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Há um pequeno grupo de treinadores portugueses que percebeu há muito que o futebol não é um desporto mas uma das modalidades da “arte da guerra”.
É o ano em que nasce Angela Merkel, em que morre a pintora Frida Khalo e em que se suicida, naquele mês terrível de Agosto, o presidente brasileiro Getúlio Vargas. Jorge Jesus não tem nada a ver com nenhum deles: não tem a determinação inteligente de Merkel, a alucinação criadora de Frida, ou a dimensão trágica de Vargas. Mas sabe que, no jogo terrível em que participa só uma parte vai sobreviver.
Para compreender Jorge Jesus não é suficiente acompanhar os jogos, conhecer-lhe as obsessões e a biografia oscilante e notável que vai do Amora (ou do Sporting da juventude e de Virgolino) ao Flamengo; é também necessário apreciar, à distância, os seus inúmeros defeitos, deficiências, lapsos de linguagem, fúrias contidas, explosões e deslizes.
A primeira semana de Jorge Jesus no Brasil foi um calvário na imprensa. Além das vozes cautelosas que, aqui e ali, ponderavam a vinda de um português para um dos mais desejados dos tronos do futebol brasileiro (e muito a medo, à cautela, deixavam escapar uma dúvida fazia supor um leve elogio), a generalidade das opiniões era negativa. À pequena arrogância brasileira contra tudo o que costuma chegar “da terrinha” somava-se a indignação dos jornalistas de proa: o Flamengo ia ser treinado por um homem que não compreendia o historial de inimizades históricas do futebol tupiniquim, os códigos de respeito e veneração – e que falava português europeu. Na altura escrevi: este é o maior teste da vida de Jorge Jesus – se perde o combate, será banido para sempre e perseguido pela corrosão do piadismo brasileiro, que não se cansará de o eleger como palhaço e alvo do seu sarcasmo doméstico; se ganhar o campeonato (pelo Flamengo, o que significa ganhar parte essencial do Brasil – com grande pena minha, que sou gremista e vascaíno), duas coisas podem acontecer, e ambas têm a ver com a forma como Jesus costuma reagir às vitórias, mesmo quando são justas: ou modera os seus defeitos, parecendo humano e modesto; ou exagera a sua arrogância, e perde a vantagem.
Para felicidade de todos, especialmente dele, Jesus estava à beira de ganhar o Brasileirão quando teve de disputar uma glória rara para o Flamengo: a final da Libertadores, conquistada passo a passo, com sangue e prudência (dois aliados difíceis). Por isso, o jogo em Lima não foi apenas uma final entre o Flamengo e o River Plate, mas também o confronto entre Jesus e a promessa do seu destino. O homem que há pouco mais de dois meses deixara de ser o maior dos estranhos em terra estranha para ser sussurrado como promessa de campeão, tinha atrás de si, a apoiá-lo, uma das maiores falanges do futebol sul-americano. O estádio era, por isso, uma arena onde se defrontavam dois exércitos que não podiam falhar. Jesus partiu em desvantagem: contra o que diziam os comentadores, a verdade é que o Flamengo tinha a graciosidade de um desgraçado que se afundava à beira do pântano – primeiro, estava a jogar muito menos do que tinha mostrado contra o Grémio ou contra o Inter, dois encontros superlativos; depois, o golo do River foi de estalo, mostrando debilidades inusuais e mostrando uma paralisia desconhecida na equipa. Hoje, é fácil dizer isto. Mas, na altura, só Jorge Jesus podia vê-lo à dimensão do campo. O segundo tempo teria de ser arrasador; e quase foi. Mas pesavam-lhe derrotas fatais, contra o Sevilha, contra o Chelsea e contra o FC Porto, por exemplo – conhecera a derrota à beira do fim, tinha ajoelhado no Dragão, experimentara a desilusão de poder ganhar tudo e de não ter ganho nada. O golo do empate – merecido, como se diz na gíria – não foi apenas o do nulo obtido nos últimos minutos do jogo, mas também o sinal de uma equipa que se reerguia contra o destino do seu treinador.
Naquele dia, só um amnésico não lembraria essa hecatombe – quando Jesus podia ter ganho tudo e não ganhou nada: nem taça, nem campeonato, nem Liga Europa. Um cúmulo de derrotas que deixariam qualquer um sem margem de auto-estima. Exceto Jesus, cuja confiança sobe aos píncaros e ameaça a estratosfera, antes de poder desabar (como lhe aconteceu) de joelhos no relvado. Eu, que estava a ver esse sorriso de escárnio em dois ou três parceiros no bar onde vi o jogo, só então percebi como era injusto aquele homem repetir a sua desgraça – e como seria desonesto o destino oferecer-lhe a derrota à beira da glória em vez da consagração que o recompensasse da arrogância do jornalista da Fox Sports, que o maltratou daquela maneira, ou das piadas que se ouviam no Rio sobre o seu sotaque, os seus erros de gramática, os seus exageros e a sua própria arrogância. O segundo golo de Gabriel Barbosa, o Gabigol, por isso mesmo, fez-me recuar ao Amora e ao Felgueiras, ao Estrela e ao Moreirense, ao Setúbal e ao Belenenses, ao Vitória de Guimarães e ao Braga, que treinou antes de seguir para o Benfica e para o Sporting. Naqueles minutos que faltavam para o final, a história de Jorge Jesus pesou mais do que nunca: e foi ele próprio que correu a desmobilizar os festejos antecipados, a euforia antes do apito, a vitória ainda não confirmada. Essa imagem, Jesus a empurrar os seus jogadores, lembrando-lhes que o jogo não terminara, vale por uma carreira e mostrava que tinha aprendido a lição (e que lhe podia ter evitado os dislates daquela conferência de imprensa em Madrid, depois de o Sporting ter perdido com o Real).
Foi então que, pela primeira vez na vida, gostei de ver Jorge Jesus consagrar-se como campeão fosse do que fosse. Porque não era apenas uma vitória. Era, também, a vingança da história de Jesus contra o seu destino, contra os preconceitos de classe e de cultura (como os meus), contra a relutância brasileira, a inimizade clubística que não esquece traições nem desforras, o facto de ter abandonado o Benfica e de ter vivido os traumas que passou no Sporting – e, finalmente, a reparação que lhe era devida por quem via nele uma espécie de operário da bola que nunca chegaria à aristocracia do futebol.
É provável que a palavra “vingança” seja excessiva, aqui ou noutras circunstâncias. Mas tem inteiro cabimento. Os que o conhecem intimamente – que partilharam o peixe que come à refeição ou os telefonemas inconfessáveis, os hábitos pessoais ou a obsessão pelo trabalho, o gosto pela família ou os modos desabridos, a candura na intimidade e a generosidade no trato – podem falar do seu caráter e dos defeitos e virtudes que o acompanham. Mas, para “os portugueses”, uma multidão indistinta de humilhados e sonhadores, ambiciosos ou lutadores, aquele era um de nós. E não ficámos felizes apenas por ele ser um português como nós – mas por, além disso, ser um português dos subúrbios da Lisboa, um homem carregado de defeitos públicos e de virtudes privadas, que foi capaz de crescer e enriquecer com o seu trabalho e a sua manha (que é fundamental e imprescindível), de interpretar como poucos o jogo de guerra que é o futebol, de saber apresentar-se como um jogador de póquer, de colocar o seu talento a improvisar nas alturas certas, embora nem sempre de forma acertada. Era impossível, naquele momento, não sentir alguma ternura (que depois podíamos esquecer) por aquele homem que vestia um fato elegante e que ficava bem na sua camisa branca, que não se colocou à frente dos seus jogadores nem cedeu aos dirigentes do clube. Seria desumano ficar indiferente. Seria injusto.
Se há luta de classes no futebol – e estou certo de que há –, Jesus interpretou o papel do herói que redime os seus e lhes faz justiça: os humildes e os que dão erros de português, os que mastigam chiclete e nem sempre sabem o seu lugar, os que sonham mais alto e têm de ultrapassar obstáculos mais difíceis e em condições menos vantajosas.
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