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Ah, os paradoxos da “arte”. Os livros que o ex-ministro Manuel Pinho destinou à reciclagem – a lista inclui títulos que não me importava de ter – foram transformados em “material de arte” por Alexandre Estrela numa exposição que decorre no Porto (na Sismógrafo) até dia 25. Não é a mesma coisa que o mictório que Marcel Duchamp expôs em 1917 e que se tornou célebre por levar a sua assinatura – mas não deixa de ser uma espécie de ‘ready-made’, ou seja, um objeto vulgar que passa a objeto de arte porque o artista o escolhe como tal. Os livros, isolados e anónimos, despejados num contentor, seriam apenas material de papel que, de forma chocante, foram transformados em lixo; mas, sendo propriedade de um ex-ministro da economia (a maior parte deles versando economia) a braços com a justiça, passam a ser evidência de desperdício inteletual e, para todos os efeitos, de livros deitados fora – tendo já sido selecionados para a biblioteca de uma faculdade de economia. Pode não ser “arte”, claro, mas o episódio já é uma lição: livros não são coisas para abandonar. Ou transformam-se em vergonha.
Da coluna diária do CM.
Há qualquer coisa que não está bem nesta declaração do Presidente da República acerca da “capacidade de resistência” da sociedade portuguesa, ou seja, do “povo”, uma palavra que está em natural desuso. Acontece que não é a primeira vez que o PR deixa clara essa distinção entre “o povo” e “as elites” – e se faz essa distinção é para, na sua magistratura de multidões, apadrinhar o povo e deixar uma crítica às elites (que, já agora, o Presidente representa como ninguém). Pessoalmente, compreendo as palavras do generoso católico Marcelo Rebelo de Sousa; mas, historicamente, elas recordam passagens menos edificantes do discurso das elites sobre “o povo” – este, seria naturalmente bom e capaz de aguentar com um sorriso na boca os sofrimentos, a pobreza, a desventura, os maus governos, as patifarias que lhe cometem. Há algum tempo apareceram políticos a usar a palavra “resiliência”, que infelizmente não pode proibir-se, para falar dessa capacidade de os portugueses resistirem às adversidades que as elites ou provocam ou desculpam com certa brandura. Há qualquer coisa que não está bem.
Da coluna diária do CM.
Há um pequeno grupo de treinadores portugueses que percebeu há muito que o futebol não é um desporto mas uma das modalidades da “arte da guerra”.
É o ano em que nasce Angela Merkel, em que morre a pintora Frida Khalo e em que se suicida, naquele mês terrível de Agosto, o presidente brasileiro Getúlio Vargas. Jorge Jesus não tem nada a ver com nenhum deles: não tem a determinação inteligente de Merkel, a alucinação criadora de Frida, ou a dimensão trágica de Vargas. Mas sabe que, no jogo terrível em que participa só uma parte vai sobreviver.
Para compreender Jorge Jesus não é suficiente acompanhar os jogos, conhecer-lhe as obsessões e a biografia oscilante e notável que vai do Amora (ou do Sporting da juventude e de Virgolino) ao Flamengo; é também necessário apreciar, à distância, os seus inúmeros defeitos, deficiências, lapsos de linguagem, fúrias contidas, explosões e deslizes.
A primeira semana de Jorge Jesus no Brasil foi um calvário na imprensa. Além das vozes cautelosas que, aqui e ali, ponderavam a vinda de um português para um dos mais desejados dos tronos do futebol brasileiro (e muito a medo, à cautela, deixavam escapar uma dúvida fazia supor um leve elogio), a generalidade das opiniões era negativa. À pequena arrogância brasileira contra tudo o que costuma chegar “da terrinha” somava-se a indignação dos jornalistas de proa: o Flamengo ia ser treinado por um homem que não compreendia o historial de inimizades históricas do futebol tupiniquim, os códigos de respeito e veneração – e que falava português europeu. Na altura escrevi: este é o maior teste da vida de Jorge Jesus – se perde o combate, será banido para sempre e perseguido pela corrosão do piadismo brasileiro, que não se cansará de o eleger como palhaço e alvo do seu sarcasmo doméstico; se ganhar o campeonato (pelo Flamengo, o que significa ganhar parte essencial do Brasil – com grande pena minha, que sou gremista e vascaíno), duas coisas podem acontecer, e ambas têm a ver com a forma como Jesus costuma reagir às vitórias, mesmo quando são justas: ou modera os seus defeitos, parecendo humano e modesto; ou exagera a sua arrogância, e perde a vantagem.
Para felicidade de todos, especialmente dele, Jesus estava à beira de ganhar o Brasileirão quando teve de disputar uma glória rara para o Flamengo: a final da Libertadores, conquistada passo a passo, com sangue e prudência (dois aliados difíceis). Por isso, o jogo em Lima não foi apenas uma final entre o Flamengo e o River Plate, mas também o confronto entre Jesus e a promessa do seu destino. O homem que há pouco mais de dois meses deixara de ser o maior dos estranhos em terra estranha para ser sussurrado como promessa de campeão, tinha atrás de si, a apoiá-lo, uma das maiores falanges do futebol sul-americano. O estádio era, por isso, uma arena onde se defrontavam dois exércitos que não podiam falhar. Jesus partiu em desvantagem: contra o que diziam os comentadores, a verdade é que o Flamengo tinha a graciosidade de um desgraçado que se afundava à beira do pântano – primeiro, estava a jogar muito menos do que tinha mostrado contra o Grémio ou contra o Inter, dois encontros superlativos; depois, o golo do River foi de estalo, mostrando debilidades inusuais e mostrando uma paralisia desconhecida na equipa. Hoje, é fácil dizer isto. Mas, na altura, só Jorge Jesus podia vê-lo à dimensão do campo. O segundo tempo teria de ser arrasador; e quase foi. Mas pesavam-lhe derrotas fatais, contra o Sevilha, contra o Chelsea e contra o FC Porto, por exemplo – conhecera a derrota à beira do fim, tinha ajoelhado no Dragão, experimentara a desilusão de poder ganhar tudo e de não ter ganho nada. O golo do empate – merecido, como se diz na gíria – não foi apenas o do nulo obtido nos últimos minutos do jogo, mas também o sinal de uma equipa que se reerguia contra o destino do seu treinador.
Naquele dia, só um amnésico não lembraria essa hecatombe – quando Jesus podia ter ganho tudo e não ganhou nada: nem taça, nem campeonato, nem Liga Europa. Um cúmulo de derrotas que deixariam qualquer um sem margem de auto-estima. Exceto Jesus, cuja confiança sobe aos píncaros e ameaça a estratosfera, antes de poder desabar (como lhe aconteceu) de joelhos no relvado. Eu, que estava a ver esse sorriso de escárnio em dois ou três parceiros no bar onde vi o jogo, só então percebi como era injusto aquele homem repetir a sua desgraça – e como seria desonesto o destino oferecer-lhe a derrota à beira da glória em vez da consagração que o recompensasse da arrogância do jornalista da Fox Sports, que o maltratou daquela maneira, ou das piadas que se ouviam no Rio sobre o seu sotaque, os seus erros de gramática, os seus exageros e a sua própria arrogância. O segundo golo de Gabriel Barbosa, o Gabigol, por isso mesmo, fez-me recuar ao Amora e ao Felgueiras, ao Estrela e ao Moreirense, ao Setúbal e ao Belenenses, ao Vitória de Guimarães e ao Braga, que treinou antes de seguir para o Benfica e para o Sporting. Naqueles minutos que faltavam para o final, a história de Jorge Jesus pesou mais do que nunca: e foi ele próprio que correu a desmobilizar os festejos antecipados, a euforia antes do apito, a vitória ainda não confirmada. Essa imagem, Jesus a empurrar os seus jogadores, lembrando-lhes que o jogo não terminara, vale por uma carreira e mostrava que tinha aprendido a lição (e que lhe podia ter evitado os dislates daquela conferência de imprensa em Madrid, depois de o Sporting ter perdido com o Real).
Foi então que, pela primeira vez na vida, gostei de ver Jorge Jesus consagrar-se como campeão fosse do que fosse. Porque não era apenas uma vitória. Era, também, a vingança da história de Jesus contra o seu destino, contra os preconceitos de classe e de cultura (como os meus), contra a relutância brasileira, a inimizade clubística que não esquece traições nem desforras, o facto de ter abandonado o Benfica e de ter vivido os traumas que passou no Sporting – e, finalmente, a reparação que lhe era devida por quem via nele uma espécie de operário da bola que nunca chegaria à aristocracia do futebol.
É provável que a palavra “vingança” seja excessiva, aqui ou noutras circunstâncias. Mas tem inteiro cabimento. Os que o conhecem intimamente – que partilharam o peixe que come à refeição ou os telefonemas inconfessáveis, os hábitos pessoais ou a obsessão pelo trabalho, o gosto pela família ou os modos desabridos, a candura na intimidade e a generosidade no trato – podem falar do seu caráter e dos defeitos e virtudes que o acompanham. Mas, para “os portugueses”, uma multidão indistinta de humilhados e sonhadores, ambiciosos ou lutadores, aquele era um de nós. E não ficámos felizes apenas por ele ser um português como nós – mas por, além disso, ser um português dos subúrbios da Lisboa, um homem carregado de defeitos públicos e de virtudes privadas, que foi capaz de crescer e enriquecer com o seu trabalho e a sua manha (que é fundamental e imprescindível), de interpretar como poucos o jogo de guerra que é o futebol, de saber apresentar-se como um jogador de póquer, de colocar o seu talento a improvisar nas alturas certas, embora nem sempre de forma acertada. Era impossível, naquele momento, não sentir alguma ternura (que depois podíamos esquecer) por aquele homem que vestia um fato elegante e que ficava bem na sua camisa branca, que não se colocou à frente dos seus jogadores nem cedeu aos dirigentes do clube. Seria desumano ficar indiferente. Seria injusto.
Se há luta de classes no futebol – e estou certo de que há –, Jesus interpretou o papel do herói que redime os seus e lhes faz justiça: os humildes e os que dão erros de português, os que mastigam chiclete e nem sempre sabem o seu lugar, os que sonham mais alto e têm de ultrapassar obstáculos mais difíceis e em condições menos vantajosas.
Conheci o vulcanólogo e geólogo Victor Hugo Forjaz em 1988 – uma personagem tão cativante como simpática e esclarecida. Sem pudor, servi-me da sua figura no livro ‘Crime em Ponta Delgada’ como o melancólico vulcanólogo que prevê emergirem uma nova ilha no mar dos Açores em resultado de movimentos tectónicos e vulcânicos no fundo do mar. No romance, trata-se de uma explicação da sociedade açoriana e dos seus códigos secretos mas agora relembro-o em função de episódios reais, ao fim de centenas de “ocorrências sísmicas” registadas desde novembro na zona do Capelo, a oeste do Faial (de onde é natural) e, recentemente, ao largo da ilha das Flores. Coisa real que não devia ser banalizada e ignorada. A cada notícia de mais um abalo, de uma movimentação no fundo do mar, relembro a explicação descontraída de Victor Hugo Forjaz sobre as ilhas como corpos vivos e ativos e algumas – como as formações do banco D. João de Castro (Terceira) – emergem e submergem, aparecem e desaparecem. Não é por acaso que o resultado das últimas erupções vulcânicas no arquipélago se designam de Mistérios.
Da coluna diária do CM.
Para satisfazer a minha curiosidade fui ver o vídeo do grupo Porta dos Fundos no qual Jesus Cristo era retratado como homossexual – a sua exibição não foi censurada mas suscitou a violência de cristãos evangélicos que, além de cancelarem a sua assinatura da Netflix, atacaram, inclusive, a sede da Porta dos Fundos. Vamos por partes. Primeiro, o vídeo não é lá muito brilhante; brincar com o sexo é gargalhada de efeito fácil, mas, mesmo assim, é gargalhada – e eu defendo o direito a fazer humor. Segundo, cancelar a assinatura da Netflix (que emitiu o vídeo) não é um ato de censura: é um direito e uma atitude normal de quem não está contente com o serviço que lhe é oferecido; eu já cancelei a assinatura da SportTV, por exemplo (e depois voltei). Terceiro, atacar com cocktails Molotov a sede da Porta dos Fundos é um crime abjeto que devia ser severamente punido, mas isso é com o Brasil e os brasileiros. Há quem diga que a Porta dos Fundos teve coragem. Nem tanto. Brincar com a figura histórica de Jesus é fácil; corajoso mesmo, era brincar com figuras do Islão. Isso é que era.
Da coluna diária do CM.
Mesmo nas sociedades sem tradição de festejar o Natal, há um rasto de cerimónia e de ritual. O “ocidente europeu e americano”, que já foi cristão sem deixar de ser arrogante, está hoje intolerante em nome da “diversidade cultural”, como se os festejos de Natal ofendessem os que os não cumprem, ou vêm de outras tradições. Assim, deixa de mencionar “Natal” e passa a escrever “as festas”, como se houvesse tradição sem passado e como se uma nome não precise de ter sentido. Em vez de incluir “os outros”, exclui-os. E fica desenraizado, ou seja, sem passado, nem tradição – apenas como medo de ser o que já foi. Seja como for, as pessoas – nós, que festejamos ou não o Natal cristão com os seus mitos já arredondados – continuam a encontrar-se para uma refeição e uma paragem no tempo. Parar no tempo é um dos grandes segredos das civilizações, e não há culturas que a não pratiquem: suspender o dia a dia e encontrar um lugar fora do mundo para que relembremos os rituais, os costumes e até as coisas que sabemos que não existiram, mas que festejamos na mesma, o que nos faz ser mais interessantes.
Da coluna diária do CM.
Num país que mantém um certo racismo anti-chinês, quando me perguntam por que razão gosto de Pequim, respondo sempre da mesma forma: porque não entendo. Mas, para quem se recorda da China de há quarenta anos, saída de um regime penoso e violento – cujos retratos de pobreza eram sempre embaraçosos e, muitas vezes, chocantes –, há muito para compreender e muito mais para aprender. Não apenas (para retomar um lugar comum) uma civilização milenar, rica, cheia de momentos prodigiosos, conflituosa, enigmática, onde crueldade e espiritualidade estiveram muitas vezes alinhadas – mas também a forma como, no meio de muitos e naturais sobressaltos, a China moderna se tornou um território rico de experiências e modernização. Muitos dos desafios do futuro (nem todos com desenlace positivo) terão lugar a partir do velho Império do Meio. Não existe, provavelmente, geografia onde mais mudanças se tenham registado nos últimos vinte anos, sobretudo no mundo tecnológico e na forma como milhões de pessoas foram retiradas da pobreza ou da escassez e da luta pela sobrevivência – e devolvidas à vida.
Da coluna diária do CM.
Não é muito correto, politicamente, falar de “império”, ou sequer de “império colonial”. Macau, cuja devolução à China ocorreu há vinte anos, não fazia parte desse mapa: era um território fora do território, encostado ao grande continente e ao Império do Meio, a China – sitiado entre o rio das Pérolas e as Portas do Cerco. Vinte anos depois, para mim, continua a ser o cenário de um filme (não é por acaso que, ao longo dos anos, fascinou tantos cineastas), com a sua neblina, as suas ruelas, segredos, ruínas, casinos, mercados, varandas, becos, a memória da velha Taipa (de que tanto gosto) ou das colinas verdes de Coloane. Ou, para sermos justos, dos que episodicamente conseguiram cruzar as duas culturas dominantes que ali viveram, a portuguesa e a chinesa. É uma mistura improvável, decerto, ainda por cima porque os grandes pontos de contato entre os dois mundos foram, sobretudo, exceções literárias muito localizadas. Como pessoas distraídas que somos, só nos derradeiros anos da nossa presença em Macau nos ocupámos da sua memória – e de deixar alguma da nossa diante da China.
Da coluna diária do CM.
Todos os anos, por esta semana – até um pouco mais cedo – sinto uma grande ternura pelo bacalhau. Pelo bacalhau que os dietistas abominam e eu acho uma das grandes descobertas da humanidade: seco, salgado, poeirento. Hoje em dia já não se encontra com facilidade o velho bacalhau totalmente seco (é vendido mais húmido e com mais peso). Seguem-se uma série delicada de etapas: que seja cortado como merece; levá-lo para casa; olhar bem para ele; com cuidado, cortar-lhe uma lasca e comê-la à sorrelfa (saboreando o pecado do sal), antes de sujeitá-lo à operação da demolha, sobre a qual há truques que ninguém partilha. Enquanto isso decorre, pronunciar em surdina palavras estranhas que, isoladas, podem não fazer grande sentido: cozido, com grão, à Brás, à Gomes de Sá, arrozinho, de cebolada, em filetes, pataniscas, bolinhos, em cataplana, à Narcisa ou bracarense, em lascas – todos temos uma lista assim de memória. Esta temporada de enamoramento pelo bacalhau é, ou devia ser, um dos passos essenciais para obter o Cartão de Cidadão. Os senhores deputados que vejam e legislem.
Da coluna diária do CM.
Em abril do ano passado, um cientista canadiano ligado às “novas políticas alimentares”, Brent Loken, felicitou a Índia como “um grande exemplo” porque a maior parte das proteínas consumidas no país tinham origem em plantas e não em carne ou peixe. Acontece que, no ranking do combate à fome no mundo, que engloba 117 países, a Índia está em 102.º lugar e apenas 10% das crianças até aos 2 anos de idade são alimentados adequadamente – mas isso não passa pela cabeça dos ocidentais que circulam entre belas ideias e esquecem que existe uma guerra da fome enquanto eles discutem “dietas éticas”, sustentabilidade gastronómica, alimentos laboratoriais e o veganismo como uma forma de combater o capitalismo. Lembrei-me deste assunto ao verificar que a grande indústria alimentar (Unilever, Nstlé, Kellogs, Heinz, etc.) incrementou os seus lucros em 10% apenas no capítulo dos produtos vegan, ultrapassando a barreira dos muitos milhares de milhões de dólares e contribuindo decisivamente para a erosão da agricultura tradicional e para o empobrecimento dos países do chamado Terceiro Mundo.
Da coluna diária do CM.
Lembram-se de ‘O Bom, o Mau e o Vilão’, de Sergio Leone? O título colou-se-lhe à pele para sempre: vilão. Lee van Cleef era um homem de uma beleza brutal e tranquila, e a vilania foi uma espécie de segunda pele – foi como vilão menor que se estreara, catorze anos antes, em ‘O Comboio Apitou Três Vezes’ (1952). Não entra em ‘Por um Punhado de Dólares’ (de 1964), mas já está em ‘Por Mais Alguns Dólares’ (1965), o segundo dos filmes da trilogia de Sérgio Leone em que Eastwood nunca tem nome: Lee Van Cleef tem um papel decente, mas em ‘O Bom, o Mau e o Vilão’ notamos o seu rosto fino preparado para qualquer cicatriz, o nariz inconfundível, o ar de cavalheiro, a roupa que o distingue dos cowboys – e dissimulação que tanto faz dele um homem honrado como um traidor capaz de tudo, apesar do papel de Sabata ou de xerife em vários westerns posteriores. É Angel Eyes, olhos de anjo, se se recordam, e, ao lado de Clint Eastwood (o bom) e de Elli Wallach (o mau), Lee Van Cleef é o vilão sedutor apesar de todas as traições. Morreu há trinta anos, em 1989, assinalados hoje. É o meu vilão preferido.
Da coluna diária do CM.
Existe, certamente, o “discurso do ódio”, visível em grupos extremistas – e existe o “alarme sobre o discurso do ódio”, que ocupa cada vez mais espaço nos média. Acontece que, boa parte das vezes, se confunde esse discurso com aquilo que é da natureza do combate entre pessoas com ideias diferentes ou vidas diferentes (nem todas recomendáveis). A ideia de que somos todos boas pessoas, como esponjas que absorvem o Bem e comem fruta, sempre disponíveis para praticar ações bondosas e pensamentos fofinhos (os gatinhos e as crianças risonhas das “redes sociais”) contraria a natureza humana, que é, sobretudo, composta de diferença – e, em boa parte, de confronto. Pessoas que pregam permanentemente acerca do “discurso do ódio” por vezes não distinguem o essencial (o género humano) do acessório (não gostar de Cristina Ferreira, de José Mário Branco, de tofu, do budismo ou de padres sexy), o que não autoriza o racismo, o desrespeito pela lei comum, o machismo, a desculpa da violência ou a sua prática.
Da coluna diária do CM.
Toda a gente já ouviu falar da história: um artista italiano, Maurizio Cattelan, expôs uma banana na parede da Art Basel Miami e colou-lhe fita adesiva; o conjunto foi vendido por 108 mil dólares e uma nova instalação semelhante poderá subir aos 138 mil. Entretanto, um cavalheiro, também artista, comeu a banana – porque estava com fome – e esta foi substituída. Os teóricos da coisa dizem que a banana “é a ideia”, não importa que banana esteja colada à parede da galeria, e um “símbolo do comércio global”. Simulacro, efeito, símbolo, trapaça, quinquilharia, esperteza saloia, estupidez pura, aldrabice – a banana esteve durante uma semana nas nossas conversas, até ser cansativo fazer outra coisa às bananas que não comê-las, por exemplo. Há uma história célebre, a de uma “instalação” cometida na Bienal de Veneza, na qual um artista espalhou terra pelo chão; na manhã seguinte, a senhora da limpeza varreu o montículo de terra e danificou a “obra de arte”, que teve de ser refeita com mais lixo surripiado da rua. Trata-se, portanto, de um mundo fácil, sujo e digno da nossa indiferença.
Da coluna diária do CM.
O dia 11 de dezembro é assinalado, na Argentina, como o Dia do Tango – é o dia dos aniversários de Carlos Gardel e de Julio de Caro, expoentes do tango-canção, contemporâneos (há muitas dúvidas sobre o local de nascimento de Gardel, se no Uruguai, se em França – algures entre 1893 e 1897, mas De Caro é absolutamente de Buenos Aires, porteño de 1899), os dois com infâncias pobres e adolescência em bairros populares. A voz e a figura de Gardel (que morreu num acidente aéreo, em 1935) emprestaram ao tango um sentimentalismo melodioso e refinado, de salão, da mesma forma que De Caro lhe trouxe a dimensão orquestral, de boa sociedade. No entanto, o tango, que hoje se celebra em Buenos Aires, nasceu entre faquistas e marinheiros, noctívagos, desesperados, mulheres perigosas e homens sem redenção. Jorge Luis Borges escreveu um livro sobre o género – ele gostava desse tom sombrio do tango, tocado e cantado nos bairros fora da lei, celebrando o amor e a morte. Seja como for, eu comovo-me ao ouvir Mi Buenos Aires querido e El día que me quieras. E hoje é, portanto, o Dia do Tango.
Da coluna diária do CM.
O Nobel da Literatura de 1909 foi anunciado a 10 de dezembro – dois meses depois do que é hoje tradição, em outubro – e, pela primeira vez, distinguiu uma mulher, a sueca Selma Lagerlöf. Passam hoje 110 anos exatos. Dos oito laureados antes dela (o prémio começou em 1901), talvez só tenha sobrevivido ao tempo o inglês Rudyard Kipling – mas Selma ficou, não apenas por ter sido a primeira mulher a recebê-lo, mas porque escreveu um livro maravilhoso, A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia. Se não leram, aproveitem a lembrança. Não é apenas a história do pequeno Nils, transformado em duende, que viaja durante sete meses sob o dorso de um ganso, de norte a sul do país, descrevendo-o na sua geografia, enternecendo-nos, contando histórias de animais ou atravessando a carta dos climas, das baías do sul até à Lapónia – e volta. Selma Lagerlöf, que nunca deixou de ser uma agricultora, escreveu também um livro intitulado O Imperador de Portugal, a história enternecedora de um homem que sonha com um país de fruta e vinho – o nosso – depois de enlouquecido pela solidão.
Da coluna diária do CM.
Franz Snyders (1579-1657) nasceu e morreu em Antuérpia; pelo meio, pintou como ninguém, sobretudo as chamadas “naturezas mortas” – estendais de mercados, de frutas, legumes, caça, peixes, mesas opulentas e animais reproduzidos com realismo e cores intensas. Um dos seus quadros, O Mercado das Aves, acaba de ser retirado da parede de um dos refeitórios da universidade de Cambridge porque os vegans e vegetarianos o consideram agressivo e ofensivo ao expor animais mortos, no que foram secundados por responsáveis do museu proprietário da obra, que se mostraram compreensivos para com os que se tornaram vegetarianos por opção política ou alimentar. Não tenho nada contra; quem quer ver a obra de Snyders pode agora ir ao Hermitage, em São Petersburgo. Há anos, estudantes americanos mandaram retirar uma estátua de Henry Moore da sua universidade porque se sentiam ofendidos com as formas do nu. O que levanta um problema: se uma obra de arte nos incomoda, manda-se retirar ou usar o martelo. Antigamente, os bispos e os comissários do partido exerciam a censura – agora, estão por toda a parte.
Da coluna diária do CM.
Por princípio, no próximo mês de maio, vamos assistir à trafulhice do costume – todos falarão da glória, do sentido de oportunidade, da enorme vantagem, da utopia, da vastíssima comunidade de gente espalhada pelo mundo, do valor económico, do deslumbramento que significa a UNESCO ter declarado 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. E o que se segue? Esta mesmíssima mediocridade em que caiu o ensino da Língua Portuguesa em Portugal (não falo do estrangeiro, onde verdadeiros heróis a ensinam aos bárbaros, como desde há séculos, sem serem condecorados); a desvalorização da leitura, da história da cultura e da literatura no espectáculo curricular do Secundário; o mau português de políticos e figuras responsáveis; a falta de um azorrague que puna esse mesmíssimo mau português que empesta os documentos oficiais das nossas autoridades; a falta de pudor das nossas elites que nunca se incomodaram em desmentir a suspeita de que são cada vez mais ignorantes e culturalmente medonhas – e a lista continuaria. De modo que festejarei a efeméride, sim, mas com vontade de rir.
Da coluna diária do CM.
O Presidente da República mantém que são necessários apoios à imprensa, e vários profissionais acompanham-no. Mas ninguém tem uma ideia clara de como se vai lá, a não ser com a “constituição de grupos de média sem fins lucrativos”, projeto a que desejo boa sorte. Digital ou em papel, escrita ou falada, o problema é da chamada “literacia”. Acontece que quem não lê não pode salvar a imprensa. Veja-se o relatório PISA, que avalia dados do sistema educativo: parece que um terço dos jovens em idade escolar ou lê apenas por obrigação ou considera mesmo que ler é perder tempo. Nada contra; os culpados somos nós, os mais velhos. É aqui que a mensagem do Presidente pode ser importante: a leitura não faz de nós melhores pessoas, mas é provável (insisto no “provável”) que engendre melhores leitores de livros e de jornais, e isso era meio caminho andado. Não basta querer transformar tudo numa festa colorida e num espetáculo apalermado; era bom que, de entre os vários “pactos de regime” surgisse um para a leitura. Sei que é a minha obsessão, o que não me faz mais popular. Mas sem isso nada feito.
Da coluna diária do CM.
Não valia a pena começar por reafirmar que Cristiano Ronaldo é um enorme talento do futebol, mas já está dito. É muito o que Portugal tem retirado dessa vantagem nos estádios. Que a sua vida privada e familiar seja isto ou aquilo é coisa que não me comove (é um espectáculo, nada mais), mas acho admirável e exemplar que o rapaz modesto e pobre da Madeira tenha chegado onde chegou – motivo de orgulho meu e nosso, conquistado palmo a palmo com o seu esforço. Há só uma coisa que me incomoda gravemente e não é a falta de humildade, de sentido das proporções – ou o seu ego, que chegou onde chegou pelo motivo simples de poder chegar lá sem ser nos bicos dos pés, até porque também marca golos de cabeça. O que me incomoda realmente é que Ronaldo só vá à entrega da Bola de Ouro (ou qualquer outro prémio) quando tem a certeza de que vai ganhar. CR7 tem um talento natural para a vitória, mas era bom que desse o exemplo e se levantasse, uma vez na vida, para aplaudir outro qualquer (como Messi, de quem eu nem gosto especialmente) e reconhecer que não está sozinho no universo.
Da coluna diária do CM.
Ao longo da nossa história houve períodos com mais e com menos “descentralização”, com mais ou menos “centralização do poder real”. Os períodos mais prósperos e também aqueles onde mais eficazmente se administrou a justiça foram os de centralização. Houve monarcas centralizadores que prezaram as regiões mais afastadas do Terreiro do Paço, e monarcas inexistentes que deixaram o país cair no mais abjecto caciquismo. De igual forma, também a República foi essencialmente lisboeta (de onde foi implantada por telégrafo para todo o país) e muito pouco regionalizadora ou descentralizada. O debate que se anuncia sobre a regionalização não é sobre as regiões mas sobre os pequenos vice-reinos a criar, com duas ou talvez três grandes áreas administrativas (e a sua máquina) – e não vale o custo anunciado. Como sempre, ao longo dos últimos 800 anos, a questão não foi a de “regionalizar” mas a de encontrar forma de que os povos tenham quem os defenda dos poderosos, das arbitrariedades e dos excessos. Descentralizar não é distribuir pelas regiões a pobreza de recursos e o despotismo local.
Da coluna diária do CM.
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