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Voltar à vida – com temperaturas elevadas, como as que se preveem para domingo, é bem provável que o fim do estado de emergência seja uma espécie de armistício antes do tempo. Mas, sobre isso (e, sabe Deus, sobre muitas outras coisas), deixei de fazer previsões. De resto, a temporada forneceu-nos uma enormíssima vaga de especialistas instantâneos em epidemiologia, leitores de estudos científicos complexos e de circulação restrita, e desconhecidos académicos que discutem se o “modelo sueco” é ou não mais eficaz do que o sistema de ataque checo. A todos desejo boa saúde e proteção especial. A mim, incomodam-me as praias. Incomodam-me a economia, o emprego, o sofrimento dos ignorados, sim. Mas incomodam-me as praias. E, daqui, humildemente peço à senhora Diretora-Geral da Saúde que, pelas alminhas, não mas interdite nem se ponha com rigores. Ela, que já considerou que não devíamos usar máscaras, é capaz de me salvar nesta angústia com uma desculpa mais verosímil: a água do mar e o sol são capazes de matar o vírus, por exemplo. Todos somos humanos, desculpem. Precisamos tanto.
Da coluna diária do CM.
Estamos de acordo em que Alfred Hitchcock (1899-1980) não inventou o cinema; mas, se viesse a propósito, podia tê-lo feito. E se enumerarmos filmes como Vertigo. A Mulher que Viveu Duas Vezes, Janela Indiscreta, O Desconhecido do Norte Expresso, Spellbound. A Casa Encantada, A Corda, Os Pássaros, Psico, O Homem que Sabia Demais, Chamada para a Morte, Rebecca, Marnie – estaremos conversados. Não apenas a história do cinema, mas a história da nossa imaginação passa pela obra deste britânico tão amável quanto atormentado ou divertido, sempre surpreendente e obstinado na busca da perfeição e dos pormenores. Tanto o gosto pela surpresa (ou pelo suspense) como o seu sentido de perversidade (ao abordar permanentemente temas como a suspeita, a duplicidade, a falsa inocência, a culpa, a perseguição ou a dissimulação) estão presentes em cerca de sessenta filmes que nos explicam o significado da expressão “até ao último minuto”. Genial e indiferente, cultíssimo, sempre à espreita dos nossos medos – passam hoje 40 anos sobre a morte de Alfred Hitchcock, o mais influente dos cineastas.
Da coluna diária do CM.
No meio da quarentena, passaram ontem seis anos sobre a morte de Vasco Graça Moura (1942-2014). Relembro-o com saudade, não só por ser um dos nossos maiores poetas, mas também por ter sido um homem espirituoso e cultíssimo, romancista cheio de ironia, leitor e tradutor exigente, crítico de todos nós – e, no entanto, tantas vezes mal amado porque Portugal continua a queimar opiniões com certa leviandade e, em nome dessa leviandade, a triturar quem não pensa “como quase toda a gente”, na política, na literatura, na vida de todos os dias. Tomando os dois volumes da sua Poesia Reunida depressa se compreende como constituem um guião contra o pobre e fácil sentimentalismo da maior parte da poesia portuguesa – e como Vasco, mestre da nossa língua, vinha de outras tradições, de outra cultura e de uma mais forte exigência que sempre marcou a sua obra e o seu espírito crítico. Tive a sorte de conhecê-lo, de trabalharmos juntos aqui e ali, e de ter sido seu editor; infelizmente, o tempo é curto e morre-se facilmente. Seis anos depois, Vasco Graça Moura continua a fazer-nos ainda mais falta.
Da coluna diária do CM.
De Uma Carta no Inverno. 1997.
Fotografia de Alfredo Cunha.
Dentro de dois anos o regime saído do 25 de Abril terá a idade daquele que o antecedeu – e haverá ainda gente a descobrir-lhe inimigos. Não é possível celebrar cinquenta anos de regime como se ele estivesse em perigo iminente, como nos anos de 75 e 76, ou antes de os militares (a quem se agradeceu devidamente) regressarem aos quartéis e “entrarmos na Europa”, o que consagrou uma nova fase da nossa História. Celebrar o 25 de Abril com o mesmo tipo de cerimonial dos anos 70 e 80, com os mesmos discursos, cantilenas e pavores – é uma alegria que se concede à meia dúzia de saudosistas cuja existência é pouco menos do que uma curiosidade folclórica. Sinceramente, lendo-os um dia depois, os discursos do 25 de Abril não comovem ninguém para lá dos seus exercícios de boa retórica (o do PR especialmente) – foram o que foram, mas não dizem nada de novo para lá da “urgência” e da “necessidade” de “celebrar Abril”, como se o dia fosse, não uma festa, mas uma espécie de fatalidade zangada com o nosso destino. Isto transformará qualquer celebração, não num ritual, mas numa comédia dispensável.
Da coluna diária do CM.
A japonesa Marie Kondo é a fada do lar. Os livros de Marie Kondo (Arrume a Sua Casa, Arrume a Sua Vida, por exemplo) ensinam como arrumar e simplificar a casa, mas ela não tem livros – e ontem foi Dia Mundial do Livro. Tenho-os arrumados pela casa fora e também amontoados, em pilhas, além de espalhados por outras casas. É impossível ter livros arrumados a não ser que se seja completamente maníaco; mal adormecemos, eles mudam de lugar, por birra; dialogam uns com os outros e o pior é que pode acontecer é dispô-los por assuntos, porque facilmente se passa de um tema a outro, de um medo a outro, de uma forte alegria a uma brava depressão. Tem sido assim ao longo de toda a minha vida: arrasto livros de um lado para o outro; guardei neles bilhetes de cinema ou de comboio, notas de 100 escudos e talões de estacionamento em lugares que já não existem. Há livros que nunca li e que me acompanham há 30 anos – e não me desfaço deles; a minha vida ia ficar incompleta. Depois do Dia do Livro podiam criar o Dia da Arrumação do Livro, e eu faria o discurso de encerramento.
Da coluna diária do CM.
A maneira singular como o presidente da Assembleia da República dirige os trabalhos do parlamento alterou, digamos, a fisionomia do cargo. Frequentemente, aparece nos ecrãs das televisões a dar puxões de orelhas acerca de democracia, etiqueta e história – em que o tom e a própria gramática deixam muito a desejar. Vamos e venhamos, não temos de simpatizar com o presidente do Parlamento, mas trata-se da segunda figura do Estado e temos de ajudá-lo a interpretar com honorabilidade o seu papel. Não lhe pedimos que tenha humor e verve (como Almeida Santos e Mota Amaral), brilho inteletual e sentido de Estado (como Jaime Gama) ou simpatia natural, mas podemos pedir que tenha sobre o 25 de Abril uma visão empática e nacional; 46 anos depois, não é apenas uma data fundadora do regime democrático (o que seria já suficiente) mas constitui, também, uma referência central na nossa História. Permitir que se inventem perigosos fascistas que não querem festejar o 25 de Abril é um erro básico, transformando a data numa imposição folclórica em tempo de coronavírus. Não merecíamos.
Da coluna diária do CM.
Depois de expulso da Rússia czarista, conheceu o exílio em Munique, Londres ou Genebra, de onde regressou num comboio selado até à Estação Finlândia, na então Petrogrado (nome czarista que mudou para Leninegrado em 1924 e, após o colapso da URSS, recuperou o inicial de São Petersburgo). Na verdade, a revolução russa de 1917 não teria existido sem Lenine. Manobrador paciente e corajoso, sacrificando quase tudo aos “interesses da revolução” pela qual deu a vida e pela qual obrigou milhões de russos a dar as suas, foi o teórico central do comunismo como o conhecemos até aos anos 80. Molotov, que conheceu bem os dois ditadores, disse um dia que Lenine era bem mais cruel e implacável do que Estaline, que lhe herdou o trono depois de afastar Trotsky. Indiferente ao sofrimento, ao sono e aos apelos de humanidade, egocêntrico, tudo nele se confundia com a revolução, o novo regime, o terror vermelho, os ódios pessoais e políticos, tão mortais como mortíferos, a sua crueldade pública, as ordens de fuzilamento e a paixão pela violência. Vladimir Ilitch Ulianov (1870-1924) nasceu há 150 anos.
Da coluna diária do CM.
Diz-se que Marcelo Mastroiani foi o seu primeiro namorado e, contra isso, não há nada a fazer – seria um casal perfeito. Mas não foi assim. Silvana Mangano, que hoje completaria 90 anos (1930-1989) é uma dessas presenças raras do cinema do pós-guerra – um símbolo que modelaria o nosso ideal de beleza. Com o filme de estreia, Arroz Amargo (1949), ao lado de Vittorio Gassman, conheceu o produtor Dino de Laurentiis, com quem viria a casar. Agora, é enumerar alguns dos filmes que fizeram a nossa memória: Anna, onde interpreta a figura de uma freira (e dança); Ouro de Nápoles, do fantástico De Sica (com Sophia Loren ou Totò); Ulisses, contracenando com Anthony Queen e Kirk Douglas e onde faz o papel de Penélope; e aqueles filmes de Visconti, Violência e Paixão, com Burt Lancaster, Ludwig ou Morte em Veneza; os de Pasolini, Decameron ou Édipo Rei (é Jocasta) ou Teorema – e aquela aparição de melancolia em Olhos Negros, de Nikita Mikhalkov, finalmente ao lado de Mastroianni. A beleza de Mangano nunca nos cansou ou desiludiu. Nem o seu talento cheio de luz e sombras.
Da coluna diária do CM.
Morreu Rubem Fonseca, morreu Luis Sepúlveda – e morreu Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020) autor dos belíssimos romances policiais onde é personagem principal o detetive Espinosa. O Silêncio da Chuva, Achados e Perdidos e Uma Janela em Copacabana foram publicados em Portugal, mas o seu destino não foi feliz, infelizmente; ficaram por publicar muitos outros, como Vento Sudoeste, Fantasma, Um Lugar Perigoso, Espinosa em Saída ou o belo título Céu de Origamis. O seu universo são sobretudo as ruas de Copacabana (onde fica a esquadra de Espinosa) e o Bairro do Peixoto (a casa do detetive), mas as personagens podiam ser de qualquer lado – solitárias, como Espinosa, tristes, melancólicas, preparadas para um desenho em miniatura. Espinosa é um polícia-leitor, um gastrónomo de má comida, um sentimental de quem aprendemos a gostar, mas rigoroso e observador. Conheci Luiz Alfredo em 2001: o seu escritório era fantástico, com uma das paredes toda em vidro, voltada para o mar – e a outra totalmente coberta pelo mapa de Copacabana; era esse o seu mundo, como vem nos seus livros.
Da coluna diária do CM.
Fotografia de Maria João Sales Machado.
Ninguém sabe como foi apanhado pelo vírus, mas Luís Sepúlveda (1949-2020), Lucho, morreu ontem nas Astúrias, num hospital de Oviedo, ao fim de dois meses de internamento, complicações várias e também cansaço. Tínhamo-nos despedido em fevereiro, na Póvoa de Varzim, num sábado de tarde em que nunca mais chovia – e da mesmíssima forma, com um abraço, um beijo e a saudação “adiós, gordito”. Estávamos com o uruguaio Mario Delgado Aparaín, “el negro” (escreveram a quatro mãos o mais que divertido Os Piores Contos dos Irmãos Grim) e Luís estava constipado. “Que melhores.” Mal sabíamos.
Foi ele que começou, há muitos anos, por chamar-me “gordito” (até em público, numa entrevista), e eu imitei-o. Depois eu emagreci e combinámos que continuaria na mesma a chamar-me “gordito”, em espanhol. Ele dispunha de alcunhas para todos. O Mario Delgado era “el negro”; o seu editor português que muito amava, o Manuel Alberto Valente era várias coisas mas eu gostava de “hermano viejo”, porque o Manuel, para mim, também é um “irmão mais velho”. Se calhar eu devia, nesta despedida escrita, falar dos seus livros (especialmente dos que mais gosto, como O Velho que Lia Romances de Amor, Diário de um Killer Sentimental e Patagonia Express, por exemplo), mas anteontem morreu o brasileiro Rubem Fonseca, meu mestre como escritor, e ontem morreu mesmo Lucho Sepúlveda, amigo tão divertido e amável, cozinheiro tranquilo, conversador com se usava antes disto tudo, contador e inventor de histórias que nunca terminavam. De modo que isto não se faz, “gordito”; é como se deixássemos um copo a meio. Não se faz.
Conhecemo-nos depois de publicar O Velho que Escrevia Romances de Amor. Nessa altura escreveu um texto para a revista Ler, sobre a Patagónia e os moleskines que vira ao mítico Bruce Chatwin, os célebres e igualmente míticos caderninhos italianos. Nessa altura, impedido de voltar ao Chile, Lucho passava mal; o dinheiro era pouco e a Europa um inverno permanente. Ainda não tinha chegado o sucesso extraordinário de O Velho que Lia Romances de Amor e dos livros seguintes, e que lhe permitiram mais preguiça, mais serenidade e mais tempo para não escrever. Fez filmes e guiões para filmes; passou a escrever livros para crianças, o que o libertava para uma vida mais tranquila. Desses tempos, lembro um jantar maravilhoso em que Lucho cozinhou para todos nós (estava o Fernando Assis Pacheco) num terraço do Lumiar; e um desencontro de férias no Minho, perto de Caminha: eu queria falar com ele, mas não conseguia telefonar-lhe; estivemos uma semana separados por cem metros do rio Âncora sem sabermos, comigo a ligar para Paris e para a Alemanha, a tentar apanhá-lo. E ele do outro lado do rio, numa casa defronte.
Era, de resto, um homem fiel às suas convicções e ao seu passado. Foi ecologista antes da moda “do ambiente”. Se o Chile não o queria, não era ele que ia mudar. Ficaria em Gijón, onde esse grande mexicano, o Paco Taibo, tinha criado a Semana Negra, de que o Lucho cuidaria por anos. Vieram os prémios. Veio o reconhecimento internacional. E Lucho seria sempre aquela voz dengosa e pastosa, terna, dócil, mesmo quando insultava os fascistas e os que acusava de destruir o planeta (e destruíam). Mas, ao contrário dos tolos, as suas convicções e as suas ideias políticas nunca foram linhas vermelhas para construir e manter amizades. Porque, acima delas havia ainda a defesa da liberdade, a solidariedade entre pessoas concretas – e a amizade entre gente de bem.
Hoje recordo esse último abraço na Póvoa de Varzim. “Gordito, gordito, que magro estás.” Com aquela voz dengosa, dócil. Estás ligeiramente constipado, Lucho. Agasalha-te.
Da coluna diária do CM.
Os serviços da DGS têm agora novo trabalho: depois de nos ensinar como usar e retirar as máscaras, vão mostrar aos militantes do PSD como usar e manter a mordaça. Decretando que fazer perguntas sobre a ação do governo não é “patriótico”, o Dr. Rui Rio, calculista e compreendendo o povo, quer ser um “estadista imune à política”, como se não soubesse o essencial – que ela não vai de férias nem entra em confinamento, coisa provada, e de maneira letal e inteligente, pelo próprio primeiro-ministro, que já cilindrou o PR. Ninguém de bom senso pretende colocar em causa o governo ou o seu esforço atual – é da mais elementar inteligência prática, e não são necessários choques de eletrólitos para o perceber. Um mérito do governo, aliás, é nunca ter usado o argumento “patriótico” em seu apoio, e espero que o não faça (“O patriotismo”, dizia Samuel Johnson, “é o último refúgio de um canalha.”), mesmo quando corrige decisões erradas dos seus generais. Já para o Dr. Rio, se alguém duvidasse da DGS sobre a questão das máscaras ou sobre os seus números, por exemplo, era exilado para o purgatório.
Da coluna diária do CM.
O escritor Sinclair Lewis (Nobel em 1930, o autor de Rua Principal ou Babbitt) dizia que era “a única atriz que só representa na tela” e nunca ficou tremendamente ‘hollywoodesca’ – mas, na verdade, não conhecemos nada de “real” para lá desse rosto onde se refletiam a melancolia, a tristeza, a perdição, o desejo de pacificação da sueca Greta Garbo (1905-1990). Há pouco tempo, a dar arrumação a filmes que já não via há muito, encontrei uma cópia de Ninotchka, de Lubisch, onde Greta é uma mulher russa seduzida (nas vésperas da II Guerra) pelo “modo de vida ocidental”. É um dos derradeiros filmes de Garbo, que se retirou aos 38 anos, silenciosa, discreta, sexualmente ambígua, de uma beleza controversa e raríssima; antes disso vêm Margarida Gauthier, dirigido por George Cukor (uma versão de A Dama das Camélias, de Dumas), ou Ana Karenina (a adaptação, em 1935, do romance de Tolstoi). Greta Garbo fica bem nos dois, como mulher fatal, o que já acontecera em O Véu Pintado, baseado num romance de Somerset Maugham. Passam hoje 30 anos sobre a sua morte. Nunca a esqueceremos.
Da coluna diária do CM.
Não tenho comentários sobre o festival de música que o primeiro-ministro dizia ser “uma boa ideia” e só lhe ficava por um milhão de euros. Eu compreendo; esse dinheiro faz falta às pessoas que trabalham em espetáculos, são visíveis e têm peso eleitoral. O setor do livro, que não pede apoios e não costuma esperar pelo Estado, não é ouvido nem é muito visível, apesar de incluir não só editores e livrarias propriamente ditas, mas também livreiros, autores, tradutores, revisores, distribuidores, produtores, indústria gráfica, designers – e exportadores, por exemplo. Quando a associação de editores e Livreiros (APEL) se decidir a aparecer em público, falaremos da crise atual e da queda de 83% nas vendas de livros. Mas essa crise é ainda maior porque a política educativa não só ignora o papel do livro como tem promovido o analfabetismo emergente e público, que gosta muito de espetáculos e de foguetório, mas a quem o livro e a leitura aborrecem. A edição vai procurar novas saídas, como sempre o fez, porque precisa, sempre foi criativa e emprega muita gente; mas é bom que não conte com ajudas.
Da coluna diária do CM.
Nada vai ser como dantes. A ministra da Saúde usou ontem a frase para falar da incerteza que aí vem – felizmente, nem a incerteza nem a frase lhe pertencem. A incerteza é de todos nós, e por isso preocupamo-nos todos os dias ao ver como o país precisa de recuperar, de regressar, de sair de casa para respirar e trabalhar. Quanto à frase, tem sido usada sobretudo por economistas e políticos para nos avisar (como se não soubéssemos e fôssemos todos funcionários com emprego garantido) dos maus tempos que se aproximam. Compreende-se: diante da catástrofe, qualquer coisa menos grave do que a morte transporta consigo um clarão de otimismo, e fazer perguntas, querer uma informação, apontar erros ou esboçar uma crítica será, em breve, uma manifestação de “anti-patriotismo” em tão grave clima de emergência. Acontece que governar não é promover a incerteza ou a suspeita como horizonte, sobretudo quando os portugueses aceitaram de forma tão madura as restrições (e as impuseram, aliás, contra a opinião das autoridades) e sofrem em silêncio o confinamento. Era bom ter cuidado com as palavras.
Da coluna diária do CM.
Jesus, que era judeu, festejava a Páscoa, ‘Pessach’, ‘a passagem’, que se celebrava cerca de mil anos antes de ter nascido. O simbolismo da palavra está hoje ligado a outras ‘passagens’, como a da travessia do deserto em busca da libertação (preferível à original – a passagem do anjo da morte no Egito), de redenção, terra e dignidade. Explicar isto, e também o sentido da Páscoa cristã (a ressurreição e o triunfo sobre a morte), é hoje em dia um trabalho inglório e destinado ao fracasso. Seja como for, tanto na Páscoa judaica como na Páscoa cristã celebramos a libertação e o recomeço da vida. Num caso, atravessando o deserto e fugindo à escravidão, no outro atravessando a barreira da morte e construindo a alegoria da ressurreição. O mistério destas tradições permanece (vive-se em clandestinidade) e lembra-nos que somos peregrinos. Estamos de passagem. Estamos numa Páscoa que abre as portas a quem procura abrigo em busca de algum silêncio. Este ano tudo é diferente com as limitações do ‘confinamento’, que nos põe à prova; mas alguma coisa deve restar no fundo do nosso coração.
Da coluna diária do CM.
Toda a gente já percebeu que só ainda não se recomenda (ou torna obrigatório) o uso de máscaras porque elas faltam no mercado. Infelizmente, já faltavam em janeiro, quando as autoridades garantiam que o vírus não chegaria cá, ou mesmo em março quando “era uma simples gripe” – e não foram encomendadas porque o uso de máscara “não é um remédio contra o vírus” (este argumento é anedótico). Águas passadas. Porém, no Oriente o uso de máscara está enraizado e é parte da etiqueta social de quem sofre de uma simples constipação, gripe, alergia ao pólen ou problema respiratório; é assim no Japão, na China ou na Coreia – por civilizado respeito para com os outros, minimizando o perigo de os contagiarmos. Sim, também é usada para prevenir os riscos da poluição (Pequim já não está na lista das 10 cidades mais poluídas) ou para proteção durante o frio – e no Japão, país “singular”, é mesmo um acessório de moda. Para nós, habituados ao sol, à proximidade e aos abraços, é estranho. Mas, quando “isto” passar, talvez fique esse hábito de, durante a nossa constipação, respeitar a saúde dos outros.
Da coluna diária do CM.
Há coisas que não voltarão a ser as mesmas: a forma como olhamos os outros. Como nos comportamos em público (mesmo se o fizermos mal). Como olhamos a nossa casa. Como recordamos os que amamos. Como amamos os que amamos. E também como, apesar de tudo, julgaremos a fragilidade das coisas – da saúde, da vida humana, dos laços pessoais. Esperamos que as ruas sejam mais limpas e que as autoridades não poupem nessa matéria. Que tenhamos mais tempo para não errar de novo e nos julgarmos invencíveis. Talvez, daqui em diante, alguns de nós passem a usar máscara quando estiverem constipados ou com uma “simples gripe” – em sinal de respeito pelos outros. Vão respeitar-se mais as filas nas lojas e nos serviços. Talvez alguns tenham readquirido o prazer de estar em casa, mas também vamos dar mais valor a estar fora de casa, a respirar o ar do jardim, o ar do mar, o ar da rua. Vamos respeitar mais o papel dos médicos, dos enfermeiros, das pessoas que nos atendem nos hospitais. Iremos, talvez, ser menos tolerantes para com aquilo que julgávamos normal – e não era. A lista é grande.
Da coluna diária do CM.
Um pouco de beleza, se me permitem. Rafael (1483-1520): o seu nome leva atrás a influência dos grandes mestres, Michaelangelo e Da Vinci, naturalmente – e, mesmo sem o golpe do génio rebelde dos seus predecessores, Rafael merece o elogio: um pouco da beleza do mundo está nos seus quadros. A ‘Deposição de Cruz’ tem esse raio de luz, tal como a ‘Madona Sistina’, ou o ‘Triunfo de Galatea’, que nem está num dos grandes museus ou igrejas, mas na Vila Farnesina, nos limites do Vaticano, onde se encontra o fresco monumental da ‘Escola de Atenas’ (no qual estão Platão e Aristóteles, Sócrates e Pitágoras, Heraclito ou Parménides – e talvez Hipátia) ou a ‘Transfiguração’. Querido dos papas e do poder, Rafaello não deixa de nos interrogar através da sua pintura e dos problemas de perspetiva que coloca; nem na forma como nos deixa pistas para interpretar algumas das suas assombrações (visíveis nos seus auto-retratos) no meio daquela respiração de tranquilidade presente nas muitas ‘Madonnas’ que pintou. Passam hoje 500 anos sobre a sua morte, em Roma. Um pouco de beleza no meio da epidemia.
Da coluna diária do CM.
Fico ligeiramente irritado quando as pessoas da “classe média” se queixam dos muitos dramas psicológicos e ocupacionais relacionados com “a quarentena”, e certamente que eles existem. Recomendo sempre que façam o que têm a fazer: esperar, cada pessoa à sua maneira; ajudar e ser paciente. Nestas ocasiões falta sempre o sentido das proporções. Porque a sorte dos mais desprotegidos, dos que estão sós, dos que têm de trabalhar em condições difíceis, dos que têm de assegurar serviços primários ou básicos, ou dos que não podem trabalhar e com isso põem em risco a sua vida como a conheciam – é muito pior; e supõe dramas piores. Também é interessante dar lições sobre o fim do capitalismo ou sobre as oportunidades que agora surgirão, mas através do Skype e sem estar sujeito a ameaças reais ao emprego ou ao salário. Atravessamos tempos difíceis e eles não terminarão mal reabram as aulas e possamos todos ir passear aos areais: para muitos, o empobrecimento da sociedade civil (as empresas, as relações de trabalho, a vida independente) é uma bênção; por isso, esta quarentena tem de ser vigiada.
Da coluna diária do CM.
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