Ho está cheia de segredos e penumbras – mas também de uma aura que tanto desce ao submundo como se eleva à capacidade de sonhar. Nunca joguei em nenhum casino mas tenho um grande fascínio pelo velho Casino Lisboa, de Macau – pelas suas madeiras, salões, tectos, portas e escadarias. Entrei lá pela primeira vez para almoçar com um grande amigo, depois de atravessar as Portas do Cerco, vindo da China: foi como entrar num filme dos anos 50 em que Stanley Ho seria uma sombra permanente, um Citizen Kane rodeado de negócios, mulheres, acordos políticos delirantes e inesperados – e um estranho desprezo pelas luzes da ribalta. E um amor supersticioso e permanente a Lisboa e a Portugal.
Da coluna diária do CM.
Joan Crawford está ao piano mas ouve-se a voz de Peggy Lee – é o filme Johnny Guitar, de Nicholas Ray e, se me perguntassem que canções da história do cinema eu mais recordo, certamente que ‘Johnny Guitar’ estaria entre as cinco primeiras na voz de Peggy Lee. Há muitas outras canções de Peggy Lee que entram em várias listas e hoje – quando passam 100 anos sobre o seu nascimento (na paisagem mais ou menos desolada do Dakota, mas de pai sueco e mãe norueguesa): ‘Fever’ é, naturalmente, uma delas, tal como ‘For Every Man there’s a Wooman’ (de Benny Goodman, com cuja banda trabalhou), ‘Golden Earrings’, ‘It’s All Over Now’ ou ‘You Don’t Know’, que às vezes oiço em modo de repetição (tal como ‘Johnny Guitar’ ou ‘I’m a Wooman’). Não se limitou a cantar – essas canções, escreveu-as mesmo. Casou quatro vezes e divorciou-se outras tantas – morreu aos 81 anos (em 2002), nunca desistiu de perder a sua imensa graça (chegou a atuar em cadeira de rodas) nem uma sensualidade raríssima que ecoava pela sua voz, bem humorada apesar dos dramas que viveu e dissimulou. Uma deusa com 100 anos.
Da coluna diária do CM.
Aos 81 anos, a vida e a morte levaram Maria Velho da Costa (1938-2020), a autora de Missa in Albis, Myra ou Casas Pardas – os seus romances fazem parte do que seria uma memória literária dos anos 70, que hoje não se podem reconstituir sem essa memória (sobretudo de Missa in Albis, de 1988). Se com Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta foi uma das autoras desse livro-documento fundamental para a história do nosso feminismo, Novas Cartas Portuguesas (1972), a sua aventura modernizadora da literatura portuguesa começara antes, em 1969, com Maina Mendes, e praticamente nunca terminara. Maria Velho da Costa era uma voz da elite das letras; escrevia maravilhosamente, um pecado que a banalidade não lhe desculpará, tal como há de marcá-la como uma das escritoras impopulares e pouco “acessível”. Nos seus livros, a história, o jornalismo ou o cinema misturam-se com a sua própria origem social e os sentimentos que lhe despertam um país pobre, mesquinho, cheio de ordem; nesse mundo perdura a vaga sensação do seu riso e da sua ironia imperdíveis.
Da coluna diária do CM.
A Livraria Lello foi vista, durante muito tempo, como inspiradora da escritora J.K. Rowling para a criação do colégio de Hogwarts na série Harry Potter. Confesso que a ideia me comoveu. Gosto bastante de J.K. Rowling, que viveu no Porto durante algum tempo, e ter-se inspirado na vetusta Lello foi uma boa notícia que agora se verificou (por uma publicação da própria JK no Twitter) não ser verdade. A criadora de Harry Potter garante que nem sequer conhecia a livraria. Isto sim, é uma pena, e uma falta lamentável de JK, porque – muito antes de se ter transformado num pólo turístico, com filas de fãs de Potter que pagam bilhete e compram recordações – a Lello já então merecia uma visita. Instalada no edifício onde antes funcionava o editor Chardron (que publicava Camilo e Eça), mantém a magia e continua na lista das mais bonitas do mundo, apesar de o mito Harry Potter, difundido com alegria e permitido com orgulho, ter acabado assim. A Ateneo, de Buenos Aires, a Shakespeare & C, de Paris, a Bookworm, de Pequim, ou a City Lights, de São Francisco, estão na lista e vendem livros.
Da coluna diária do CM.
Uma das vantagens do “desconfinamento”, e da abertura das praias e esplanadas, é o fim das reportagens melodramáticas na televisão sobre como a tragédia não tinha fim nem, aparentemente, saída. O tom sentimental, próprio para ler poetas soturnos com problemas nas sílabas átonas, era de ir às lágrimas – e qualquer reportagem, longe de nos apresentar factos com objetividade e clareza, tinha interlúdios de moralidade e declarações quase amorosas ao vírus invisível. Jornalistas criados no mundo do ‘lifestyle’ peroraram interminavelmente sobre o “dever de ficar em casa” e de lavar as mãos, sobre o ioga na varanda ou as receitas de pão caseiro – e tinham arrebatamentos poéticos depois dos quais não sabíamos se se tratava de uma notícia ou de um despacho em verso sobre dois amantes apaixonados. Não era apenas a nossa vida “interrompida”; a própria informação televisiva esteve, na maior parte dos canais de tv, sitiada pela banalidade das jigajogas de “linguagem poética”, esquecendo os telespetadores que desesperavam com tanto soneto, porque tinham uma vida à espera. Esta.
Da coluna diária do CM.
A vice-presidente do governo espanhol é uma das minhas personagens preferidas. Tem alguma coisa que mistura vários portugueses que me divertem de longe mas, na hora certa, ultrapassa as previsões. A andaluza Carmen Calvo, creio que com uma fé inabalável na teoria da terra plana, explicou ontem, no Senado, a razão porque Espanha foi especialmente atingida pela Covid19: porque há uma linha recta (vossas excelências, leitores, hão-de ter reparado nela, certamente) entre Pequim, Teerão, Madrid e Nova Iorque, e o vírus vem a direito, como “um problemão do demónio”, sem desdobramento nem escalas, um maratonista apressado. Há uns tempos, outra ministra espanhola, com a pasta da Transição Ecológica e Desafio Demográfico, Teresa Ribera, também tinha assegurado que a reação portuguesa ao vírus foi melhor do que a espanhola porque Portugal fica mais a Oeste e os ventos de Pequim chegam aqui mais tarde. Que isto suceda num governo chefiado por aquele primeiro-ministro parecido com um modelo Cortefiel, não me surpreende. Mas, caramba, a Espanha teve outrora figuras de grande inteligência.
Da coluna diária do CM.
Na China é possível, há muito, chegar a um restaurante, escolher o menu num tablet e pagar de imediato – tudo sem “proximidade social”; a coisa é vista como uma “novidade” luminosa entre nós, europeus. Porém, a grande guerra do futuro não se joga nos restaurantes nem nos serviços, onde a China está mais avançada (foi lá que nasceram as bicicletas partilhadas, os pagamentos digitais, etc.) e sim no armazenamento de dados de milhões e milhões de consumidores, onde também vai à frente, tal como no reconhecimento facial. Na Suécia, agora, começou um programa de implante de microchips. Já há milhares de suecos que o usam, identificando-os no emprego, no transporte, no ginásio e em compras com cartão de crédito. Basta uma injeção indolor no pulso e os dados pessoais ficam registados em regime permanente e disponíveis para controle. Uma das razões para o sucesso destes microchips é que, diz um laboratório, “os suecos são um povo pequeno e confiam nas sua autoridades”. Resta-nos confiar nos suecos ou continuar a desconfiar dos chineses? Ou acreditar que o tempo da privacidade terminou?
Da coluna diária do CM.
Ontem, domingo, ouvi o som do amolador de facas no meu bairro. Senti-me de regresso. Hoje reabrem mais lojas, esplanadas, muitos restaurantes – há um certo caminho para o regresso à normalidade. Precisamos dela. No sábado passado fui à praia e percebi que já não estava habituado a apanhar sol, nem ao ruído do mar, ou à companhia (distanciada, mesmo assim) de outras pessoas que, como eu, tinham saudades do sol ou, pelo menos, de se sentarem no areal e de assistirem ao espectáculo do ar livre, mesmo que fosse só por cinco minutos antes de reiniciar a caminhada. É certo que faltavam as esplanadas, sim. Faltavam disponibilidade e confiança, mas ao longo da nossa vida aprendemos permanentemente a lidar com as ausências e a driblar as limitações. Hoje recomeçamos parte da vida, ainda que medindo bem as distâncias, poupando bastante nos gestos, mostrando sensatez, ludibriando o medo. A “economia” precisa disto – de vencer o medo – e de pessoas sensatas que já não aguentam mais telejornais integralmente preenchidos com reportagens melodramáticas. Precisamos do som do amolador de facas.
Da coluna diária do CM.
Ia escrever “não sei o que mais prezo nele”: a irreverência, o bom humor sem bonomia, a ironia, a sabedoria, a amizade que lhe tenho, certas palavras que usa, a inteligência, a dedicação aos que ama, a obra notável, o amor e a irritação que lhe causamos, o conhecimento que tem de nós. Ia escrever isso – mas a verdade é que sei, exatamente, o que mais prezo em J. Rentes de Carvalho, de quem hoje festejamos o aniversário. São 90 anos de vida que não cabem numa autobiografia – e muitos mais, perdoe-se-me o absurdo, de uma obra que, felizmente, está publicada. Seria uma pena perdermos Ernestina, La Coca, Com os Holandeses, O Meças, A Amante Holandesa, O Rebate, Montedor, a graciosidade de Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia, as memórias de Mazagran, Tempo Contado ou Pó, Cinza e Recordações – e a leitura do nosso tempo em Portugal, a Flor e a Foice, ou A Ira de Deus sobre a Europa. José Rentes de Carvalho leu-nos melhor do que algum dia podemos reconhecer. Da Holanda ou de Trás-os-Montes ele olha-nos com o mesmo binóculo com que observou a criação do mundo.
Da coluna diária do CM.
Duas coisas que toda a gente sabe que não existem na política: justiça ou gratidão. Existem líderes, liderança, influência e interesses, manobradores, vaidade, fortuna diante das armadilhas, oportunidade diante das catástrofes. O resto (como a esperteza mais velhaca e a aldrabice transformadas em virtude) são minudências e duram pouco. Veja-se Mário Centeno: tocado pelo pecado da vaidade (deixou popularizar a história falsa e ridícula do “CR7 das Finanças” e, quando cercado, foi sempre buscar desculpas ao passado), ontem ninguém o poupou enquanto se assistia à sua vergonhosa execução em público – pelo contrário, os que o esfaquearam foram transformados em heróis. O problema é que só se empunha o punhal uma vez. Injusto? Talvez, sobretudo para quem “já fez o serviço”. Ingratidão? De certeza. Mas é uma lei cruel que seria aplicada mais tarde ou mais cedo, sem piedade e com a frieza dos políticos de carreira. É claro que todos sabemos quem mentiu nesta pequena história – mas isso não interessa quando se diz o nome dos vencedores. Quanto à gratidão, nem vale a pena explicar.
Da coluna diária do CM.
Bruce Chatwin (1940-1989) morreu novo, aos 48 anos – e deixou uma obra cujo centro é Na Patagónia, um livro que, de certa maneira, reinventou a literatura de viagens. Tudo começa com um «um pedaço de brontossauro» (a avó guardava a relíquia em casa) que teria vivido na Patagónia argentina, aliás na Terra do Fogo, a sul do estreito de Magalhães. Foi para lá que Bruce Chatwin, jornalista e especialista em história de arte numa leiloeira londrina, partiu quando tudo o cansava na sua vida. Tornou-se escritor. Estávamos em 1977, e em dez anos escreveu ainda um livro tão formidável como Canto Nómada (sobre os aborígenes) , ou a curiosidade O Vice-Rei de Ajudá, entre outros. Na Patagónia foi o livro que me levou à Terra do Fogo, onde acaba a terra e começam os mares da Antártida, a sul do canal por onde Charles Darwin entrou em 1833 a bordo do navio Beagle. No seu livro, Chatwin reencontra o rasto a foragidos e a uma estranha comunidade de homens que se perderam entre os glaciares e os pântanos – é de uma beleza comovente. Hoje, se fosse vivo, completaria 80 anos. Resta-nos lê-lo.
Da coluna diária do CM.
Quando figuras da Igreja Católica já declararam “não acreditar em Fátima”, os sociólogos e psicólogos tentam explicar a vertigem espiritual dos peregrinos – em vão. O mundo atual diz-se “agnóstico” ou “ateu” e os mistérios da fé são frequentemente vistos como fenómenos fora da corrente, mas Fátima sempre me impressionou. Não tanto pela multidão, que se compreende, ou pela história das aparições, que me não interessa, mas pelo silêncio na grande noite da peregrinação. Nunca a experimentei, mas ouvi relatos. Amanhã, no santuário deserto, esse silêncio será um eco que não deixará de comover os ausentes – e quanto maior for essa ausência, mais forte será o eco de uma peregrinação que não se faz e que fica guardada para mais tarde, como um recolhimento prometido. Estranhamente, a ausência de amanhã é um sinal forte de obediência, outra palavra em descrédito. Nunca a Praça de S. Pedro esteve tão cheia como na noite em que o papa celebrou a Páscoa em completa solidão. Talvez isso ocorra em Fátima, como uma contracorrente, como uma presença discreta no meio do ruído e da incerteza.
Da coluna diária do CM.
Fala-se em “linhas vermelhas” – devia, antes, falar-se de um “abismo negro”, devorador. O mal não é apenas uma categoria filosófica ou religiosa mas um vírus que anda à solta depois de se ter alojado em silêncio. Comhecemo-lo. E é nele que penso quando reconstituo o egoísmo cruel que leva à violência, a violência que leva ao homicídio, o abandono das crianças (e a indiferença com que acolhemos os sinais de perigo), a inaptidão para lidar com a vida, a estupidez que leva ao horror. O crime de Atouguia da Baleia relembra tudo isso mas, sobretudo, a improbabilidade de imaginarmos um crime assim: um pai que mata uma criança (numa casa onde existem outras duas crianças), a testemunha de uma madrasta cúmplice, um corpo ocultado e abandonado. Quando escrevo “nenhum de nós é capaz desse horror” quero dizer que o abismo negro escapa a qualquer explicação – a não ser pela abundância do mal, a ponto de se transformar numa força demasiado poderosa. Diante disto, o castigo só pode ser uma pena inimaginável, porque se o mal não tem castigo então não vale a pena existirmos com os outros.
Da coluna diária do CM.
O francês Ernest Pinard foi ministro do Interior, procurador e membro do Conselho de Estado – e distinguiu-se, sobretudo, por ter sido responsável pelos processos de “imoralidade” contra Baudelaire (por causa dos poemas de Flores do Mal), Eugénie Sue (Os Mistérios do Povo) e Gustave Flaubert (Madame Bovary). Não conseguiu nada contra Flaubert (1821-1880), que foi absolvido e agradeceu a publicidade a Madame Bovary e à sua preciosa história de adultério, decadência e pequena miséria provinciana. Pinard podia ser personagem de Flaubert, e deve ter sido, mas ficou como uma anedota censória, como os inteletuais de esquerda franceses que, na década de 80, assinaram uma petição para retirar Flaubert das bibliotecas, sob a acusação de sexismo, pensamento antidemocrático, misantropia, reaccionarismo e pessimismo. O autor de Educação Sentimental, Salambô ou Bouvard e Pécuchet é ainda o génio do mal e da minúcia, impossível de domesticar, sempre em busca do absurdo e da beleza, que andam de mãos dadas. Passam hoje 140 anos sobre a sua morte e é sempre bom festejá-lo.
Da coluna diária do CM.
O mal dos “estados de emergência” e dos “estados de calamidade” é que provocam hábitos estranhos. O principal deles é poder-se governar com plenos poderes e ultrapassando a lei geral com à vontade. Ninguém de bom senso foi contra o decreto do “estado de emergência” – porém, pequenos tiranetes ou exemplos de absurdo político emergem aqui e ali. O responsável pela Proteção Civil de Santarém pediu a proibição de deslocações no próximo fim de semana, à semelhança da Páscoa e do 1.º de Maio. Porquê? Para não ter peregrinos em Fátima (apesar de a igreja católica ter explicado as regras). Recordemos que, no 1,º de Maio, as violações à lei foram cometidas com a cumplicidade e apoio das autoridades e do governo. E não falemos do uso de máscaras no parlamento. Decretar regras durante um “estado de emergência” é normal e não é tirania – mas já o é quando as proibições atingem uns e não outros, quando as determinações são imprecisas e distantes da realidade, ou quando o bom senso é esquecido e ficamos sem juiz que possa proteger-nos das arbitrariedades. Costumava ser o Presidente da República.
Da coluna diária do CM.
Coisas cómicas: o eurodeputado Nuno Melo iniciou uma campanha contra a utilização de imagens de Rui Tavares (ex-eurodeputado, fundador do Livre, autor e historiador) nas aulas da telescola. Nas “redes sociais” parecia que Rui Tavares tinha tomado de assalto as crianças portuguesas para as inocular com o perigoso vírus do bolchevismo, coisa que me preocuparia. Fui ver: era uma explicação, enquadrada, sobre a Exposição do Mundo Português de 1940, uma ação de propaganda do regime de Salazar. E ponderada, sensata, informada – ao contrário de muito “discurso historiográfico” à esquerda e à direita, muito propagandístico e cheio de adjetivos. Acontece que, como a chamada “direita velha” se tem recusado a estudar e a informar-se, ou – muitas vezes – a adquirir rudimentos de gramática, acaba por reagir como um pateta acossado por uma crise de hipertensão. Eu percebo o problema: é a inoculação. Mas isso resolve-se com trabalho e estudo – e deixando de desvalorizar a cultura e o conhecimento histórico. E eis como a “direita velha” acaba a reconhecer que não comparece às aulas. Estudassem.
Da coluna diária do CM.
O Presidente da República, ingénuo, tinha imaginado uma celebração mais “simbólica” do 1.º de Maio pela CGTP – e não a ocupação da Alameda, como se a central sindical tivesse, à maneira bolchevique, ocupado o Palácio de Inverno em 1917 e fuzilado os czares. Como lhe respondeu ontem o Sec. de Estado da Saúde, numa proclamação filosófica, “a realidade é dinâmica” e “de cada vez que pestanejamos, a realidade muda” (toma, Marcelo!). No mundo dos flibusteiros do futebol, isso já se sabia – “o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira”, dizia um dos filósofos desta área da realidade. Veja-se o senhor presidente da AR, que interpretou com juízo este princípio e ontem, por escrito, impôs o “uso de máscara” no Parlamento, ao arrepio do que defendera dias antes (“não vamos mascarados”) e certamente contra a opinião da senhora Diretora-Geral da Saúde, que foi sempre contra o uso de máscara. Neste jogo de cómicos, muito parecido com o PREC – e sem peregrinos mas com celebrantes –, a igreja católica deu uma inesperada lição de sensatez e dignidade a propósito das suas celebrações em Fátima.
Da coluna diária do CM.
São contas pequenas mas, para sermos honestos, há explicações para o reinício do futebol em Portugal. O negócio, em si, está abaixo do 1% do PIB (na Europa circula pelos 2,5%) mas, mesmo assim, o papel da bola é decisivo para que se deixe de falar em Covid19, na economia e nas manigâncias numerológicas – só isso explica que, para auxiliar uma indústria tão poderosa e tão de pés de barro, para não mencionar as suspeitas de práticas criminais, o governo tenha decidido que um desporto de multidões se passe a praticar em silêncio a fim de desbloquear receitas de transmissões televisivas. Com as transmissões, regressam a publicidade e a animação televisiva; também se compreende e é meritório. Portanto, trata-se de puro negócio e pura psicologia de massas, e ninguém é ingénuo ao ponto de pensar que a política esteve alguma vez confinada durante estes dois meses. A manipulação dos números de infetados e vítimas mortais, por exemplo, mesmo se feita com elegância, é uma regra nestas circunstâncias. Não se escandalizem. Curiosamente, os números costumam obedecer-lhes, às circunstâncias. Depende.
Da coluna diária do CM.
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