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Todos os dias, entre as sete e as nove da noite, a maior parte de nós (os que não vivem em Marte) senta-se diante da televisão para um desfile de números, estatísticas, curvas, “planaltos” e previsões. É natural que queiramos saber, tais são as decisões, alvitres e avisos desencontrados (sobretudo quando as autoridades se desdobram em declarações intermináveis). Cuidar dos vivos, é essa a regra nestas circunstâncias; e imaginar o que vamos fazer depois de amanhã. A situação dos lares de idosos é esse “depois de amanhã” das nossas vidas. O caso de Vila Nova de Foz Côa é exemplar, porque fala da solidão mais brutal, que é a do abandono durante a doença e a tragédia, onde se faz apenas um teste em cada três prescrições; e onde, até há pouco (não sei se a situação mudou), esses testes eram feitos a 60 quilómetros de distância. Tal como no caso dos incêndios de Pedrógão, quando a imprensa “descobriu” a tragédia do interior do país, a pandemia vai revelando um país que nunca deixou de caminhar a duas ou três velocidades, entre a ‘websummit’ e o abandono mais letal.
Da coluna diária do CM.
As imagens são repetidas na televisão até não significarem nada – lares esvaziados a meio da noite, ambulâncias e carros militares, emergência e silêncio. E nenhum rosto, como se não existissem (até porque estão isolados). Sempre disse que um país se avalia também ela forma como trata os seus velhos e os coloca nas primeiras linhas das suas preocupações, porque muitos não têm ninguém. No país da adolescência eterna e da juventude urbana, coitadinha, que se enche de tédio com a quarentena, os “lares de idosos”, sociais e paroquiais, são território de salvação; resgataram muita gente da miséria; acolhem os velhos, levam-lhes comida a casa, prestam apoio médico básico, ouvem-nos e falam com eles quando as visitas não aparecem com frequência. No país que há pouco tempo chumbou no parlamento a “criminalização do abandono de idosos”, a tragédia dos velhos arrepia-me mas não me espanta, nem o descuido das autoridades. Ontem, um repórter perguntava ao desesperado provedor do lar de Foz Côa – a minha terra – se já havia planos “para retirar essa gente”. E não lhe caiu uma bigorna em cima.
Da coluna diária do CM.
Em datas absolutamente especiais, ponho-me a caminho de Évora para almoçar no Fialho, onde entrei pela primeira vez em 1983 e conheci Manuel Fialho (1938-2020), que agora faleceu – mas também os seus irmãos Gabriel e Amor (com quem há não muito tempo me cruzei para minha alegria, ao vê-lo). Cação de coentrada, por razões sentimentais, é um dos pratos (a dividir) que hoje em dia repito em todas as visitas. Manuel Fialho, que foi um dos autores da ‘Carta Gastronómica do Alentejo’, documento dos documentos, era – à sua maneira – um erudito da cozinha da região, tendo recuperado para o restaurante algumas receitas notáveis e na altura em desuso, e porque permanentemente perguntava, indagava, queria saber, sempre com aquela afabilidade de pessoa inteira e amável. Chamei-lhe um dia “cavalheiro alentejano” – e isso é essencial ao recordar Manuel Fialho, 82 anos: um cavalheiro no restaurante, um cavalheiro no trato, entre as empadinhas, torresmos, grão, queijos, perfumes de vinhos que conhecia e amava. Portanto, perdemos um senhor. Coisa que hoje em dia nos faz muita falta.
Da coluna diária do CM.
Mentir ou não mentir? Desdizer uns dias depois, ou limitar-se a não dizer? Em situações de emergência, a política segue para intervalo – mas, sabendo bem que o Presidente da República não brinca com as palavras, antes as mede com cautela, fiquei intrigado com a sua aparição avisando que “ninguém ia mentir”. Sobre que assunto não se iria mentir, de novo, aos portugueses? Acho ligeiramente estranha a preocupação do Presidente acerca de “ninguém mentir”, sobretudo quando os números fornecidos pelas autoridades não batem certo, nem parte dos seus conselhos, nem algumas das suas previsões. Pode ser uma frase mal interpretada. Repare-se: não digo que as autoridades e o governo não tenham feito tudo o que podem para lidar com a situação, que é grave. Mas a ideia de que, em situações desta natureza, passe pela cabeça de alguém “mentir aos portugueses” é assunto que me tem acompanhado nos últimos dias, relembrando-me a tragédia de Pedrógão ou a comédia de Tancos – e isso é completamente desnecessário. Apesar de ser conhecido como brincalhão, o Presidente não iria brincar com isso, pois não?
Da coluna diária do CM.
O que vem aí não é bom, mas é esperado. E uma coisa é estar no “recato do lar” a desfazer-se em comentários sobre o “isolamento”, lamentando-o com piadinhas, ou tentando furá-lo por causa do sol de domingo – e outra é a vida de mais de metade dos portugueses, desprotegidos e sem economias, com emprego precário ou sujeito a todas as flutuações; ou a das pequenas empresas que vivem do turismo e dos negócios da semana. Os mais frágeis ficarão mais frágeis ainda, e o Estado deve estar preparado para assumir as suas funções – como não esteve até aqui. O vírus vai matar “o nosso modo de vida” e o dever do Estado, como o das grandes empresas, é o de pôr (já) gente a imaginar e a estudar esses novos tempos. E a forma de minorar o sofrimento de quem vai atravessar os tempos difíceis. A economia, a vida das famílias, os modelos de trabalho, a cultura e a relação com o invisível e com a natureza – é provável que não estejamos preparados para o que aí vem. Não é mau, se lá chegarmos. Será inevitavelmente diferente e, em alguns casos, será melhor – se conservarmos o sentido do humano.
Da coluna diária do CM.
Vivi um estado de sítio; agora, um “estado de emergência”. O diploma presidencial é moderado e dá respaldo jurídico a medidas mais incómodas para a generalidade dos portugueses. Não põe em causa as liberdades fundamentais, tirando aquelas que têm a ver com as circunstâncias que atravessamos e que, por si mesmo, já nos limitavam antes da entrada em vigor do “estado de emergência”, sobre o qual ontem, no Twitter, alguém perguntava: “Querem regressar a 1973?” Como se o “estado de emergência” instaurasse “o fascismo”. Respondi que não – mas que queria viver em 2021. Hoje, ao meio-dia, o número de infetados irá subir mais um pouco; a sensação de irrealidade será lentamente substituída pela da vida suspensa; só que a vida está mesmo suspensa. O que mais me aflige é, no entanto, a vida real das pessoas mais frágeis e das pequenas empresas que atravessarão dificuldades económicas – a ambas é necessário providenciar apoio. O isolamento trará consigo, também, um “estado de sítio” psicológico de consequências imprevisíveis. Sitiados, só podemos estar em guarda. Pelo menos por 15 dias.
Da coluna diária do CM.
Saramago leu de forma crítica várias das grandes narrativas sobre epidemias e pandemias, de tal forma é preciso nas descrições do “estado de emergência” entretanto decretado e no consequente confinamento dos infectados.
No início da explosão da pandemia do coronavírus em Itália, quando as livrarias ainda estavam abertas e as cidades cheias de turistas imprevidentes, dois livros foram resgatados da poeira das estantes mais abandonadas — e passaram (também em Espanha) para as listas dos livros mais vendidos. O fenómeno repetia os casos de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, a seguir ao incêndio da catedral, ou Paris é uma Festa, de Hemingway, após os atentados islamitas de Paris, ou uma grande lista de romances e filmes sobre Nova Iorque logo depois do 11 de Setembro. O que procuramos nesses livros, e nestas ocasiões? Um retrato do infortúnio, um exemplo de resistência e de paciência, a comparação com outras histórias próximas da nossa.
Dois livros, portanto. Num deles, A Peste (de 1947), Albert Camus conta, pela voz do médico Bernard Rieux, como a cidade argelina de Orão foi isolada durante uma epidemia de peste bubónica – e como a população vai ficando desprotegida e acossada. O pior pesadelo de Rieux (o romance inspira-se em surtos de peste observados anos antes em Orão e Argel) acaba sempre por verificar-se, com os números da morte trepando todas as escalas e estatísticas. Numa carta de 1955, dois anos antes de lhe ser atribuído o Nobel, Albert Camus escrevia que o seu romance era uma alegoria do combate e da resistência contra o nazismo, finalmente derrotado na Europa. O livro termina, no entanto, com um aviso terrível: o de que nunca estaremos em segurança definitiva porque a peste se esconde por todo o lado, aguardando o momento de regressar às ruas e de se instalar entre nós — anos e anos depois, quando menos se espera.
Mas se em A Peste há ainda uma espécie de racionalidade a guiar os acontecimentos — uma doença, a circulação de ratos, bactérias detectáveis, um médico generoso e audaz —, o outro livro que regressou aos tops de venda fala da mais invisível (literalmente) das ameaças: a cegueira. O Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, de 1995, é um dos romances mais violentos e amargos do Nobel Português — é, aliás, provável que a leitura do livro tenha sido decisiva para a atribuição do prémio.
VINDA DO NADA.
De repente, a cegueira torna-se uma epidemia. O condutor de um carro pára num semáforo e fica cego de repente. A partir daí, a cegueira atinge este e aquele, multidões que aguardam com a sensação da inevitabilidade – ninguém consegue escapar-lhe porque ninguém sabe como se contrai a cegueira. O contágio é tão abrupto e misterioso que não parece contágio, naturalmente, mas uma espécie de ordem celestial sobre a cidade dos humanos: “Ceguem!” – e as pessoas, de todos os lugares e de todas as profissões, de todas as idades e de todas as condições, começam a cegar. Não devagar, um por um – mas numa vaga, uma epidemia inexplicável. Este é um dos resumos possíveis de Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, uma das mais cruéis distopias da literatura contemporânea: nele, tudo é inesperado, opressivo, cheio de privação e de violência, de coincidências irrisórias (como o médico oftalmologista que, na noite em cegou, recordou a ‘Ilíada’ de Homero, o poeta cego) ou de ausência absoluta de sentido. “Como foi que cegou”, pergunta alguém. “Como todos, deixei de ver de repente.” E todos começam a ser cegos. Excepto, naturalmente, uma mulher que — inexplicavelmente — continua a ver e a testemunhar as atrocidades e privações que decorrem ao longo do livro, da surpresa à confirmação do horror, da violência à salvação.
Saramago leu de forma crítica várias das grandes narrativas sobre epidemias e pandemias, de tal forma é preciso nas descrições do “estado de emergência” entretanto decretado e no consequente confinamento dos infectados (“O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, etc., etc.”). Há semelhanças em todas as epidemias de grande risco: isolamento, sofrimento, abandono, medo do outro, horror ao outro. Mas o grande salto de Ensaio Sobre a Cegueiraem relação a outras histórias é que, neste livro, ninguém se salva (à excepção de uma mulher, a nossa testemunha) dessa “cegueira branca” que vem de nenhum lugar e atinge todos; é isso que permite a Saramago inverter totalmente os papéis das suas personagens — ou seja, do chamado “género humano”. Todos seremos contaminados: “Sendo assim os contaminados vão ficar em contacto directo com os cegos. O mais provável é que, mais tarde ou mais cedo, esses venham a cegar também, aliás, tal como a situação está, suponho que contaminados já estaremos todos, de certeza não há uma única pessoa que não tenha estado à vista de um cego.” Tudo está preparado para desistirmos de sermos humanos: “Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, o Ministério do Exército chamou o Ministério da Saúde, Quer saber a novidade, aquele coronel de quem lhe falei cegou, A ver o que pensará ele da ideia que tinha, Já pensou, deu um tiro na cabeça, Coerente atitude, sim senhor, O exército está sempre pronto a dar o exemplo.”
BONS E MAUS NA TERRA DA ESCURIDÃO.
E todos seremos bons como cordeiros – e amáveis uns com os outros, e unidos quando em perigo, e solidários se estivermos em necessidade. A ideia de que o ser humano é “naturalmente bom” (ou seja, que é bom em “estado puro”) mas que a vida em sociedade o corrompe está na base de todas as nossas ingenuidades – e de grande parte das utopias que acompanham a nossa memória: um mundo pacificado, risonho, de céu azul e ruas abertas onde pessoas livres e felizes se cruzam interminavelmente e se respeitam mesmo se não se amarem. Mas em Ensaio Sobre a Cegueira tudo se transforma à medida que somos infectados e confinados. O que, antes, numa suposta “vida normal”, era a ideia caridosa do “ceguinho”, é agora “o cego” — o cego que maltrata sem ver a quem, o cego que domina por ser o mais cruel e o mais impiedoso, os cegos que maltratam os outros cegos, que violam as mulheres e se apoderam da comida e dos melhores lugares nas camaratas dos confinamentos, que ficam indiferentes em relação aos odores de putrefação que se espalham pelas ruas, que desconhecem todo e qualquer sentimento de piedade, de gratidão e de amor.
No fundo, Ensaio Sobre a Cegueira é um livro sobre o falhanço do género humano tal como ele era concebido desde o século XVIII: destinado a respeitar o contrato social e os laços de solidariedade ou cooperação, regressando a um mundo anterior ao pecado original e libertando-se dos constrangimentos sociais. No mundo terrível de Saramago, bons e maus coexistem nessa terra da escuridão; mas os que eram bons transformam-se em maus a grande velocidade. Talvez porque precisem de sobreviver, talvez porque a cegueira os impeça de ver que exista uma saída.
Com a epidemia de cegueira (mais do que vírus desconhecido, mais do que um inimigo invisível, trata-se de um absurdo), que é igualitária no horror, as autoridades criam um estado de excepção que acaba por transformar-se em norma. O leitor reconhecerá a tentação nesta cena quase inicial: “A rapariga dos óculos escuros pediu-lhe que ligasse o rádio, talvez dessem notícias. Deram-nas mais tarde, entretanto estiveram a ouvir um pouco de música. Em certa altura apareceram à porta da camarata uns quantos cegos, um deles disse, Que pena não ter trazido a guitarra. As notícias não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve a formação de um governo de unidade e salvação nacional.”
EM BUSCA DA LUZ E DO SILÊNCIO.
O cenário é apocalíptico, primeiro — e pós-apocalíptico depois. Nesse mundo em que ninguém pode escapar ao apocalipse, Saramago descrê profundamente do “género humano” e da sua sede de dominação e poder. O mínimo gesto de perdão é o caminho para uma morte anunciada ou para o sofrimento e a humilhação; as personagens deixam de ter passado — tudo nelas é a recordação de um tempo anterior ao castigo invisível, a cegueira, onde tudo era possível e nada mais pode voltar a acontecer. Pior do que isso, apenas uma minoria das minorias persegue o caminho da salvação, ou seja, a entreajuda, o carinho, a atenção às necessidades dos outros. A pandemia transforma-nos num segundo vírus igualmente letal. Deixamos de ser humanos. Passamos a ser cegos da “camarata dos malvados”. Tal como a mulher do médico — a única que não cega —, que é obrigada a matar para se salvar.
Privados de visão, concentramo-nos em todos os ruídos — é por ele que nos guiamos e por ele que nos perdemos nas nossas caminhadas ou nas nossas vigílias. Para nos orientarmos, temos o ouvido, o tacto e o olfacto. Mas os ruídos da noite são assustadores, antecedendo os assaltos, as violações, a depredação. O ruído, infelizmente, é demasiado – e esquece a genial frase de Albert Camus, em A Peste, quando diz que é apenas no momento do infortúnio que o género humano se acostuma “à verdade, ou seja, ao silêncio”. Temos muito a aprender.
Quando — peregrinando pela cidade esventrada e pejada de corpos abandonados e apodrecidos — um grupo de cegos procura fugir da massa de camaratas, isolamentos, cordões sanitários, postos de vigilância, grupos armados, o que procura é uma luz que explique os absurdos do vírus da cegueira. O romance leva-nos a esse mundo terrível, que existe nas profundezas dos nossos genes, e que só se explica pela existência da maldade, que continuamente tentamos negar a fim de tornar o nosso universo uma coisa mais habitável. Mas para Saramago isso são momentos de excepção. No final, quando a cegueira começa a desaparecer da mesma forma desconfortável como começara a contagiar as mulheres, os homens e os seus sonhos, há um momento de lirismo sublime, vivido pela personagem feminina (nenhuma delas tem nome): saber se a cidade tinha ou não sobrevivido. É isso que todos os dias fazemos, ao acordar.
Adolescentes imbecis ou adultos sem piedade e sentido das proporções – ambas as classes estão muito bem representadas no “espaço público” ou nas chamadas “redes sociais”. Por exemplo: menosprezando os mais idosos e desvalorizando a sua condição diante da epidemia. Como os grupos de risco incluem sobretudo pessoas mais de 70 anos, tenho lido várias referências ao facto de o vírus os atingir com mais violência – e de serem “material mais dispensável”- Boa parte deles arrisca demais: saem de casa, apanham ar frio nos jardins e nas pracetas, vão às compras para a família (os filhos, as noras, os netos), passam na farmácia, querem continuar como se não se passasse nada. Eu também gostava de lhes dizer: vão para casa, protejam-se, abriguem-se – e alguém aparece para os ajudar. A ideia de que são uma perda menor e natural , que já li, é de uma crueldade que me deixa desamparado, sobretudo num país onde os partidos votaram criminalizar o abandono de animais mas se recusam a criminalizar o abandono de idosos. Às vezes não somos dignos de morar na cidade dos humanos.
Da coluna diária do CM.
Em comparação com a dos meus pais, a minha geração teve uma vida para lá de confortável. Com a dos meus avós não há sequer comparação possível. A geração seguinte não foi apenas a do conforto, mas também a da abundância – com os respetivos excessos. Hoje, na iminência de o país encerrar para quarentena, devemos perguntar-nos acerca do que vai acontecer em junho ou depois do verão. À “febre do encerramento” e do “teletrabalho” (que apenas é usado por uma pequena percentagem privilegiada, como é o meu caso e o de quem perora nas tvs e nos jornais), segue-se este cenário: abastecimentos mais difíceis, empresas no fio, vidas difíceis, isolamento real, crescimento da pobreza. Sim, o país tem mesmo de encerrar – só que, ao contrário do que se pensa, esse encerramento não é um ‘like’ nas “redes sociais”. O nosso modo de vida vai mudar terrivelmente nestes dois meses que se aproximam; e, quando despertarmos do pesadelo (acelerado pelas tardias decisões dos políticos), iremos mudar ainda mais. Era nisso que já devíamos estar a pensar, mesmo em silêncio, mas com grandeza.
Da coluna diária do CM.
As autoridades já cometeram boa parte da percentagem de erros habituais: omissão de factos, negação da realidade e desvalorização em excesso (a ministra da Saúde e a Diretora-Geral foram campeãs), má avaliação política e demora em aplicar medidas rigorosas. A ninguém escapa que as decisões do governo, mesmo sendo corretas, foram tardias; e que a chamada “sociedade civil”, em geral, adiantou-se às decisões do chamado “aparelho central” – basta ver as decisões dos governos dos Açores e da Madeira, das câmaras do Porto ou de Cascais, bem como da generalidade dos portugueses. As autoridades, em muitos casos, foram atrás da própria sociedade e do esforço e competência dos profissionais da saúde. Mesmo na questão do “açambarcamento”, lamento não ir na conversa geral de criticar as pessoas que foram aos supermercados. Em comparação com outros países, foi calmo e sem drama; as pessoas não “açambarcaram” senão por não saberem se e por quanto tempo podem ficar impedidas de fazer compras para cuidarem das suas famílias. E em geral, sim, fomos (todos) melhores do que as autoridades.
Da coluna diária do CM.
Outro dia, ao ligar a televisão para saber novidades do coronavírus (era na altura em que a Sra. Diretora-Geral da Saúde garantia, a pés juntos, que o vírus não chegaria a Portugal) deparo com duas senhoras vestidas como extraterrestres numa nova versão do ‘Alien’ – estavam a falar num desfile de moda lisboeta e durante três ou quatro minutos deram conselhos sobre como usar roupa “com sustentabilidade”, ministrando-me um curso rápido para salvar o planeta. Devido às suas tatuagens e piercings mudei de canal, mas confesso que isto é agora cada vez mais comum: haver gente interessada em mostrar-me, pela televisão, na rádio e nos jornais – e com voz apalermada –, como posso salvar o planeta, comer tofu, tornar-me melhor pessoa ou como devo agir no meu dia a dia para sobreviver e, ao mesmo tempo, respeitar o próximo, ser amigo dos animais, da Amazónia e do sistema solar. Há épocas em que o género humano anda tão tolinho que julga poder construir “um mundo melhor” só por falar nele ou por se julgar superior ao outros mortais, pecadores empedernidos. É outra espécie de vírus.
Da coluna diária do CM.
Ultimamente temos lido mais. A culpa também é minha, porque estou a revisitar uma série de textos de Eça, além de me ter imposto a obrigação de ler outros que nunca tinha lido. Há uma grande alegria em ler autores que parecem ter inventado a língua que falamos; é como um prémio suplementar, uma recompensa. Agora, que vários leitores desta coluna estão de quarentena, talvez fosse bom selecionar uma espécie de “biblioteca do isolamento”. Na China, quando a epidemia se transformou numa tragédia, uma universidade de Pequim recomendou aos seus alunos que “lessem e pensassem”, e enviou-lhes listas de livros possíveis para os tempos graves que atravessavam. Durante a minha quarentena, que terminou há quase uma semana, trabalhei quase normalmente, li, arrumei a casa, descobri estes textos de Eça que nunca tinha folheado. Ontem, na sua crónica do CM, Manuel S. Fonseca falava de um vírus que anda a destruir os livros. Talvez estejamos a precisar de algum isolamento, para que se possa recuperar o gosto de ler, de reler e de sermos mais humanos ou, apenas, mais inclinados para o melhor lado da vida.
Da coluna diária do CM.
Lembram-se de Perry Mason? Claro que lembram. Era ligeiramente cretino – mas um génio no tribunal e na investigação dos crimes que lhe emprestaram a fama que mantém até hoje. De certa maneira, interpretava o papel que o seu criador teve no campo literário: ambicioso, arrogante, trabalhador, frontal e inteligente. Quem, de entre os apaixonados pelo policial não leu os “casos” de Perry Mason, nos livros de Erle Stanley Gardner (1889-1970), um californiano atípico que nasceu no Massachusetts, e que parecia um rancheiro do Texas a dirigir um escritório de amanuenses? Lembram-se de alguns? O das Garras de Veludo, o da Rapariga Caprichosa, o dos Dados Viciados, e tantos outros, protagonizados por Perry Mason (houve uma série televisiva interpretada por Raymond Burr), com a sua voluptuosa secretária Della Street. Além disso, Stanley Gardner, com o pseudónimo A.A. Fair (teve 8 pseudónimos), criou ainda a dupla Daniel Lam e Bertha Cool, muito mais interessante, que nasceu no atrevido Divórcio Sangrento. Vendeu mais de 3 mil milhões de livros – passam hoje 40 anos sobre a sua morte.
Da coluna diária do CM.
Tudo fazia prever que este engenheiro metalúrgico nascido há exatamente 100 anos, cumpridos hoje, não se dedicasse à metalurgia – e tivesse ficado para a história como ficcionista, dramaturgo, poeta, autor de várias canções que sabemos trautear, como “Le Deserteur” (“Monsieur le Président / Je vous fais une lettre / Que vous lirez peut-être / Si vous avez le temps...”) e “Fais-moi mal Johnny”, músico de jazz ou entusiasta do rock francês. Hoje, que passam 100 anos sobre o nascimento de Boris Vian (1920-1959, uma vida curta), recordemos sobretudo o seu talento de escritor – o de Outono em Pequim, A Espuma dos Dias ou O Arranca Corações, mas também as histórias policiais com o pseudónimo de Vernon Sullivan, Irei Cuspir-vos nos Túmulos ou Morte aos Feios (todos publicados em Portugal pela Relógio d’Água). Crê-se, aliás, que usou mais de 30 pseudónimos durante uma vida em que Paris fervia, fervia sempre – e onde Vian fez amizades raras, cantou, escreveu, tocou trompete e acabou por morrer tão cedo, aos 39 anos, num cinema onde projetavam a adaptação de um livro seu.
Da coluna diária do CM.
Num dos seus “Ecos de Paris”, originalmente publicados na ‘Gazeta de Notícias’ do Rio de Janeiro, Eça de Queirós escreveu o seguinte: “O dever da sociedade, perante uma epidemia, é circunscrevê-la, isolá-la – não criar em torno dela, por curiosidade depravada dum mal original e raro, uma vaga atmosfera de simpatia.” Não é preciso recorrer a Eça para defender que o Presidente da República deveria ter-se mantido no seu lugar, protegido, como o queremos – em vez de, com mais gente, ir tossicar aqui e além. Mas a analogia permanece. O resultado é que o isolamento do PR, em casa, vai aumentar sem necessidade o nível de histerismo e de medo, bastando para isso que se suspeite de contágio em alguém presente na sessão do Teatro Nacional de São João – onde o PR esteve. O medo nasce de equívocos desnecessários e imprudentes. As autoridades vão alterando as suas diretrizes (por vezes estapafúrdias) consoante os acontecimentos, como é normal; mas há uma coisa que se sabia: a gravidade do que tinha acontecido lá fora e podia acontecer aqui. O PR, que além do mais é hipocondríaco, devia sabê-lo.
Da coluna diária do CM.
Ter ou não ter paciência? Ser paciente, pelo menos. O livro de Sophie Lewis (Full Surrogacy Now: Feminism Against Family, ou seja, Barriga de Aluguer Total: O Feminismo Contra a Família) foi publicado nos EUA em maio do ano passado e festejado como um elemento essencial no combate tanto ao “capitalismo farmacopornográfico” (fixem) como ao “feminismo branco, liberal e transfóbico” (fixem). O que defende Lewis? Que todas as mulheres são barrigas de aluguer e que todo o trabalho de gestação devia ser remunerado pelo Estado. Ao reconhecer a atividade de ‘barriga de aluguer’ como trabalho e a ‘gestante de empréstimo’ como trabalhadora, então toda gravidez passa a ser também considerada trabalho. O argumento não é novo e é um pilar da luta contra contra a família tradicional, libertando-a dos deveres de educação, da parentalidade e da herança genética. Os horrores vêm de onde menos se espera. Sophie Lewis é uma estrela na universidade americana e o êxito que o livro teve na elitista crítica novaiorquina, o que explica a popularidade de Donald Trump entre tantos eleitores americanos.
Da coluna diária do CM.
Em tempos de vírus, falei ontem de A Peste, o romance de Albert Camus que, juntamente com Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, regressou à lista dos livros mais vendidos em Itália, ou em França. São páginas que nos confrontam com outras epidemias coletivas. Recolhido em casa, leio outras coisas – Eça, por motivos profissionais, imagine-se; um livro sobre a China de hoje; um novo livro da bela poesia de José Alberto Oliveira, Rectificação da Linha Geral (Assírio & Alvim). O que nos ensinam estes dias? Coisas simples: o valor da parcimónia, o do tempo contado (título de um livro de J. Rentes de Carvalho), o da espera. Enquanto isso, o mundo rola. Uma tempestade perfeita, para sermos mais precisos: admira-me que tão tardiamente se acorde para a crise na justiça, para o caos na saúde ou para a altíssima corrupção no futebol; percorro o mapa para perceber como a crise entre a Síria e a Turquia vai afectar a Europa em geral; leio que há alunos portugueses, de Elvas, que reinventarão partes do Quixote, de Cervantes, o que me dá esperança em qualquer coisa que não sei bem o que é.
Da coluna diária do CM.
Numa carta de 1955, Albert Camus escrevia que o seu romance ‘A Peste’ era uma alegoria do combate e da resistência contra o nazismo. O livro fala de uma epidemia que bloqueia e isola a cidade de Orão, na Argélia, submetida a rigorosa quarentena e onde as vítimas se vão multiplicando. Lido à letra ou como alegoria, as vendas de ‘A Peste’ e em Itália e em França atingiram números extraordinários nas últimas semanas – tal como ‘Notre Dame de Paris’, de Victor Hugo, a seguir ao incêndio da catedral, ou ‘Paris é uma Festa’, de Hemingway, após os atentados de Paris. Em Itália, ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, de José Saramago, entrou de novo no circuito das livrarias, ao lado de Camus. O que procuramos nesses livros, e nestas ocasiões? Um retrato do infortúnio, um exemplo de resistência e de paciência, a comparação com outras histórias próximas da nossa. O ruído, infelizmente, é demasiado – e esquece a genial frase de Albert Camus, em ‘A Peste’, quando diz que é apenas no momento do infortúnio que o género humano se acostuma “à verdade, ou seja, ao silêncio”. Temos muito a aprender.
Da coluna diária do CM.
Tal como as suspeitas sobre o vírus, as que recaem sobre a Justiça apenas aguardavam uma confirmação que chegaria mais dia menos dia. É um vírus letal. Confiamos na Justiça, mas tememos a sua arrogância e que sejam verdade as suspeitas sobre ela ser conspícua e estar contaminada por influências, redes de favor e uma surdez total. Nós, cidadãos, temos uma desconfiança congénita em relação ao seu poder até porque sabemos que existe uma discrepância (muitas vezes inexplicável) entre a lei e a justiça, entre o que a lei permite e o que o bom senso acha abjeto, criminoso e indesculpável. Talvez seja inútil discutir aqui se “ética” e “legalidade” estão condenadas a viver de costas voltadas ou, pelo menos, uma a escapar-se entre as malhas da outra – mas quem fica a perder somos todos nós. Os casos acumulados na banca, no futebol (um mundo de vergonha infindável), no favorecimento de empresas e pessoas e, agora, na própria justiça, faz com que os portugueses desconfiem de quem se mantém em silêncio. Mas que as suspeitas sobre a Justiça se confirmem é a pior notícia de todas.
Da coluna diária do CM.
Tom Hanks, não sei se se lembram, é Sherman McCoy no filme A Fogueira das Vaidades, de Brian de Palma – aparecem também Bruce Willis, Morgan Freeman e Melanie Griffith. O filme não é especialmente bom, mas adapta para a tela o livro de Tom Wolfe com o mesmo título, um retrato da América desses anos 80 – muito mais do que a literatura vagamente juvenil da época. Tom Wolfe tinha a seu favor anos e anos de vida e de “novo jornalismo” (com Gay Talese, genial, à cabeça, mas também Norman Mailer ou Truman Capote), e um talento interminável. Tinha publicado reportagens como The Pump House Gang (sobre os meios contraculturais dos anos 60) ou Radical Chic (uma bela ironia sobre a esquerda e os seus sentimentos de culpa) – e um livro (The Right Stuff) depois adaptado ao cinema (Os Eleitos em português, com um notável Sam Shepard). Eu Sou Charlotte Simmons é um retrato cru e cruel das universidades americanas, do seu sistema de castas – e da ignorância reinante, que castiga os melhores. Wolfe, um historiador do presente, morreu em 2018 (nasceu em 1930). Hoje completaria 90 anos.
Da coluna diária do CM.
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