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Em preto, cinza e rosa, a máscara sueca Airinum é usada por “celebridades” e publicitada pela atriz Gwyneth Paltrow, a mesma que lançou (com um perfumista amigo) a vela “Isto cheira como a minha vagina”, que foi um sucesso de vendas (Gwyneth já tinha proposto outra moda recente, a de vaporizar as partes íntimas). Apesar do preço, de 60 a 90 euros, está esgotada nas lojas. Foi com uma ‘Airinum’ preta (fica bem com o seu cabelo loiro) que Gwyneth Paltrow chegou a Paris para a “semana da moda”, na mesma altura em que foi publicada a notícia de que o primeiro infetado com o Covid-19 na Coreia do Norte terá sido abatido a tiro. O exibicionismo diante do horror é um fenómeno cómico e mostra até que ponto o chamado “género humano” pode distrair-se ou revelar-se – ou ambas as coisas, já que uma coisa leva à outra – em condições mais ou menos dramáticas. A verdade é que o espectáculo tem de continuar, sejam quais forem as circunstâncias. Estava a esquecer-me que tanto a Louis Vuitton como a Gucci já produziram artefactos semelhantes para proteger as “celebridades” da ameaça da morte. O horror não cessa.
Da coluna diária do CM.
O efeito do vírus torna-nos mais frágeis, certamente. Revela quem somos; veja-se aquela massa de ucranianos a receber turistas chineses à pedrada. Em Portugal, onde existe um certo racismo anti-chinês, felizmente não tivemos manifestações de tontice, tirando aquela ministra que garantia que o “coronavírus” seria benéfico para Portugal e as suas exportações para a China. Infelizmente, a senhora não sabe o que é um “cisne negro” – um fenómeno imprevisível, fora de contexto e de explicação imediata, e que pode colocar em causa as nossas certezas e formas de ler a realidade – e, portanto, a esta hora já sabe que não tem razões para alegrias. Também lhe podíamos explicar que se uma borboleta bate as asas em Wuhan é provável que uma tempestade se sinta do outro lado do mundo. Neste momento, a Europa é um continente sitiado pelo medo e pela suspeita, incapaz de pensar ou de aprender com as lições da história. Esquece, inclusive, que a Gripe Espanhola matou mais de 100 milhões de pessoas no início do século XX. Os europeus – nós – descobrem, à sua própria custa, que não somos nada.
Da coluna diária do CM.
Há uns anos, em conversa, Camille Paglia contou que um aluno se recusava a ler Homero, bem como outros expoentes da literatura grega, porque se tratava de “homens, velhos e brancos” (o que não era verdade) – e isso punha em causa a ideia de “diversidade cultural”. Na semana passada, a universidade de Oxford anunciou que pretende retirar Homero e Virgílio da lista de autores de leitura obrigatória nos primeiros anos de estudos clássicos devido à “disparidade encontrada nos candidatos masculinos e femininos”, bem como entre os que estudaram latim ou grego e aqueles que não o fizeram – e ainda para “promover a diversidade”. A ideia de retirar Homero (‘Odisseia’ e ‘Ilíada’) e Virgílio (‘Eneida’, ‘Éclogas’ e ‘Geórgicas’) dos estudos clássicos é semelhante à de retirar a Bíblia, ou o Corão, dos estudos de teologia. Ao longo do tempo, os grandes clássicos foram (pela sua vitalidade e riqueza) armas para usar contra a ordem estabelecida e fundamentais para compreender conceitos modernos de justiça, liberdade e dignidade. A ordem estabelecida chama-se, hoje, estupidez. E é perigosa.
Da coluna diária do CM.
Amanhã será Quarta-Feira de Cinzas. Há um belo poema de T.S. Eliot (“Porque sei que o tempo é sempre o tempo...”) que celebra a data, pelo menos no título, ‘Ash Wednesday’, e nos fala da humildade: “Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo / ensinai-nos a estar postos em sossego / mesmo entre estas rochas...” No calendário cristão assinala-se o começo da Quaresma e lamento estar hoje, Terça-Feira Gorda, ou de Carnaval, ou de Entrudo, a mencionar os quarenta e poucos dias que faltam até à Páscoa: o bom tempo ajuda a festejar os sinais do fim do inverno. Em Lisboa há um perfume de jacarandá em certas ruas. Não se pode senão ficar comovido. Nas estradas da província, como relembra o cronista António Sousa Homem nas páginas da ‘Domingo’, não se pode ficar indiferente às mimosas do Minho, nem ao esplendor da primavera antecipada, carregada de pólenes. Estou a ficar bucólico? Não. Em tempos de coronavírus, de ameaças letais e de falta de senso na política e na vida comum (talvez por causa do inverno prolongado), o clarão de Quarta-Feira de Cinzas não é senão um milagre que devemos aproveitar.
Da coluna diária do CM.
O “mundo constitucional”, como se dizia no tempo de Eça, gosta de quem lhe proporcione ditirambos à medida e lhe bendiga as glórias. Confunde, por isso, os “bons sentimentos” com a veneração e o respeitinho que acredita que se lhe deve em todos os momentos. Vasco Pulido Valente, que era um homem educadíssimo e eu aprendi a ler e a admirar, não lhe caiu no goto, a esse mundo que conhecia bem. Portugal precisava dele em pleno – da sua crítica feroz, temida, injusta muitas vezes, tão bem escrita, sem medo nem condições, tanto quanto filha do disfarçado amor pelo país e pela vontade de que ele pudesse ter sido outra coisa. Vasco Pulido Valente foi um historiador do século XIX, o tempo de onde se podem e devem retirar muitas lições para entender os nossos desvarios – e o lugar onde nasceram os nossos partidos, as nossas famílias políticas e os nossos vícios de casta. Porque era corajoso e se estava nas tintas, permitia-se ser cruel, genial e honesto. Eu sentirei muito a sua falta. Fico feliz por ter partilhado alguns cigarros e whiskies com a sua conversa maravilhosa e inteligente.
Da coluna diária do CM.
Uma professora de 60 anos, de uma escola do Castêlo da Maia, apresentou queixa no posto da GNR por ter sido agredia por um aluno; este foi identificado pela professora e pelos colegas. No entanto, o Ministério da Educação informou a imprensa de que não é bem assim, pois – de acordo com as informações prestadas pela direção da escola – o aluno “não tinha a intenção de agredir a professora” e, portanto, “não se trata de um episódio de agressão”. Portugal parece ser um dos poucos lugares onde os servidores públicos têm na sua “descrição de funções” poderem ser agredidos no local de trabalho. Faz parte. E, quando, houver dúvidas – a autoridade decide contra eles. Anteontem, no Reino Unido, o governo anunciou que comportamentos violentos, ameaças e gritarias implicam não ser atendido nos hospitais. Em Portugal, funcionários dos tribunais e dos hospitais parecem ter garantido que podem vir a ser protegidos das fúrias – mas os professores são um caso à parte; os burocratas e teorizadores estão na Av. 24 de Julho, em Lisboa, reconfortados, e conhecem as escolas por ouvir dizer.
Da coluna diária do CM.
Vai ser um longo processo, o das relações com a Venezuela. Durante a últimas duas década, a palhaçada chavista destruiu paulatinamente o país, aumentando a pobreza em nome da “revolução bolivariana” e com o aplauso das vanguardas europeias (lucraram com o financiamento), que viam em Caracas um excelente lugar para estabelecer o seu laboratório político. Jornais e televisões encerrados, prisões arbitrárias, violência, partidos silenciados, orações diárias a Chávez (que ressuscitava periodicamente ou como pássaro ou assombração), dinheiro distribuído pela burguesia bolivariana local, partidarização da justiça e de todo o aparelho de estado, assassínios em massa ou seletivos, perseguição à universidade e aos comerciantes – o caudilhismo latino-americano é, tal como os generais loucos de García Márquez, uma das velharias do século. Atacando os portugueses – uma geração de emigrantes liberais, empreendedores e ativos mas também indefesos e desprotegidos, a canalha chavista e madurista quer dar um exemplo. Calhou-nos a nós, portugueses, e temo que não possamos responder.
Da coluna diária do CM.
Giordano Bruno morreu na fogueira da Inquisição há exatos 420 anos, assinalados hoje. Ele acreditava que o mundo era infinito e plural e que os sinais invisíveis da criação não podiam ser explicados com os dogmas da época. Isso foi-lhe fatal. Preso em 1592, só em 1600 o antigo dominicano foi sentenciado e as suas cinzas espalhadas no Campo de’ Fiori, perto do lugar onde hoje está a estátua erguida em sua honra, enfrentando as cúpulas e os muros de Roma, rodeada de multidões de turistas que hoje se passeiam na praça. Nem todas as cinzas dos seus livros se perderam nesses derradeiros oito anos de cativeiro e de tortura. O que sobreviveu é o bastante para o desenhar como um sábio, um heterodoxo e um perguntador que antecipou o seu tempo. Crimes suficientemente graves para a memória da Inquisição – e mesmo para a igreja, que só muito recentemente reconheceu o horror dessa fogueira em que Bruno foi queimado. Em redor da sua estátua, no Campo de’ Fiori, somos estranhamente atraídos para aquela figura soturna que não deixou nunca de ensombrar o processo da sua morte.
Da coluna diária do CM.
As empresas tecnológicas acumulam dados vastíssimos sobre a nossa atividade nas suas plataformas – da Google à Amazon, da AliBaba ao Facebook, um dos grandes negócios é a “armazenagem de dados”. Quantos mais dados forem recolhidos mais perfeita será a aprendizagem que essas máquinas fazem dos nossos comportamentos (o quê, o quando, o como e o porquê das nossas decisões) e mais poderosos serão os algoritmos que irão prever a nossa vida. As músicas, por exemplo: a duração média de uma canção na lista Billboard caiu 20 segundos nos últimos três anos – até chegar aos 3 minutos, tempo médio de atenção mais longo que dedicamos a uma canção pop, segundo as plataformas de ‘streaming’. As máquinas também já estabelecem que o tempo médio de atenção dedicado a um livro andará, no total, pelas 280 ou 300 páginas; a Amazon estuda com rigor os tempos de leitura nos aparelhos Kindle, e que passagens de um livro agradam mais aos seus leitores, e quais os levaram a pular de página. Para a indústria, estes dados são “auxiliares de diagnóstico”. A nossa doença é, cada vez mais, o tempo de atenção.
Da coluna diária do CM.
O PCP publicou um notável documento dedicado à “provocação da morte antecipada”, vulgo eutanásia. Concordando ou não com os seus termos ou o seu sentido, tem de elogiar-se a frontalidade com que o PCP apresenta uma posição coerente, conservadora e fundamentada. Para as pessoas de gerações mais novas que encaram com leveza a ideia de pôr termo à vida por ser doloroso vivê-la, ou para aquelas que praticam com jovialidade o seu cinismo, o documento comunista – que considera a eutanásia “um retrocesso civilizacional” – é de uma humanidade aterradora e corajosa. A banalização da eutanásia é uma das mais perversas etapas do capitalismo da vida quotidiana; com ela banaliza-se também a morte provocada, aperfeiçoam-se as formas de desistência e de marginalização dos que sofrem, e aceita-se a ideia de que se pode facilitar a morte para que seja mais fácil prescindir da vida – uma coisa para pessoas saudáveis, vencedoras, “eternamente jovens” graças a cuidados de saúde especiais. Não sei como seria o meu voto acerca da eutanásia, mas este documento do PCP merece a minha leitura muito atenta.
Da coluna diária do CM.
Grande parte da história do rock é feita de violência – por mais que nos aproximemos do palco e nos encantemos com a música, é esse o resumo. No rap, multipliquemos por vários números, porque a violência faz parte da “arte”. Veja-se a história de Unclekeef, aliás Fábio Fonseca, um rapper que é acusado de, durante meses, ter maltratado a namorada, sujeitando-a a espancamentos regulares e a chantagem emocional e sexual. Depois de ler a notícia no CM de ontem, fui ver as letras de alguns dos seus raps. Elucidativas, em filmes bem feitos, de acordo com as normas (falar das mulheres como ‘cabras’, por exemplo, ou enrolar um charro, nada de mais). De resto, o folclore e os gestos habitual ligados ao hip hop. Claro que a namorada de Unclekeef não foi espancada por ele ser rapper (embora isso possa ajudar, bastando recordar o historial de violência ligado ao género); mas espanta-me que ontem, nas chamadas “redes sociais”, tenham aparecido já comentários de rapaziada amiga a alertar para a “decisão racista” de manter preso o jovem rapper. Sabem-na toda, os meninos.
Da coluna diária do CM.
Uns meses antes, o prémio Nobel da Paz fora atribuído ao Dalai Lama e distinguira, pela escolha da sua figura, a defesa da não violência. Vem a propósito esta evocação porque, se há homem que evitou banhos de sangue e o recrudescer da violência no seu país – é Nelson Mandela. Recordo, a esta distância (30 anos, que hoje se assinalam), as imagens da televisão: a figura de Mandela, frágil e digna, abandonando a área da prisão Victor Verster, para onde fora transferido em dezembro de 1988, vindo de Pollsmoor, Cape Town, e, antes, de Robben Island. Mandela é das figuras contemporâneas que mais me impressionou e me comoveu. Graças a ele, não aconteceu a catástrofe previsível pelo desmoronamento do regime do ‘apartheid’; graças a Mandela – à sua ponderação, sabedoria e inteligência – tudo o que poderia ter corrido terrivelmente mal na África do Sul acabou por correr razoavelmente bem. Trinta anos depois da sua libertação, o ‘apartheid’ só poderia ruir – naquela manhã de 11 de fevereiro de 1990, Nelson Mandela saía da prisão com aquela brava serenidade dos homens fantásticos. Há 30 anos.
Da coluna diária do CM.
Isaac ben Judah ou Abravanel nasceu em Lisboa (1437) e é um nome grande do judaísmo, como político, estudioso e místico. A família de Boris Pasternak, o autor de Doutor Jivago, apresentou-se por vezes como descendente do judeu português. O seu pai, pintor, ilustrou livros de Tolstoi, de quem era amigo; a mãe era pianista; as visitas de casa eram Rilke ou Rachmaninov – e a sua geração literária foi a de Mandelstam ou Maiakovski, cuja poesia estava na lista negra da revolução russa. Tradutor de Shakespeare ou Goethe, Rilke ou Verlaine, a obra maior de Pasternak (começada em 1945 e concluída em 1954) é Doutor Jivago, uma história de amor sob o estalinismo e a guerra. A publicação do livro –proibido na URSS até 1989 – em italiano, pelo editor comunista Feltrinelli, em 1957, abriu-lhe as portas do Nobel no ano seguinte, que não pôde receber. Pasternak (de quem Ramos Rosa traduziu Melodia Interrompida em 1958) não pôde ver o filme de David Lean, com Omar Sharif e Julie Christie; morreu em 1960. Hoje, que passam 130 anos sobre o seu nascimento, lembremos Jivago, Lara e o seu livro.
Da coluna diária do CM.
Um dia destes, no carro, ouvi a versão de ‘Unforgettable’ cantada por Nathalie Cole e Nat King Cole – pai e filha, separados por quarenta anos. Cole morreu em 1965, aos 45 anos, quando Nathalie tinha apenas 15; a canção, escrita por Irving Gordon (um judeu novaiorquino que escreveu para Billie Holiday, Perry Como, Bing Crosby ou Duke Ellington), é de 1951, e Nathalie gravou-a quarenta exatos anos depois, em 1991, num álbum dedicado à música do pai – no disco, é um dueto virtual entre Nat e Nathalie, uma ideia de Joe Guercio, que foi produtor de Elvis Presley: as vozes de pai e filha acompanham-se uma à outra como se Nat estivesse vivo e desse o braço à sua filha no palco. Na época (recuem a 1991), recuperar digital e virtualmente a voz de Nat King Cole foi uma bela experiência – e ficavam bem, as duas, reunidas; Nathalie viveria vários pesadelos daí em diante, relacionados com drogas e religião, até à morte, no último dia de 2015. Hoje, dia em que Nathalie completaria 70 anos, escuto essa versão com uma sensação de absurdo, porque ninguém reúne mais pai e filha, nem virtualmente.
Da coluna diária do CM.
Com a morte de George Steiner (1929-2020), anteontem, é outro sábio que desaparece. Olhando para a estante vejo A Morte da Tragédia, Depois de Babel, Errata, Linguagem e Silêncio, As Lições dos Mestres, Presenças Reais, No Castelo do Barba Azul, O Silêncio dos Livros, As Artes do Sentido, Dez Razões para a Tristeza do Pensamento ou Antígonas, entre outros. Nascido em Paris numa família de emigrantes austríacos, estudou em Chicago e doutorou-se em Oxford. Viveu em toda a Europa (escreveu mesmo um breve A Ideia de Europa) e amava a literatura, as línguas, a música e a arquitetura. Em Errata, uma maravilhosa autobiografia inteletual fala dessas paixões, da aprendizagem com os mestres, do esforço necessário para compreender o mundo, do “judaísmo de esperança secular” e do mistério do conhecimento. É um livro notável, tal como Os Livros Que Não Escrevi, onde – falando da pena que teve em não escrever sobre alguns temas – acaba por escrevê-los. Steiner era um sábio enternecedor, um mestre, um leitor, um homem que abria janelas no meio das muralhas.
Da coluna diária do CM.
O último livro que li de Mary Higgins Clark (NY, 1927) foi ‘Remember Me’, traduzido como ‘Lembra-te’. Os seus títulos originais eram sempre bons: ‘Loves Music, Loves to Dance’, (‘Gosta de Música, Gosta de Dançar’), ‘Weep no More My Lady’ (‘Não Há Morte nem Mudança’), por exemplo. Ao longo de uma carreira de autodidata (Mary Higgins Clark nasceu no Bronx, NY, órfã e viúva demasiado cedo), durante a qual foi obrigada a escrever para leitores exigentes e difíceis de satisfazer, teve quase todos os prémios de literatura policial mais ou menos tradicionais, além de distinções que ficam bem nas prateleiras de uma escritora que vestia como uma dona de casa. Mary Higgins Clark era ambas as coisas e os seus livros, publicados desde 1975, tal como as histórias entretanto reunidas na sua revista pessoal (‘Mary Higgins Clark Mystery Magazine’) ou popularizadas na televisão, deram ao seu nome um toque de seriedade e de ‘grande dama do crime’, uma espécie de Agatha Christie americana dos anos oitenta e noventa. Morreu na sexta-feira passada, como se estivesse de férias, na Flórida.
Da coluna diária do CM.
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