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Sitiados.

por FJV, em 19.03.20

Vivi um estado de sítio; agora, um “estado de emergência”. O diploma presidencial é moderado e dá respaldo jurídico a medidas mais incómodas para a generalidade dos portugueses. Não põe em causa as liberdades fundamentais, tirando aquelas que têm a ver com as circunstâncias que atravessamos e que, por si mesmo, já nos limitavam antes da entrada em vigor do “estado de emergência”, sobre o qual ontem, no Twitter, alguém perguntava: “Querem regressar a 1973?” Como se o “estado de emergência” instaurasse “o fascismo”. Respondi que não – mas que queria viver em 2021. Hoje, ao meio-dia, o número de infetados irá subir mais um pouco; a sensação de irrealidade será lentamente substituída pela da vida suspensa; só que a vida está mesmo suspensa. O que mais me aflige é, no entanto, a vida real das pessoas mais frágeis e das pequenas empresas que atravessarão dificuldades económicas – a ambas é necessário providenciar apoio. O isolamento trará consigo, também, um “estado de sítio” psicológico de consequências imprevisíveis. Sitiados, só podemos estar em guarda. Pelo menos por 15 dias.

Da coluna diária do CM.

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A luz que procuramos ao acordar.

por FJV, em 19.03.20

Saramago leu de forma crítica várias das grandes narrativas sobre epidemias e pandemias, de tal forma é preciso nas descrições do “estado de emergência” entretanto decretado e no consequente confinamento dos infectados.

 

No início da explosão da pandemia do coronavírus em Itália, quando as livrarias ainda estavam abertas e as cidades cheias de turistas imprevidentes, dois livros foram resgatados da poeira das estantes mais abandonadas — e passaram (também em Espanha) para as listas dos livros mais vendidos. O fenómeno repetia os casos de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, a seguir ao incêndio da catedral, ou Paris é uma Festa, de Hemingway, após os atentados islamitas de Paris, ou uma grande lista de romances e filmes sobre Nova Iorque logo depois do 11 de Setembro. O que procuramos nesses livros, e nestas ocasiões? Um retrato do infortúnio, um exemplo de resistência e de paciência, a comparação com outras histórias próximas da nossa.

Dois livros, portanto. Num deles, A Peste (de 1947), Albert Camus conta, pela voz do médico Bernard Rieux, como a cidade argelina de Orão foi isolada durante uma epidemia de peste bubónica – e como a população vai ficando desprotegida e acossada. O pior pesadelo de Rieux (o romance inspira-se em surtos de peste observados anos antes em Orão e Argel) acaba sempre por verificar-se, com os números da morte trepando todas as escalas e estatísticas. Numa carta de 1955, dois anos antes de lhe ser atribuído o Nobel, Albert Camus escrevia que o seu romance era uma alegoria do combate e da resistência contra o nazismo, finalmente derrotado na Europa. O livro termina, no entanto, com um aviso terrível: o de que nunca estaremos em segurança definitiva porque a peste se esconde por todo o lado, aguardando o momento de regressar às ruas e de se instalar entre nós — anos e anos depois, quando menos se espera.

Mas se em A Peste há ainda uma espécie de racionalidade a guiar os acontecimentos — uma doença, a circulação de ratos, bactérias detectáveis, um médico generoso e audaz —, o outro livro que regressou aos tops de venda fala da mais invisível (literalmente) das ameaças: a cegueira. O Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, de 1995, é um dos romances mais violentos e amargos do Nobel Português — é, aliás, provável que a leitura do livro tenha sido decisiva para a atribuição do prémio.

 

VINDA DO NADA.

De repente, a cegueira torna-se uma epidemia. O condutor de um carro pára num semáforo e fica cego de repente. A partir daí, a cegueira atinge este e aquele, multidões que aguardam com a sensação da inevitabilidade – ninguém consegue escapar-lhe porque ninguém sabe como se contrai a cegueira. O contágio é tão abrupto e misterioso que não parece contágio, naturalmente, mas uma espécie de ordem celestial sobre a cidade dos humanos: “Ceguem!” – e as pessoas, de todos os lugares e de todas as profissões, de todas as idades e de todas as condições, começam a cegar. Não devagar, um por um – mas numa vaga, uma epidemia inexplicável. Este é um dos resumos possíveis de Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, uma das mais cruéis distopias da literatura contemporânea: nele, tudo é inesperado, opressivo, cheio de privação e de violência, de coincidências irrisórias (como o médico oftalmologista que, na noite em cegou, recordou a ‘Ilíada’ de Homero, o poeta cego) ou de ausência absoluta de sentido. “Como foi que cegou”, pergunta alguém. “Como todos, deixei de ver de repente.” E todos começam a ser cegos. Excepto, naturalmente, uma mulher que — inexplicavelmente — continua a ver e a testemunhar as atrocidades e privações que decorrem ao longo do livro, da surpresa à confirmação do horror, da violência à salvação.

Saramago leu de forma crítica várias das grandes narrativas sobre epidemias e pandemias, de tal forma é preciso nas descrições do “estado de emergência” entretanto decretado e no consequente confinamento dos infectados (“O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, etc., etc.”). Há semelhanças em todas as epidemias de grande risco: isolamento, sofrimento, abandono, medo do outro, horror ao outro. Mas o grande salto de Ensaio Sobre a Cegueiraem relação a outras histórias é que, neste livro, ninguém se salva (à excepção de uma mulher, a nossa testemunha) dessa “cegueira branca” que vem de nenhum lugar e atinge todos; é isso que permite a Saramago inverter totalmente os papéis das suas personagens — ou seja, do chamado “género humano”. Todos seremos contaminados: “Sendo assim os contaminados vão ficar em contacto directo com os cegos. O mais provável é que, mais tarde ou mais cedo, esses venham a cegar também, aliás, tal como a situação está, suponho que contaminados já estaremos todos, de certeza não há uma única pessoa que não tenha estado à vista de um cego.” Tudo está preparado para desistirmos de sermos humanos: “Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, o Ministério do Exército chamou o Ministério da Saúde, Quer saber a novidade, aquele coronel de quem lhe falei cegou, A ver o que pensará ele da ideia que tinha, Já pensou, deu um tiro na cabeça, Coerente atitude, sim senhor, O exército está sempre pronto a dar o exemplo.”

 

BONS E MAUS NA TERRA DA ESCURIDÃO.

E todos seremos bons como cordeiros – e amáveis uns com os outros, e unidos quando em perigo, e solidários se estivermos em necessidade. A ideia de que o ser humano é “naturalmente bom” (ou seja, que é bom em “estado puro”) mas que a vida em sociedade o corrompe está na base de todas as nossas ingenuidades – e de grande parte das utopias que acompanham a nossa memória: um mundo pacificado, risonho, de céu azul e ruas abertas onde pessoas livres e felizes se cruzam interminavelmente e se respeitam mesmo se não se amarem. Mas em Ensaio Sobre a Cegueira tudo se transforma à medida que somos infectados e confinados. O que, antes, numa suposta “vida normal”, era a ideia caridosa do “ceguinho”, é agora “o cego” — o cego que maltrata sem ver a quem, o cego que domina por ser o mais cruel e o mais impiedoso, os cegos que maltratam os outros cegos, que violam as mulheres e se apoderam da comida e dos melhores lugares nas camaratas dos confinamentos, que ficam indiferentes em relação aos odores de putrefação que se espalham pelas ruas, que desconhecem todo e qualquer sentimento de piedade, de gratidão e de amor.

No fundo, Ensaio Sobre a Cegueira é um livro sobre o falhanço do género humano tal como ele era concebido desde o século XVIII: destinado a respeitar o contrato social e os laços de solidariedade ou cooperação, regressando a um mundo anterior ao pecado original e libertando-se dos constrangimentos sociais. No mundo terrível de Saramago, bons e maus coexistem nessa terra da escuridão; mas os que eram bons transformam-se em maus a grande velocidade. Talvez porque precisem de sobreviver, talvez porque a cegueira os impeça de ver que exista uma saída.

Com a epidemia de cegueira (mais do que vírus desconhecido, mais do que um inimigo invisível, trata-se de um absurdo), que é igualitária no horror, as autoridades criam um estado de excepção que acaba por transformar-se em norma. O leitor reconhecerá a tentação nesta cena quase inicial: “A rapariga dos óculos escuros pediu-lhe que ligasse o rádio, talvez dessem notícias. Deram-nas mais tarde, entretanto estiveram a ouvir um pouco de música. Em certa altura apareceram à porta da camarata uns quantos cegos, um deles disse, Que pena não ter trazido a guitarra. As notícias não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve a formação de um governo de unidade e salvação nacional.”

 

EM BUSCA DA LUZ E DO SILÊNCIO.

O cenário é apocalíptico, primeiro — e pós-apocalíptico depois. Nesse mundo em que ninguém pode escapar ao apocalipse, Saramago descrê profundamente do “género humano” e da sua sede de dominação e poder. O mínimo gesto de perdão é o caminho para uma morte anunciada ou para o sofrimento e a humilhação; as personagens deixam de ter passado — tudo nelas é a recordação de um tempo anterior ao castigo invisível, a cegueira, onde tudo era possível e nada mais pode voltar a acontecer. Pior do que isso, apenas uma minoria das minorias persegue o caminho da salvação, ou seja, a entreajuda, o carinho, a atenção às necessidades dos outros. A pandemia transforma-nos num segundo vírus igualmente letal. Deixamos de ser humanos. Passamos a ser cegos da “camarata dos malvados”. Tal como a mulher do médico — a única que não cega —, que é obrigada a matar para se salvar.

Privados de visão, concentramo-nos em todos os ruídos — é por ele que nos guiamos e por ele que nos perdemos nas nossas caminhadas ou nas nossas vigílias. Para nos orientarmos, temos o ouvido, o tacto e o olfacto. Mas os ruídos da noite são assustadores, antecedendo os assaltos, as violações, a depredação. O ruído, infelizmente, é demasiado – e esquece a genial frase de Albert Camus, em A Peste, quando diz que é apenas no momento do infortúnio que o género humano se acostuma “à verdade, ou seja, ao silêncio”. Temos muito a aprender.

Quando — peregrinando pela cidade esventrada e pejada de corpos abandonados e apodrecidos — um grupo de cegos procura fugir da massa de camaratas, isolamentos, cordões sanitários, postos de vigilância, grupos armados, o que procura é uma luz que explique os absurdos do vírus da cegueira. O romance leva-nos a esse mundo terrível, que existe nas profundezas dos nossos genes, e que só se explica pela existência da maldade, que continuamente tentamos negar a fim de tornar o nosso universo uma coisa mais habitável. Mas para Saramago isso são momentos de excepção. No final, quando a cegueira começa a desaparecer da mesma forma desconfortável como começara a contagiar as mulheres, os homens e os seus sonhos, há um momento de lirismo sublime, vivido pela personagem feminina (nenhuma delas tem nome): saber se a cidade tinha ou não sobrevivido. É isso que todos os dias fazemos, ao acordar.

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