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Vivi um estado de sítio; agora, um “estado de emergência”. O diploma presidencial é moderado e dá respaldo jurídico a medidas mais incómodas para a generalidade dos portugueses. Não põe em causa as liberdades fundamentais, tirando aquelas que têm a ver com as circunstâncias que atravessamos e que, por si mesmo, já nos limitavam antes da entrada em vigor do “estado de emergência”, sobre o qual ontem, no Twitter, alguém perguntava: “Querem regressar a 1973?” Como se o “estado de emergência” instaurasse “o fascismo”. Respondi que não – mas que queria viver em 2021. Hoje, ao meio-dia, o número de infetados irá subir mais um pouco; a sensação de irrealidade será lentamente substituída pela da vida suspensa; só que a vida está mesmo suspensa. O que mais me aflige é, no entanto, a vida real das pessoas mais frágeis e das pequenas empresas que atravessarão dificuldades económicas – a ambas é necessário providenciar apoio. O isolamento trará consigo, também, um “estado de sítio” psicológico de consequências imprevisíveis. Sitiados, só podemos estar em guarda. Pelo menos por 15 dias.
Da coluna diária do CM.
Saramago leu de forma crítica várias das grandes narrativas sobre epidemias e pandemias, de tal forma é preciso nas descrições do “estado de emergência” entretanto decretado e no consequente confinamento dos infectados.
No início da explosão da pandemia do coronavírus em Itália, quando as livrarias ainda estavam abertas e as cidades cheias de turistas imprevidentes, dois livros foram resgatados da poeira das estantes mais abandonadas — e passaram (também em Espanha) para as listas dos livros mais vendidos. O fenómeno repetia os casos de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, a seguir ao incêndio da catedral, ou Paris é uma Festa, de Hemingway, após os atentados islamitas de Paris, ou uma grande lista de romances e filmes sobre Nova Iorque logo depois do 11 de Setembro. O que procuramos nesses livros, e nestas ocasiões? Um retrato do infortúnio, um exemplo de resistência e de paciência, a comparação com outras histórias próximas da nossa.
Dois livros, portanto. Num deles, A Peste (de 1947), Albert Camus conta, pela voz do médico Bernard Rieux, como a cidade argelina de Orão foi isolada durante uma epidemia de peste bubónica – e como a população vai ficando desprotegida e acossada. O pior pesadelo de Rieux (o romance inspira-se em surtos de peste observados anos antes em Orão e Argel) acaba sempre por verificar-se, com os números da morte trepando todas as escalas e estatísticas. Numa carta de 1955, dois anos antes de lhe ser atribuído o Nobel, Albert Camus escrevia que o seu romance era uma alegoria do combate e da resistência contra o nazismo, finalmente derrotado na Europa. O livro termina, no entanto, com um aviso terrível: o de que nunca estaremos em segurança definitiva porque a peste se esconde por todo o lado, aguardando o momento de regressar às ruas e de se instalar entre nós — anos e anos depois, quando menos se espera.
Mas se em A Peste há ainda uma espécie de racionalidade a guiar os acontecimentos — uma doença, a circulação de ratos, bactérias detectáveis, um médico generoso e audaz —, o outro livro que regressou aos tops de venda fala da mais invisível (literalmente) das ameaças: a cegueira. O Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, de 1995, é um dos romances mais violentos e amargos do Nobel Português — é, aliás, provável que a leitura do livro tenha sido decisiva para a atribuição do prémio.
VINDA DO NADA.
De repente, a cegueira torna-se uma epidemia. O condutor de um carro pára num semáforo e fica cego de repente. A partir daí, a cegueira atinge este e aquele, multidões que aguardam com a sensação da inevitabilidade – ninguém consegue escapar-lhe porque ninguém sabe como se contrai a cegueira. O contágio é tão abrupto e misterioso que não parece contágio, naturalmente, mas uma espécie de ordem celestial sobre a cidade dos humanos: “Ceguem!” – e as pessoas, de todos os lugares e de todas as profissões, de todas as idades e de todas as condições, começam a cegar. Não devagar, um por um – mas numa vaga, uma epidemia inexplicável. Este é um dos resumos possíveis de Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, uma das mais cruéis distopias da literatura contemporânea: nele, tudo é inesperado, opressivo, cheio de privação e de violência, de coincidências irrisórias (como o médico oftalmologista que, na noite em cegou, recordou a ‘Ilíada’ de Homero, o poeta cego) ou de ausência absoluta de sentido. “Como foi que cegou”, pergunta alguém. “Como todos, deixei de ver de repente.” E todos começam a ser cegos. Excepto, naturalmente, uma mulher que — inexplicavelmente — continua a ver e a testemunhar as atrocidades e privações que decorrem ao longo do livro, da surpresa à confirmação do horror, da violência à salvação.
Saramago leu de forma crítica várias das grandes narrativas sobre epidemias e pandemias, de tal forma é preciso nas descrições do “estado de emergência” entretanto decretado e no consequente confinamento dos infectados (“O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, etc., etc.”). Há semelhanças em todas as epidemias de grande risco: isolamento, sofrimento, abandono, medo do outro, horror ao outro. Mas o grande salto de Ensaio Sobre a Cegueiraem relação a outras histórias é que, neste livro, ninguém se salva (à excepção de uma mulher, a nossa testemunha) dessa “cegueira branca” que vem de nenhum lugar e atinge todos; é isso que permite a Saramago inverter totalmente os papéis das suas personagens — ou seja, do chamado “género humano”. Todos seremos contaminados: “Sendo assim os contaminados vão ficar em contacto directo com os cegos. O mais provável é que, mais tarde ou mais cedo, esses venham a cegar também, aliás, tal como a situação está, suponho que contaminados já estaremos todos, de certeza não há uma única pessoa que não tenha estado à vista de um cego.” Tudo está preparado para desistirmos de sermos humanos: “Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, o Ministério do Exército chamou o Ministério da Saúde, Quer saber a novidade, aquele coronel de quem lhe falei cegou, A ver o que pensará ele da ideia que tinha, Já pensou, deu um tiro na cabeça, Coerente atitude, sim senhor, O exército está sempre pronto a dar o exemplo.”
BONS E MAUS NA TERRA DA ESCURIDÃO.
E todos seremos bons como cordeiros – e amáveis uns com os outros, e unidos quando em perigo, e solidários se estivermos em necessidade. A ideia de que o ser humano é “naturalmente bom” (ou seja, que é bom em “estado puro”) mas que a vida em sociedade o corrompe está na base de todas as nossas ingenuidades – e de grande parte das utopias que acompanham a nossa memória: um mundo pacificado, risonho, de céu azul e ruas abertas onde pessoas livres e felizes se cruzam interminavelmente e se respeitam mesmo se não se amarem. Mas em Ensaio Sobre a Cegueira tudo se transforma à medida que somos infectados e confinados. O que, antes, numa suposta “vida normal”, era a ideia caridosa do “ceguinho”, é agora “o cego” — o cego que maltrata sem ver a quem, o cego que domina por ser o mais cruel e o mais impiedoso, os cegos que maltratam os outros cegos, que violam as mulheres e se apoderam da comida e dos melhores lugares nas camaratas dos confinamentos, que ficam indiferentes em relação aos odores de putrefação que se espalham pelas ruas, que desconhecem todo e qualquer sentimento de piedade, de gratidão e de amor.
No fundo, Ensaio Sobre a Cegueira é um livro sobre o falhanço do género humano tal como ele era concebido desde o século XVIII: destinado a respeitar o contrato social e os laços de solidariedade ou cooperação, regressando a um mundo anterior ao pecado original e libertando-se dos constrangimentos sociais. No mundo terrível de Saramago, bons e maus coexistem nessa terra da escuridão; mas os que eram bons transformam-se em maus a grande velocidade. Talvez porque precisem de sobreviver, talvez porque a cegueira os impeça de ver que exista uma saída.
Com a epidemia de cegueira (mais do que vírus desconhecido, mais do que um inimigo invisível, trata-se de um absurdo), que é igualitária no horror, as autoridades criam um estado de excepção que acaba por transformar-se em norma. O leitor reconhecerá a tentação nesta cena quase inicial: “A rapariga dos óculos escuros pediu-lhe que ligasse o rádio, talvez dessem notícias. Deram-nas mais tarde, entretanto estiveram a ouvir um pouco de música. Em certa altura apareceram à porta da camarata uns quantos cegos, um deles disse, Que pena não ter trazido a guitarra. As notícias não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve a formação de um governo de unidade e salvação nacional.”
EM BUSCA DA LUZ E DO SILÊNCIO.
O cenário é apocalíptico, primeiro — e pós-apocalíptico depois. Nesse mundo em que ninguém pode escapar ao apocalipse, Saramago descrê profundamente do “género humano” e da sua sede de dominação e poder. O mínimo gesto de perdão é o caminho para uma morte anunciada ou para o sofrimento e a humilhação; as personagens deixam de ter passado — tudo nelas é a recordação de um tempo anterior ao castigo invisível, a cegueira, onde tudo era possível e nada mais pode voltar a acontecer. Pior do que isso, apenas uma minoria das minorias persegue o caminho da salvação, ou seja, a entreajuda, o carinho, a atenção às necessidades dos outros. A pandemia transforma-nos num segundo vírus igualmente letal. Deixamos de ser humanos. Passamos a ser cegos da “camarata dos malvados”. Tal como a mulher do médico — a única que não cega —, que é obrigada a matar para se salvar.
Privados de visão, concentramo-nos em todos os ruídos — é por ele que nos guiamos e por ele que nos perdemos nas nossas caminhadas ou nas nossas vigílias. Para nos orientarmos, temos o ouvido, o tacto e o olfacto. Mas os ruídos da noite são assustadores, antecedendo os assaltos, as violações, a depredação. O ruído, infelizmente, é demasiado – e esquece a genial frase de Albert Camus, em A Peste, quando diz que é apenas no momento do infortúnio que o género humano se acostuma “à verdade, ou seja, ao silêncio”. Temos muito a aprender.
Quando — peregrinando pela cidade esventrada e pejada de corpos abandonados e apodrecidos — um grupo de cegos procura fugir da massa de camaratas, isolamentos, cordões sanitários, postos de vigilância, grupos armados, o que procura é uma luz que explique os absurdos do vírus da cegueira. O romance leva-nos a esse mundo terrível, que existe nas profundezas dos nossos genes, e que só se explica pela existência da maldade, que continuamente tentamos negar a fim de tornar o nosso universo uma coisa mais habitável. Mas para Saramago isso são momentos de excepção. No final, quando a cegueira começa a desaparecer da mesma forma desconfortável como começara a contagiar as mulheres, os homens e os seus sonhos, há um momento de lirismo sublime, vivido pela personagem feminina (nenhuma delas tem nome): saber se a cidade tinha ou não sobrevivido. É isso que todos os dias fazemos, ao acordar.
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